As duas distopias em curso e o renascimento do pensamento utópico, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A sujeição imposta pelo capitalismo de vigilância, como diz Shoshana Zuboff, não é natural nem violenta. Ela foi criada por homens e pode ser desfeita pela ação humana.

As duas distopias em curso e o renascimento do pensamento utópico, por Fábio de Oliveira Ribeiro

No capítulo precedente Shoshana Zuboff introduziu o tema da utopia na discussão acerca do capitalismo de vigilância e do poder sem precedentes (ou da “auctoritas”) que ele criou https://jornalggn.com.br/artigos/o-nascimento-da-industria-inteligente-e-do-sindicalismo-2-0/. No capítulo que vamos ver agora, a autora narra a trajetória de um cientista que se tornou capitalista da vigilância e ideólogo do instrumentarianismo.

Alex Pentland é, sem dúvida alguma, um utopista que trilhou o caminho aberto por Skinner.

“In a style reminiscent of Larry Page’s rejection of ‘old laws’, Pentland is equaly critical of a range of concepts and frameworks inherited from the Enlightemment and political economics. Pentland insist that the ‘old’ social categories of status, class, education, race, gender, and generation are obsolete, as irrelevante as the enrgy, food, and water systems that he wants to replace. Those categories describe societies throght the lens of history, power and politics, but Pentland prefers ‘populations’ to societies, ‘statistics’ to meaning, and ‘computation’ to law. He sees the ‘stratification of the population’ coded not by race, income, occupation, or gender but rhater by ‘behavior patterns’ that can predict disease, financial risk, consumer preferences, and political views with ‘between 5 and 10 times the accuracy’ of the standar measures.

A final question urgently posed: ‘how to get humans in these systems to participate in the plan?’ His answer do not lie in persuasion or education but em behavioral modification. He says we need ‘new predictive theories of human decision making’ as well as ‘incentive mechanism design’, an idea that is coparable to Skinner’s ‘schedules of reinforcement’. Regarding how to get humans to follow the plan, Pentland offers the principe of ‘social influence’ to explain the design mechanism through which milliions of humans beings can be herded toward the guaranteed outcomes of safety, stability, and efficiency. He refers to his own studies, in which ‘the problems of industry and government’ can largely be explained by the pattern of information transfer, especially how people influence and mimic another.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 428/429)

Tradução:

“Usando um estilo que lembra a rejeição de Larry Page às ‘velhas leis’, Pentland é igualmente crítico a uma série de conceitos e estruturas herdados do Iluminismo e da economia política. Pentland insiste que as ‘velhas’ categorias sociais de status, classe, educação, raça, gênero e geração são obsoletas, tão irrelevantes quanto os sistemas de irrigação, comida e água que ele deseja substituir. Essas categorias descrevem as sociedades através das lentes da história, do poder e da política, mas Pentland prefere ‘populações’ a sociedades, ‘estatísticas’ ao significado e ‘computação’ à lei. Ele vê a ‘estratificação da população’ codificada não por raça, renda, ocupação ou gênero, mas sim por ‘padrões de comportamento’ que podem prever doenças, risco financeiro, preferências do consumidor e opiniões políticas com ‘entre 5 e 10 vezes a precisão’ das medidas padrão.

Uma pergunta final colocou com urgência: ‘como levar as pessoas desses sistemas a participar do plano?’ Sua resposta não está na persuasão ou na educação, mas na modificação do comportamento. Ele diz que precisamos de ‘novas teorias preditivas da tomada de decisão humana’, bem como ‘design de mecanismo de incentivo’, uma ideia que é compatível com os ‘cronogramas de reforço’ de Skinner. Com relação a como levar os humanos a seguirem o plano, Pentland oferece o princípio da ‘influência social’ para explicar o mecanismo de design pelo qual milhões de seres humanos podem ser agrupados em direção aos resultados garantidos de segurança, estabilidade e eficiência. Ele se refere a seus próprios estudos, nos quais ‘os problemas da indústria e do governo’ podem ser explicados em grande parte pelo padrão de transferência de informações, especialmente como as pessoas influenciam e imitam outras “.

Um pouco adiante, Zuboff esclarece que:

“Pentland insists thar ‘social phenomena area really aggregations of billions of small transactions between individuals…’ This is a key point because it turns that in order for social physics to replace the old ways of thinking, total knowledege of these billions of small things is required: ‘Big Data give us a chance to view society in all its complexity, through the millions of networks of person-to-person exchanges. If we had a ‘god’s eye’, an all seeing view, then we could potentially arive at a true understanding of how society works and take steps to fix our problems.’” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 430)

Tradução:

“Pentland insiste que ‘a área de fenômenos sociais realmente agrega bilhões de pequenas transações entre indivíduos …’ Este é um ponto-chave, porque verifica-se que, para que a física social substitua as velhas formas de pensar, o conhecimento total desses bilhões de pequenas coisas é necessário: ‘O Big Data nos dá a chance de ver a sociedade em toda a sua complexidade, por meio de milhões de redes de trocas entre pessoas. Se tivéssemos um ‘olho de Deus’, uma visão que tudo vê, poderíamos potencialmente chegar a um verdadeiro entendimento de como a sociedade funciona e tomar medidas para corrigir nossos problemas’ “.

A seguir a autora compara as propostas de Pentland às de Skinner levando em conta 5 questões cruciais: comportamento em prol de um bem maior, planos que substituem política, pressão social por harmonia, aplicação de utopias e morte da individualidade. Shoshana Zuboff frisa que muito embora nunca use os mesmos termos que Skinner, Pentland defende uma sociedade em que a computação ocupe o lugar central na construção, aperfeiçoamento e controle social.

Num dos textos anteriores, nós vimos como Skinner fez algo semelhante ao colocar sua própria ciência comportamental no pedestal anteriormente ocupado pelo patriotismo e pela divindade. Pentland imitou o mestre. O resultado, porém, é um pouco diferente.

“…In China the state vies with its surveillance capitalists for control. In the US and Europe state works with and through the surveillance capitalistas to accomplish its aims. It is the private companies who have scaled the rock face to command the heights. They sit at the pinnacle of the dividion of learning, having amassed unprecedented and exclusive wealth, information, and expertise on the strength of their dispossession of our behavior. They are making their dreams come true. Not even Skinner could have aspired to this condition.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 443/444)

Tradução:

“… Na China, o estado compete com seus capitalistas de vigilância pelo controle. Nos EUA e na Europa, o estado trabalha com e através dos capitalistas de vigilância para atingir seus objetivos. São as empresas privadas que escalaram a face da rocha para comandar as alturas. Sentam-se no auge da divisão da aprendizagem, acumulando riqueza, informações e conhecimentos sem precedentes e exclusivos com base na força de sua desapropriação de nosso comportamento. Eles estão fazendo os seus sonhos se tornarem realidade. Nem Skinner poderia ter aspirado a essa condição.”

A física social já é uma realidade. A aplicação prática da ciência computacional está realmente em condições de realizar os sonhos ambiciosos dos capitalistas da vigilância. Mas isso só poderá ser feito mediante uma crescente expropriação de excedente comportamental, do consumo sustentável de produtos inteligentes, da modificação do comportamento das vítimas da “auctoritas virtual” e da destruição dos sonhos de liberdade, igualdade e privacidade de bilhões de pessoas.

“Surveillance capitalists work hard to camouflage their purpose as they master the uses of instrumentariam power to shape our behavior while evading our awareness. That why Google conceals the operations that turn us into the objects of its search and Facebook distracts us from the fact that our beloved connections are essential to the profit and power that flow from its network uniquity and totalistic knoledge.

Pentland’s experimental work and theoretical analyses perform an important political and social function in piercing this fog. They map the tactical and conceptual pathways of instrumentariam society thar place the means of behavior modification at the heart of this social system, fouded on the scientific and technological control of collective behavior and administered by a specialist class. In China the state appears determined to ‘own’ this complex, but in the West it is largely owned and operated by surveillance capital.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 443)

Tradução:

“Os capitalistas da vigilância trabalham duro para camuflar seus propósitos, pois dominam o uso do poder instrumentário para moldar nosso comportamento enquanto evitam nossa consciência. É por isso que o Google oculta as operações que nos transformam nos objetos de sua pesquisa e o Facebook nos distrai do fato de que nossas amadas conexões são essenciais para o lucro e o poder que decorrem de sua singularidade de rede e conhecimento totalista.

O trabalho experimental e as análises teóricas de Pentland desempenham uma importante função política e social na penetração desse nevoeiro. Eles mapeiam os caminhos táticos e conceituais da sociedade instrumentarista que colocam os meios de modificação de comportamento no coração desse sistema social, concentrados no controle científico e tecnológico do comportamento coletivo e administrados por uma classe especializada. Na China, o estado parece determinado a ‘possuir’ esse complexo, mas no Ocidente é amplamente detido e operado pelo capital de vigilância.”

Na primeira parte do livro, Shoshana Zuvoff explicou como e porque o capitalismo de vigilância nasceu e floresceu junto com o neoliberalismo. A utopia neoliberal (a produção ilimitada de riqueza com a circulação internacional desregulada de capital provocaria naturalmente uma maior distribuição de renda independentemente do Estado) negava a existência de uma sociedade. A utopia de Pentland reconhece que a sociedade existe, mas defende sua total despolitização e modificação com base num poder sem precedentes que foi conquistado mediante a expropriação de excedente comportamental. O aperfeiçoamento contínuo do comportamento humano mediado pelo instrumentarianismo resolverá todos os problemas que a política tem criado ou ele apenas criará um novo problema político?

Essas duas distopias complementares, que paradoxalmente parecem ser mutuamente excludentes (negação da existência sociedade pelo neoliberalismo x reconhecimento de que a sociedade existe e deve ser remodelada pelo capitalismo de vigilância) certamente provocarão o renascimento do pensamento utópico. O ciclo de expropriação deve ser interrompido ou dominado pelos cidadãos comuns, para que eles possam voltar a governar suas vidas obrigando todos (inclusive o Estado e os gigantes da internet) a respeitar seus direitos.

A “auctoritas” que estruturou as cidades-estado na Antiguidade deixou de existir há muito tempo. A que nasceu com o capitalismo de vigilância é muito diferente. Todavia, não podemos esquecer que aquilo que garantia a harmonia entre iguais (fossem eles atenienses em Atenas, espartanos em Esparta ou tebanos em Tebas), também tinha uma face oculta e desagradável: a imposição da força bruta sobre os escravos que trabalhavam para abastecer as cidades-estados gregas.

No mundo Antigo os escravos pertenciam aos cidadãos e às cidades, mas eles não podiam participar da vida pública. Eles eram coisas. Em razão das novidades impostas ao mundo pelo Google, Facebook, Microsoft, etc… nós também estamos sendo transformados em objetos. Voluntariamente ou não, nós somos fornecedores de excedentes comportamentais e destinatários de mudanças comportamentais discretamente sugeridas (ou impostas) pelos capitalistas da vigilância.

“Instrumentarianism reimagines society as a hive to be monitored and tuned for guaranteed outcomes, but this tell us nothing of the lived experience of its members, What are the consequences of live lived in the hive, where one is perceived as an ‘other’ to the surveillance capitalits, designers, and tunners who impose their instruments and methods?” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 444)

Tradução:

“O instrumentarianismo reimagina a sociedade como uma colmeia a ser monitorada e ajustada para obter resultados garantidos, mas isso não nos diz nada da experiência vivida de seus membros. Quais são as consequências da vida vivida na colmeia, onde cada um é percebido como um ‘outro’ para os capitais de vigilância, designers e afinadores que impõem seus instrumentos e métodos?”

Auctoritas, não pertencimento, exploração econômica, sujeição às experiências comportamentais desenhadas por outras pessoas para reforçar o poder que elas mesmas exercem sobre suas vítimas, o instrumentarianismo pode ser considerado um fenômeno sem precedentes. Mas ele também pode ser comparado ao chicote do mestre que “cantava” no lombo daquele que havia perdido a guerra, sua autonomia política e liberdade pessoal.

Aristóteles considerava a escravidão algo absolutamente natural. Uma decorrência da derrota militar. A sujeição imposta pelo capitalismo de vigilância, como diz Shoshana Zuboff, não é natural nem violenta. Ela foi criada por homens e pode ser desfeita pela ação humana.

O problema: o efeito deletério do costume. No Mundo Antigo, as pessoas acostumadas à escravidão raramente se rebelavam. Reduzidos à condição de fornecedores de excedente comportamental, consumidores de produtos inteligentes e destinatários de experimentos de física social, os cidadãos pós-modernos que se sentem acolhidos/escolhidos pelo instrumentarianismo farão algo para romper seus grilhões? Shoshana Zuboff acredita que sim. Portanto, do seu pensamento crítico uma nova utopia está a nascer.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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