Benjamin e o olhar petrificante, por Rogério Mattos

Esperando Godot poderia ser encenado assim: uns sem face, sem identidade, sem nada que indique alguma personalidade a não ser as palavras faladas aqui e agora.

Fotografia da montagem de Esperando Godot, por Nelson Kao

Benjamin e o olhar petrificante, por Rogério Mattos

Na tela famosa não tanto pela pintura em si, mas por sua descrição, feita por Walter Benjamin, o anjo da história nega sua própria natureza, a do voo, ou seja, a do irremediável devir histórico:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (BENJAMIN, 1994, p. 226)

O anjo, tal como no Apocalipse, é o anunciador de uma nova ordem. Na concepção de Benjamin, ele procura negar o porvir ao pretender acordar os mortos e juntar os fragmentos. Sua face está desfigurada, suas asas completamente abertas. O anjo da história, ao contrário dos seres divinos da literatura religiosa, é aquele que diz não. Se um sempre foi sinal de boa ventura, o outro acumula ruína sobre seus pés. Ele é o profeta do caos, a negação do futuro, ainda que do paraíso a tempestade que sopra procure arrastá-lo, levando junto a si o rastro de insanidades que se somam num mundo onde ainda se costuma ver tudo sob a ótica de uma cadeia bem ordenada de acontecimentos. Os habitantes desse local, mortos e dispersos em meio às ruínas, só podem vê-lo como anunciador do passado: daí o sentimento de catástrofe para o anjo, pois gostaria de ficar e recolher as peças mortas de seu antiquário imaginário. É a transformação do mundo nesse museu de peças vivas que anela o anjo, as quais são mortas por cederem facilmente aos seus desejos de ser superior, cuja função é controlar marionetes.
O autômato aludido por Walter Benjamin em seu “Sobre o conceito da História”, chamado o Turco. Na portinhola à direita se escondia seu anão corcunda.
 
O anjo em Esperando Godot, de Beckett, não é desfigurado, porém cândido; não vai contra a ordem natural das coisas – muito pelo contrário, é o responsável por ratificar a continuação de tudo como está. É um anjo sem asas em um mundo sem configuração: apenas sua face de menino é que contrasta com o desolamento dos personagens, perdidos num tempo sem início e fim. O anjo da história perde-se em meio ao final dos tempos. O Menino queda-se impassível numa continuação sem fim. Em comum, ambos são anunciadores do passado, a negação das estruturas históricas, artífices de um mundo sem natureza, no qual os homens vegetam. Quem é Godot? O próprio anjo chamado Menino? Então já não seria menino, pois possuidor das chaves do paraíso, de uma promessa de futuro ainda que falsa, ou seja, como continuação do passado. Quem irá duvidar de face tão cândida? Frente ao anjo de rosto deformado e corpo decomposto, o Menino, de fala calma e às vezes até assustado como qualquer criança, não nos infunde nenhuma desconfiança. Como anunciador do futuro, é responsável pela criação de um não-tempo, de um mero jogo infantil onde as peças não param de se embaralharem e se desembaralharem, sem pressa para acabar, sem tempo para contar. O teatro de Beckett é esse jogo de máscaras, de eterna brincadeira. Máscaras não tanto do teatro grego, de formas fixas que nada sugerem. Antes, são como as máscaras do clássico carnaval veneziano: possuem mil formas, mil formas de esconderem, mil formas de sugerirem uma brincadeira, formas mil de proporem uma fantasia. Elas são a própria fantasia que pode estar em um corpo qualquer, com qualquer vestimenta ou mesmo sem ela. Porém, os personagens de Esperando Godot estão num lugar imaginário, de tempo inexistente. Nenhum lócus, nenhum tempo. Nada sugere nada. Estragon dorme num buraco; Vladimir anda com cenouras e nabos tirados não se sabe de qual mesa, de qual habitação, e não se sabe até se tirada de alguma plantação. Esperando Godot poderia ser encenado assim: uns sem face, sem identidade, sem nada que indique alguma personalidade a não ser as palavras faladas aqui e agora. Não é por acaso que a maioria de seus personagens perde a memória com facilidade. Uns mudam de hábitos, outros não, mas todos vivem como se num constante agora. Os que aparecem sem identidade são os que num primeiro momento podem ser considerados protagonistas da história. Vladimir, o eu-onisciente do drama, o que sempre faz lembrar o objetivo de toda a peça, à espera de Godot, não tem passado e o futuro lhe é continuamente negado. Sem continuum histórico, aparece ao espectador como um “dado imediato da consciência” não perfeitamente identificável. Seus motivos, suas raízes, sua razão de ser, é toda vez negada ao espectador, a não ser quando se fala da figura onipresente de Godot. Ele tira sua onisciência da onipresença do personagem fantasmagórico, sobre-determinando sua personalidade, encobrindo-a a ponto de não mais torná-la compreensível. Estragon, o eu-eunuco do enredo, parece sobre-determinado por Vladimir, pois parece durante toda a peça simplesmente estar, sendo determinada sua presença pela lembrança constante de Vladimir da iminência de se chegar Godot. Eu-eunuco por que cumpre a função ritual de acompanhar seu interlocutor, mas que poderia ser simplesmente uma árvore ou algum outro objeto inanimado que está disposto no palco somente para dar um sentido externo ao núcleo de sentido central do drama. À chegada das personalidades macabras de Pozzo e Lucky, Estragon encena com eles não como um eu-consciente, mas tão jocosa e despreocupadamente que facilmente poderia ser associado ao seres fantásticos, como árvores ou pedras falantes, presente nas fábulas populares. A partir desse momento, Vladimir torna-se espectador, só intervindo de um modo que faça lembrar o sentido geral do enredo, ou seja, no seu papel de eu-onisciente, mas sem intervir na fábula que passa a representar os outros três personagens, completamente despreocupados do que se entende por verossimilhança. Sendo assim, quem é o narrador da fábula que é encenada com a chegada de Pozzo e Lucky? Quero dizer, Vladimir ou Pozzo? No primeiro ato, Pozzo parece tomar conta da cena ao zombar do nome de Godot e desfilar com seu chicote, tornando-se onipresente em todas as situações, fazendo o que bem entende com Lucky, e justificando com as melhores razões aquele tipo de servidão. Pozzo é quase o Godot que aparece. Agora, tão óbvia quanto essa afirmativa é constatar que o narrador da fábula é Vladimir, fábula esta que se caracteriza pela presença de um bufão, de um ser fantástico com poderes mágicos, e um ser falante do mundo natural. Talvez não estejamos sendo suficientemente claros: Pozzo é um Bufo, não há dúvidas quanto a isso. Mas ele só é Bufo na medida em que é o herói da fábula. Ele é um herói tão ruim, mais tão ruim – sem qualidade alguma – que só pode ser entendido como o reverso do heroísmo. É aonde o mito do anti-herói chega ao seu ápice. O anti-herói é ainda herói, ainda que descaracterizado, ainda que representado como o avesso da imagem romântica da virtude. Como tal, não é um caráter anti-virtude, mas a extrapolação do emblema trágico, o herói destituído de forças: Aquiles derrotado, mas vivo enquanto fantasma – ou fantasmagoria.
Será com o terrível Leviatã que sonha os que oferecem a solução para nossa mazelas? Um governo de solução nacional, com o Supremo, com tudo…
 
O anti-herói é um herói de trás para frente. Encarnado na figura de Pozzo, o trágico torna-se cômico, num riso que não alcança a gargalhada – não é esse o objetivo –, mas que cai num aturdimento, numa espécie de desalento logo contrariado pela sucessão de cenas aparentemente desconexas e irremediavelmente desconcertantes, que não deixam o aturdido ficar desalentado. O ritmo da peça, a sucessão de cenas desconexas, o para-diálogo composto pelos personagens fantásticos (Pozzo, Lucky e Estragon), se contrapõem a um fundo imóvel e que, sem nenhum apelo a qualquer espécie de realismo fantástico ou ao maravilhoso, provocam um tipo de identificação indelével na assistência. A angústia do esperar um não sei o quê que nunca chega ao fim, uma aparente falta de sentido em todo aquele objetivo supremo do espetáculo, a mera e calma constatação de não ser ninguém em meio a um mundo que procura não se revelar, que se oculta a todo instante, que esta aí e se nos revelará com toda a simplicidade em um encontro datado com alguém que, apesar de não conhecermos, vai dar todo o sentido para aquilo que procuramos – esse é o fundo exteriormente imóvel do espetáculo, que se move como um redemoinho no interior daquele que observa sem esconder a angústia, produtora do desalento à exaustão das forças físicas e psíquicas, e que somente não se realiza devido a repetição das mesmas cenas sem sentido e sem nexo. Esse mecanismo de retroalimentação da angústia que procura não ter fim devido ao inacabamento do enredo mesmo depois de horas de encenação, e a contínua tentativa de explicação por parte dos espectadores bem depois de terem saído do espetáculo – horas, dias, décadas depois – é o motto interno da peça e o que lhe abre a significação. O que se contrapõe ao anti-herói é o seu santo graal, sua pedra filosofal, a princesa recuperada das garras do dragão. Lucky canta, dança e filosofa. É o responsável direto pela existência de Pozzo, seu sentido de vida, ainda que totalmente subordinado, sem qualquer beleza, sem qualquer inteligência, nenhuma virtude – é um escravo dos mais vis, como sempre repete Pozzo. Mas Lucky, como uma flor que simboliza a esperança, é o lado feminino do espetáculo – sem ele talvez Pozzo pudesse substituir qualquer um dos outros dois personagens, Vladimir ou Estragon, não só em inépcia como também na procura por Godot. Se Pozzo à sua chegada confunde os personagens que esperam, é porque ele só é Godot na medida em que achou o que procurava. Assim, Lucky faz as vezes de Godot. Estragon como pedra falante, árvore cantante, nuvem sorridente, é assim por ser quem ilustra o idílio de Pozzo e Lucky. É este que chuta Estragon nas duas vezes que aparece. É o amigo de Vladimir que cerca sempre com muita curiosidade a “donzela encantada” possuída por Pozzo. Ele é a própria natureza que fala e interage com os personagens que compõe o Idílio. É a natureza sorridente e inocente, o avesso de Vladimir, o que nunca esquece Godot. Apesar de Pozzo tomar toda a cena durante a primeira parte da peça – desde o momento em que aparece pela primeira vez é onipresente em todas as representações –, é Vladimir o verdadeiro narrador da fábula, sendo Pozzo seu herói. Podemos ver em dois momentos, ambos fazendo parte da conversa entre Vladimir e Estragon quando decidiam se iam resgatar Pozzo e Lucky da queda que tiveram:

Só o animal selvagem corre precipitadamente, sem um momento de reflexão, em auxílio de seus semelhantes, ou então escapa-se, com igual prontidão, para o mais fundo recôndito da floresta. Mas o nosso problema é outro. Que fazemos nós aqui? Esta é que é a interrogação que devemos por a nós mesmos. E, felizmente, temos boa sorte de saber a resposta. Sim, no meio desta gigantesca confusão, só uma coisa é clara: esperamos pela vinda de Godot. (…)

Esperamos. E enquanto esperamos, o tédio vence-nos. Não vale a pena negares: é evidente que transpiramos tédio por todos os poros. Ora, muito bem. Aparece-nos um divertimento inesperado, e o que fazemos? Desperdiçamo-lo. Vamos a isto. Dentro dum instante tudo se terá dissipado e ficaremos outra vez sozinhos num deserto de solidão. (BECKETT, sem ano de publicação, p. 121)

Vladimir é o narrador da fábula na medida em que não se envolve nunca com o que está acontecendo na encenação. Ao mesmo tempo, é onipresente pois é quem traz Estragon ao encontro de Godot, é quem chama aquele quando ouve que alguém se aproxima, escondendo-se, é o que fica distante enquanto Estragon tenta falar com Lucky, comer seu osso de galinha; é Vladimir quem provoca as reações de Lucky, cantar, dançar, pensar; é quem questiona sobre as razões daquele tipo de relação entre Pozzo e Lucky; é, enfim, quem sempre lembra de Godot, quem sente e expressa o vazio das horas, quem vê causa e conseqüências em meio ao absurdo da narrativa. No entanto, essa distinção pode ser muito bem atenuada através dos meios pelos quais sejam representados os personagens. Pozzo e Lucky com máscaras venezianas. Estragon e Vladimir sem face, como as máscaras cor de pele que costumam usar assaltantes em diversas ocasiões. A distinção entre os dois protagonistas passa então a ser puramente formal: talvez um mais alto que o outro, mais gordo ou mais magro que o outro. O narrador-onisciente passa a ser um só, ainda que formalisticamente distinto, ao passo que a dupla de seres fantásticos, Lucky e Pozzo, imitam os sátiros, os foliões venezianos, animalescos e animados como as bestas carnavalescas. Daí, o caráter de fantasia da peça se aprofunda, ao marcar uma distinção não em apenas quatro personagens, mas através de duas duplas estanques entre si. A pedra falante, Estragon, poderia ser Vladimir, enquanto aquele, o desmemoriado, confunde-se com a onisciência do ator-narrador. Temos o nada, a ausência de faces, que aponta para a indeterminação do futuro contida na peça. Temos, por outro lado, a multiplicidade de formas daquela terra de estrangeiros e mercadores, pais do capitalismo financeiro internacional, terra-mãe da Peste Negra, e de todos os desastres econômicos até hoje, baseados num sistema financeiro animalesco e que se impõe sempre como farsa. Os dois personagens sem face poderiam remeter a “tabula rasa” lockiana, podendo ser determinados pela insensatez inerente à oligarquia veneziana, mas que são indeterminados pelo futuro representado por Godot na imagem de seu anjo, o Menino. Este, antes de ser um mero animal como quer fazer acreditar a fábula lockiana, sem qualquer consciência antes que a inculquem uma, é o anjo que se faz gente e se pretende anunciador de uma espécie de final da história. A angústia becketiana, porém, é de duas faces. Se permite a indeterminação relativa ao fim último dos personagens, não é para se fechar num uníssono anti-histórico. Guarda, pois, o caráter de revelação, já que ao anjo, antes, desvela uma situação irremediável do que a encobre. A indeterminação da peça é a força motriz da revelação que se dá através do teatro. Ele revela o que o anjo da história tem nos ensinado: quem faz a História está fora do tempo, ou seja, das narrativas oficiais. Porém, determinará este anjo o tempo? Deverá ser o não-tempo do enredo becketiano um tempo absoluto, de angústia infinda e, portanto, de prostração e desconsolo? Só se Beckett trabalhasse com o determinado e não com o caráter indeterminado da revelação. Esta aponta para o futuro, mas qual futuro? Por isso se questiona ao anjo, como a um profeta. Por isso se combate o anjo, caso reconheçamos sua angelidade infernal.
A “acedia”, segundo Klee e Dürer
 
Benjamin relembra, em suas reflexões sobre a história, o caráter de empatia da historiografia de raiz positivista: “Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história” (BENJAMIN, 1994, p. 225). A raiz da empatia seria a acedia, entendida pelos teólogos medievais como o primeiro fundamento da tristeza.

A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (BENJAMIN, 1994, p. 225)

Benjamin se encontra numa encruzilhada histórica onde as velhas fórmulas historicistas baseadas na filosofia positiva de Comte trazem cada vez menos compreensão, provocam mais e mais questionamentos, principalmente no que se refere a sua fórmula de idealização histórica, como na Cidade Antiga. À simples fórmula da empatia, da tentativa de resgatar o passado “como ele foi”, é contraposta a abstração da reflexão sociológica dos estudiosos da ciência social de Émile Durkheim. Nasce assim, sempre dentro do seio do positivismo, a prolífica Escola dos Annales, também na França. Porém, Walter Benjamin dialoga com determinado aspecto da reflexão social, a que nasceu em berço alemão, de cuja dialética se extraiu o marxismo. Naquele momento, as forças políticas consideradas progressistas se debateram num contra senso histórico, já que apesar de todo seu idealismo, não foi capaz de refrear o horror nazista e o antigo fascismo à romana. Ao mesmo tempo em que reconhece o pioneirismo dos materialistas históricos, inicia uma forte crítica a mesma filosofia, fundamentando-se no papel da social-democracia frente a escalada reacionária no continente europeu. Chega a sugerir um Estado de exceção para combater o Estado de exceção produzido pelo nacional-socialismo. Nele podemos encontrar o desejo tão contemporâneo de muitos setores que hoje se acreditam politizados, os quais buscam o fim da política para resolver os problemas políticos. É o mesmo desalento, a mesma falta de perspectiva, o mesmo criticismo infundado, pois não consegue estabelecer metas de governança capaz de sustentar uma nação que pretende se desenvolver. Procurando o papel da política, rompe radicalmente com ela, e abraça a mesma ideologia autoritária, supra-partidária, puramente ideológica, que foi a base de todos os horrores do século XX. Por isso seu anjo é ambivalente. Por isso ele não pode ser abordado sem uma profunda consciência histórica transversal a linha que se pretende descendente, ou seja, que pretende chegar ao Estado de exceção, ainda que esse Estado seja criado com as melhores intenções. Em sua ambigüidade, e longe dos méritos que podemos encontrar, por exemplo, em uma Rosa Luxemburgo na crítica à social-democracia, retrabalhamos o que seria sua “história a contrapelo”, termo que se tornou tão notório entre a intelectualidade quanto seu anjo da história. Rosa Luxemburgo, no capítulo 30 de sua Acumulação do Capital, traça de forma pioneira a gênese do capitalismo financeiro à moda britânica, no caso específico da espoliação do Egito pelo império britânico. Não há nada mais correto inclusive se pensarmos na Alemanha de Weimar, no período do entre-guerras, e na dívida impagável, à la FMI, que abriram caminho para Hitler. Ali, podemos encontrar uma escritora às margens do marxismo, ultrapassando suas barreiras históricas, e assim tornando-se capaz de compreender o que a social-democracia jamais compreenderá. Prova recente disso é o desastre do euro, ou seja, da união política de um país baseada numa união monetária. Lá, agora, não grassa mais a social-democracia ou o conservadorismo tradicionais, mas pura e simplesmente o fascismo em sua vertente eminentemente econômica e não mais puramente burocrática e policial. Sim, a história da social-democracia é uma história a contrapelo, uma história conhecida só pelos não vencedores, só por aqueles que têm a coragem de olhar cara a cara o Anjo. Não pela acedia, não pela tristeza melancólica de um romantismo frustrado, de um comunismo irrealizável pois utópico, pois não humano tanto no campo científico quanto político. De qualquer forma, todo nós somos herdeiros não da euforia do pós-guerra, quando houve o orgulho – em boa parte aparente – de se ter livrado de um dos maiores males; de ter exorcizado o indizível. Somos tristes herdeiros ainda do mundo da cortina-de-ferro, da lógica da guerra fria, aos quais os seguidores da social-democracia, aqui no Brasil, ao ocupar novamente cargos fundamentais – como todos os da área econômica do governo ilegítimo – fizeram acentuar ainda mais a acedia, ou, compreendido em termos da antiguidade grega, a stásis, a guerra interna, civil. Fez essa social-democracia, converter para si muitos dos sonhos do período pós-ditadura, jogando-os no lixo com um programa de aparência progressista e performance reacionária, responsável por três quebras sucessivas de nossa economia, a transformação da moeda nacional em instrumento pornográfico – sua dolarização -, que ainda se mantém para “combater a inflação” e fazer aumentar a carestia, pois sem trabalho e renda dignos não adianta um inflação de dígito zero. Modernização conservadora que nos faz tão próximos da antiga euforia com o euro… Não por outro motivo, e agora mais do que nunca, caímos na crise sem fim que assola o lugar das “democracias progressistas” dos países banhados pelo Atlântico norte. Será com o terrível Leviatã que sonha os que oferecem a solução para nossa mazelas? Um governo de solução nacional, com o Supremo, com tudo… Que espécie de tristeza (acedia) nos leva a nos identificar com os monstros do passado, com os vencedores contumazes, em suma? E novamente somos levados pelas prestidigitações do anão turco,o que vence todos os jogos de xadrez, como se por força de uma inteligência invisível ou do acaso… Quem quiser ver uma reaparição do Turco das teses de Benjamin, ver Teoria do domínio da mídia.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios de literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. BECKETT, Samuel. Teatro de Samuel Beckett. Lisboa: Arcádia, sem ano de publicação. O texto na íntegra também está em pdf no Academia.edu. Clique aqui para acessar. Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.
Redação

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