Borboletas e matemática: Uma introdução à teoria do mimetismo, por Felipe A. P. L. Costa

Por Felipe A. P. L. Costa

Borboletas e matemática: Uma introdução à teoria do mimetismo

De um ponto de vista biológico, os termos camuflagem e mimetismo não significam a mesma coisa e, portanto, não devem ser tratados como sinônimos. Em termos ópticos, diz-se que um animal está camuflado quando o aspecto geral do seu corpo (uma combinação envolvendo forma, coloração e postura) faz com que ele se torne mais ou menos indistinto em relação ao fundo, seja este um substrato abiótico ou parte do corpo de outro ser vivo. Veja o caso de um gafanhoto que se confunde com as folhas de uma árvore ou o de um sapo que se confunde com a serapilheira no chão da floresta. Em ambas as situações, a semelhança com o fundo dificulta a detecção da presa por parte de predadores que se orientam visualmente.

Diz-se que há mimetismo visual quando os integrantes de duas ou mais espécies são tão semelhantes entre si a ponto de um predador não conseguir distingui-los com facilidade. Note que o mimetismo dificulta o reconhecimento, não a detecção. Além disso, diferentemente do que se passa na camuflagem, os envolvidos aqui interagem, decorrendo daí benefícios, seja apenas para o mímico (mimetismo batesiano), seja para as duas ou mais espécies envolvidas (m. mülleriano). Os termos batesiano e mülleriano são uma alusão ao naturalista inglês Henry Walter Bates (1825-1892) e ao naturalista brasileiro de origem alemã Fritz [Johann Friedrich Theodor] Müller (1821-1897).

Mimetismo batesiano

O uso de um mesmo sinal visual por linhagens distintas, sobretudo entre os insetos, é um fenômeno conhecido desde a Antiguidade (referido como analogia mimética). Todavia, a explicação que damos hoje a esse fenômeno, proposta por Bates, só apareceria em 1862.

Bates foi amigo e companheiro de viagem de Alfred Russel Wallace (1823-1913). Os dois estiveram juntos no Brasil, aqui chegando em 26/5/1848. Eles se estabeleceram nas proximidades de Belém e, nos primeiros meses, viajaram juntos. A partir de junho de 1849, porém, aparentemente após uma desavença, passaram a viajar separados. Wallace permaneceria na Amazônia até 1852, enquanto Bates ficaria mais sete anos, indo embora (adoentado) em 1859.

Com base em seus estudos de borboletas amazônicas, notadamente as espécies aposemáticas (leia-se de colorido vistoso e chamativo) que observou em Vila do Ega (atual Tefé AM), Bates (1862) relacionou o aposematismo ao gosto (e cheiro) desagradável de algumas delas. O seu artigo foi o primeiro, com base em estudos conduzidos no campo, em situações naturais, a oferecer sustentação para a ideia de evolução por seleção natural (ver ‘Sobre o darwinismo’). E ele fez isso de modo bastante elegante e convincente.

Presas impalatáveis (ou de algum outro modo perigosas) tenderiam a advertir seus predadores a respeito de suas propriedades, evitando assim algum tipo de contato desnecessário (visto que a presa não é comestível). A efetividade da advertência, por sua vez, abre uma janela de oportunidades: emitindo um sinal de advertência semelhante, presas palatáveis podem passar a imitar um modelo impalatável, obtendo assim alguma proteção contra predadores. Se o nível de proteção aumenta com o grau de semelhança, a seleção pode fazer com que a aparência geral dos mímicos se confunda com a os modelos, a ponto de torná-los praticamente indistinguíveis.

O predador, o modelo, o mímico

Cabe observar que a relação acima é assimétrica: o mímico se beneficia da semelhança, mas o modelo não. Sempre que o predador captura e rejeita este último, há um reforço na aversão ao padrão geral. Todavia, se o predador captura e destrói o mímico, há um contrarreforço: como o mímico é palatável, o predador investirá novamente contra aquele tipo de presa – i.e., alguns indivíduos impalatáveis (modelo) poderão vir a ser feridos ou destruídos. O mimetismo batesiano seria assim um tipo de parasitismo.

Para que um sistema batesiano funcione, são necessários ao menos três personagens, o predador, o modelo e o mímico, e eles devem obedecer a alguns critérios. O predador, por exemplo, deve explorar uma dieta minimamente seletiva; ele não pode simplesmente se alimentar de toda e qualquer presa que encontra. Ele também deve ser capaz de reconhecer e discriminar diferentes tipos de presa (e.g., palatáveis vs. impalatáveis). A capacidade de discriminação às vezes é inata, mas pode ser também uma questão de aprendizagem, de modo que os indivíduos vão ajustando o seu comportamento ao longo da vida.

O mímico, por sua vez, não pode ser mais abundante que o modelo. Para entender a relevância deste critério, é bom lembrar que, em meio a uma comunidade que abriga modelos e mímicos, as chances de capturar aleatoriamente um ou outro dependem das abundâncias relativas de cada espécie. Quando o modelo é mais abundante que o mímico, podemos esperar que o reforço à aversão prevaleça sobre o contrarreforço, pois a chance de capturar (e rejeitar) o modelo é maior do que a chance de capturar (e destruir) o mímico. Sob tais circunstâncias, o sistema continuará funcionando, pois novas gerações de predadores poderão ser educadas.

Mimetismo mülleriano

De origem alemã, Fritz Müller chegou ao país em 1852, indo morar na região de Blumenau (SC). Manteve contato com vários naturalistas, incluindo Darwin, o qual passaria a se referir a ele como o ‘príncipe dos observadores’. Em 1879, Müller publicou uma explicação inovadora para uma questão não tratada por Bates: por que presas aposemáticas e igualmente impalatáveis tendem a ser tão parecidas entre si?

De acordo com a inovadora interpretação de Müller (1879), a semelhança de aspecto entre espécies aposemáticas e igualmente impalatáveis – ditas comímicas – seria o resultado da evolução convergente para um mesmo padrão corpóreo, tornando-as assim tão semelhantes entre si. A força de tal convergência decorre do seguinte: sempre que o predador captura e rejeita um dos comímicos (afinal, todos são impalatáveis), há um reforço na aversão ao padrão geral. Todas as espécies envolvidas se beneficiariam, estabelecendo-se assim um tipo de mutualismo.

Coda

No âmbito da teoria evolutiva, o modelo de Müller foi o primeiro a fazer uso de argumentos matemáticos [1], uma ‘tradição’ que se manteve ao longo dos anos (e.g., Benson 1977; Ferreira & Marcon 2014).

Outros tipos de mimetismo foram posteriormente descritos, como o m. agressivo ou peckhamiano – alusão ao casal de naturalistas estadunidenses George (1845-1914) e Elizabeth Peckham (1854-1940) –, por meio do qual alguns predadores conseguem se aproximar ou atrair suas presas.

Vale registrar ainda que (i) embora estejamos tratando apenas de mimetismo visual, há casos envolvendo outras modalidades sensoriais (e.g., audição); e (ii) embora estejamos recorrendo tão somente a exemplos com animais, há casos envolvendo outros organismos, como no mimetismo floral, envolvendo plantas e animais polinizadores.

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Nota

[1] Em termos populacionais, o mimetismo mülleriano implicaria em ganhos numéricos significativos. Nas palavras de Müller (1879, p. xxvii; tradução livre):

Sejam a1 e a2 os números de duas espécies de borboletas impalatáveis em certo distrito durante o verão e seja n o número de indivíduos de uma espécie particular que são destruídos no transcorrer do verão antes que a sua impalatabilidade seja de conhecimento geral.

Se as duas espécies são totalmente diferentes, então cada uma perde n indivíduos. Porém, se elas são indistintamente semelhantes, então a primeira perde a1n / (a1 + a2) e a segunda a2n / (a1 + a2).

O ganho absoluto devido à semelhança é, portanto, de n – a1n / (a1 + a2) = a2n / (a1 + a2) para a primeira espécie; e, de modo semelhante, de a1n / (a1 + a2) para a segunda.

Este ganho absoluto, em comparação à ocorrência das espécies, dá I1 = a2n / a1(a1+a2) para a primeira e I2 = a1n / a2(a1+a2) para a segunda, de onde segue a proporção I1:I2 = a22:a12.

Em outras palavras, sejam duas espécies distintas de presas, 1 e 2, cada uma delas sofrendo uma perda anual de n indivíduos (caso I), sendo n o número de vítimas que um predador faz antes de passar a evitar cada espécie. Ocorre que, se as espécies 1 e 2 são indistintamente semelhantes, a perda conjunta passaria a ser de n indivíduos (caso II), o que equivaleria às seguintes perdas proporcionais:

a1n / (a1 + a2), para a espécie 1, e

a2n / (a1 + a2), para a espécie 2.

A semelhança de aspecto, portanto, conferiria ganhos numéricos às espécies envolvidas, os quais equivaleriam ao número de indivíduos que deixariam de ser destruídos em razão da semelhança de aspecto entre as duas espécies. Em termos absolutos, os ganhos corresponderiam a

n a1n / (a1 + a2), para 1, e a

n a2n / (a1 + a2), para 2.

Sabendo-se que n = a1n + a2n, as relações acima podem ser expressas do seguinte modo:

a2n / (a1+ a2), e

a1n / (a1+a2).

Levando em conta o tamanho de cada população (a1 e a2), podemos calcular os respectivos ganhos relativos. Assim, fazemos

I1 = [a2n / (a1+ a2)] / a1 = a2n / a1(a1+ a2), e

I2 = a2n / a2(a1+ a2).

A proporção entre os ganhos relativos, comparando-se as espécies 1 e 2, equivaleria a I1/I2 = a2n / a1(a1+ a2) / [a2n / a2(a1+ a2)] = a2 / a1, indicando que o ganho advindo da semelhante é inversamente proporcional ao tamanho populacional – i.e., quanto menor o tamanho populacional, maior a vantagem relativa advinda do mimetismo.

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Referências citadas

+ Bates, HW. 1862. Contributions to an insect fauna of the Amazon valley. Transactions of the Linnean Society of London 23: 495-566.

+ Benson, WW. 1977. On the supposed spectrum between Batesian and Müllerian mimicry. Evolution 31: 454-5.

+ Ferreira, WC, Jr & Marcon, D. 2014. Revisiting the 1879 model for evolutionary mimicry by Fritz Müller: new mathematical approaches. Ecological Complexity 18: 25-38.

+ Müller, F. 1879. Ituna and Thyridia: a remarkable case of mimicry in butterflies. Transactions of the Entomological Society of London 1879: xx–xxix. (Versão algo diferente do trecho reproduzido aqui aparece no último capítulo do livro organizado por A. Fransozo & M. L. Negreiros-Fransozo, Zoologia dos invertebrados [Roca, 2016], em tradução de Luiz Roberto Fontes & Stefano Hagen.)

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[Nota adicional: extraído e adaptado d’O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017); para informações adicionais sobre o livro, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, ver aqui; para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.]

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