Carta à filha da mãe, por Matê da Luz

Por Matê da Luz

Querida minha,

Vez ou outra eu escrevo pra voltar a caber em mim, e hoje estou assim. Chorona também, você me conhece o suficiente pra saber que meu maremoto é natural, forte e movimenta oceanos. 

Daí que chegou um momento da vida que eu entendi porque a coisa toda com seu pai me incomoda tanto, mesmo que pareça não te incomodar. Você é esta menina sensível, que consegue amar e ser amada e não apresenta sinal visível de dano emocional, é uma moça equilibrada, linda, tão linda que até manhã cedo me faz sorrir e que fica doentinha vez ou outra mas não acredita que pode ser emocional. Verdade seja dita, uma ou duas vezes no ano você vem pra cima de mim com unhas e dentes, mas pode vir, querida, vem mesmo, não guarda isso pra você não e pode ter certeza que nenhum desses momentos vai fazer com que meu olhar de amor, meu compromisso de amar você e de me transformar com você, meu desejo de viver a vida com você, enfim, nada do que aconteça vai fazer isso mudar. Nada, nem a pior coisa do mundo que eu nem quero imaginar qual seja, porque em mim dói tanto essa coisa de imaginar coisa ruim acontecendo com você. 

Aprendi que em psicologia o indivíduo tem medo de deixar de receber o amor dos pais, querida, e faz sentido pra mim, porque eu me enrolei toda na minha própria vida por conta de umas trezentas e noventa e nove situações que representam essa rejeição e, ufa, você sabe, tem sido uma batalha filha da puta e dolorida e exaustiva pra sair daqui, mas vamos lá, né, esse maremoto todo também serve pra lavar a alma e realizar a tal da evolução a qual a gente se pré-dispôs antes de vir pra cá, pra esse planeta de evolução, concorda? Não, você não concorda porque esse papo místico é um saco pra você e aí está mais uma coisa que eu acho muito foda em você que é esse seu lance de acreditar no que você quer acreditar, sendo autêntica, que é uma característica incrível num ser humano e eu te admiro demais da conta por isso. 

Daí que eu fico assim, sem saber o que fazer, e ficar sem saber o que fazer também é bem ruim pra mim porque eu me cobro todo esse atraso de vida, repetindo de ano na questão do “seja auto-suficiente” até que, puts, quando abri os olhos tem coisa que eu já queria ter feito e ter dividido com você, tem um monte dessas coisas e pra não atrapalhar o andamento da rotina de trabalho, trabalho e mais trabalho eu não posso entrar no looping de querer ser perfeita, enfim, esse tal de equilíbrio é algo que tento experimentar como novidade aqui – e, olha, ele tem um gostinho bom, filha. Posso me acostumar com ele. Fico sem saber o que fazer porque sei do tanto de movimentações e mudanças e de amor que desprendi e desenvolvi em mim pra você ser assim, do jeitinho que você é e para que, importante, você se sinta livre e segura pra expressar quem você é, do jeitinho que você é, independente de eu ter contribuído ou não pra você ser assim. Eu chamo a nossa relação de mágica e eu desejo pra todas as minhas amigas que consigam exercer a maternidade de um jeito parecido com o que eu faço, que é amando de verdade, entendendo que amar é troca e que troca pressupõe mais de um.

E então descobri, querida, que eu fico puta com seu pai porque ele deveria ser parte disso, é claro, naturalmente, porque eu não te fiz sozinha, e não estragar isso com a ignorância e a insensibilidade dele, mas especialmente porque eu penso no tamanho do machucado que as minhas próprias experiências lidas como abandono causaram em mim e eu simplesmente não quero que isso aconteça com você. Eu não quero que a sombra de ninguém venha ofuscar o sol que é você, filha, e eu fico fazendo esse exercício de separar as nossas histórias e de permitir que você tenha suas próprias batalhas mas, ai, como é difícil enxergar que tem algo que não é orgânico, natural para os humanos, acontecendo com você. É, linda, para os humanos, porque a gente fuciona assim, com esse ninho parental – alguns bichos na natureza, você sabe?, não são assim: eles nascem e já são tacados no mundo. Parece mais livre, né?, mas vale lembrar que eles não têm psiquê, consicência e, portanto, têm muito menos complexidades pra interferir na vida. Eles pintam por aqui, colorem o mundo e vão, meio simples assim. 

Mas a gente, querida, a gente é humano: e humano tem tanta característica que tá cheio de outros humanos pra ajudar a gente por aqui, enquanto a gente está aqui, seja vivendo a minha crença de cumprir com alguns combinados e evoluir, seja vivendo a sua crença de estar aqui pra embelezar o mundo. (cada ve que termino de escrever sobre você eu sorrio, amor, porque é mesmo mágica a vida assim). Enfim, filha, humano sente as coisas e não sente necessariamente do jeito que elas são, porque o jeito que elas são está condicionado à interpretações e interpretações dependem de vivências pessoais e, quer saber?, estou começando a entender aquele papo de agradecer por toda e  cada experiência de vida porque, filha, meu amor, se cada uma delas me conduziu pra cá, que é este lugar de ser sua mãe e ser uma mãe completa, com infinitas movimentações que vão pra lá e pra cá, entre um bom demais e um ruim pra caramba, poxa, isso só pode ser um presente. 

E minha braveza e a tristeza e as indagações sobre os porquês do outro vão se acalmando, se dircionando praquele lugar do eu não me importo, sabe?, e eu respiro aliviada porque você é você, e porque por maior que seja meu esforço pra te proteger do que acho que é do mal por aqui, ah, que saco!, isso é pouco provável. O que eu posso fazer, e acho que está claro pra você, é estar do seu lado, mãos estendidas, seja pra fazer carinho antes de dormir toda noite ou pra brigar pra que arrume um trabalho de final de semana e comece a movientar sa autonomia. 

Porque ser filha de uma mãe em movimento, maremoto e raios de mudanças, querida, tem dessas: algumas vezes são as primeiras e as primeiras são sempre mais sensíveis. Mas são as que servem de referência e, então, fica tudo bem em ser essa tempestade toda, pra soprar os ventos da liberdade de ser assim, tão clara.

Mariana A. Nassif

2 Comentários

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  1. Plexo braquial

    Querida Matê,

     

    A figura que ilustra o artigo mostra uma mãe brincando com sua filha, cuja altura relativa indica idade entre três e quatro anos, rodando-a pelos braços, brincadeira que não raro causa a ruptura do plexo braquial, que são a enervação dos membros superiores, demanando intervenção cirurgica dolorida e de delicadíssima recuperação, tendo a criança que usar colete gessado por cerca de 45 dias, até a completa cicatrização. A culpa por estas lesões é a ignorância das mães, que logicamente jamais infringiriam tão grandes sofriumentos aos filhos, mas principalmente de médicos e enfermeiras pediatras, que não as orientam a evitar suspender seus filhos pelos braços, para atravessar uma poça d’água, por exemplo.

    A causa imediata da ruptura do plexo braquial é que crianças muito novas não tem estruturas de tendões e musculatura que suportem a própria massa, ocasinando a distensão do enervamento para além de sua elasticidade máxima.

    Gostaria que você alertasse as mamães sobre o perigo de repetição da brincadeira ilustrada no seu artigo, para que tentemos zerar as cirurgias para recomposição de nervos de crianças…

     

    Um abraço

    ROBERTO F. COSTA

    [email protected]

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