Jorge Alexandre Neves
Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.
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Metafísica normativa, por Jorge Alexandre Neves

A dinâmica econômica dos próximos dois anos irá, em boa parte, ditar o que vai ocorrer em 2022.

Luix Baltar

Metafísica normativa

por Jorge Alexandre Neves

Em seus mais importantes livros publicados nos últimos vinte anos, Amartya Sen sempre promoveu um importante debate com a chamada Teoria da Justiça de John Rawls. No mais recente desses livros (1), ele de certa forma “encerra” esse debate ao propor sua própria “Teoria da Justiça”. Ali, encontra-se uma proposição crítica da abordagem de Rawls (2), ao identificá-la com uma tradição contratualista da filosofia, que apresentaria um caráter fundamentalmente normativo. Para Sen, a tradição contratualista de Rawls levaria a certo “transcendentalismo”, visto que sua abordagem parte de uma situação hipotética de agentes cobertos por um “véu de ignorância” fazendo escolhas sobre princípios básicos de justiça, que seriam o “princípio da liberdade” e o “princípio da diferença e da igualdade”. Sen (3) contrapõe tal visão através da proposição de sua abordagem, a partir da Teoria da Escolha Social, que busca “… a avaliação de combinações de instituições sociais e padrões de comportamento públicos sobre as consequências sociais e realizações que eles produzem” (p. 98). Ou seja, para Sen, sua abordagem estaria centrada na análise fundamentalmente do comportamento empiricamente observado dos indivíduos (uma abordagem mais descritiva ou mesmo analítica, em contraste com a normatividade da tradição continuada por Rawls) e não na busca da proposição basicamente metafísica de instituições perfeitas.

James Coleman (4), por sua vez, faz uma crítica a Rawls que, em alguns aspectos (apenas em alguns aspectos) se assemelha àquela feita por Amartya Sen. Em determinado momento do seu texto, Coleman afirma que uma teoria da justiça “para ser útil, precisa reconhecer que contratos sociais ou constituições são feitos e modificados por pessoas, cada uma das quais tem expectativas sobre suas posições futuras, expectativas que diferem, até certo ponto, das expectativas das outras pessoas” (p. 762, tradução minha). Como sociólogo empírico que era, Coleman se sentia incomodado com o “transcendentalismo” metafísico de Rawls (para utilizar o termo proposto por Sen).

Resgato esse debate feito por dois cientistas sociais – um economista e um sociólogo – a respeito de uma obra filosófica, para iluminar minha leitura de um artigo recente do filósofo Marcos Nobre (5). Sem me deter num esforço exegético, trago uma sentença do artigo que penso ser a melhor representação do que estou buscando pontuar: “De maneira interessada ou não, democratas se encontram em estado de negação da realidade”.

O primeiro problema que vejo nessa afirmação é a delimitação extremamente impressiva de quem seriam esses “democratas”. Como tenho pontuado em vários dos meus artigos aqui no GGN, muitos, se não a maioria, dos que têm sido considerados “democratas” entre os políticos profissionais brasileiros têm apoiado alegremente o uso de ações judiciais totalmente ilegais – desde que para perseguir seus adversários – e, ainda mais grave, participaram de forma entusiasmada de um golpe de Estado iniciado por um ato totalmente ilegal de um juiz de primeira instância e de procuradores da força tarefa da lava jato. Para se perceber o baixíssimo nível de compromisso democrático de boa parte dos parlamentares brasileiros, basta ver o esforço – ora no Senado ora na Câmara – para se fazer uma PEC buscando mudar uma cláusula pétrea da CF-88 (referente à regra geral de prisão apenas após trânsito em julgado), algo inaceitável em um Estado Democrático de Direito (só uma nova constituinte poderia fazê-lo). Adicionalmente, como também tenho ressaltado em outros textos, uma maioria parlamentar tem levado adiante uma agenda legislativa que aprofunda a crise social brasileira, empurrando o país para o populismo. Se os tais “democratas” forem buscados em atores políticos de fora do sistema partidário, pior ainda. Tanto no judiciário quanto no Ministério Público, o que menos se encontra hoje é compromisso democrático.

Em segundo lugar, penso que quem não está conseguindo perceber a realidade é o próprio Marcos Nobre. Além de estar enxergando “democratas” onde não os há, não conseguiu perceber que a realidade política brasileira se transformou radicalmente no Brasil após o golpe de Estado de 2016, isso dentro de um contexto também em profunda transformação em nível internacional. Como ressaltei antes (6), até Francis Fukuyama, o grande nome do neoliberalismo político, reconheceu recentemente (7) que o liberalismo se encontra em uma profunda crise de legitimidade. E a razão está no aprofundamento da desigualdade em vários países do mundo, marcadamente em alguns, como ressaltei em outra coluna (8), entre os quais se destaca o Brasil. Esta crise de legitimidade derivada de enormes níveis de desigualdade empurra esse grupo de países para diferentes formas de populismo, seja de direita (como tem ocorrido na maioria, incluindo o Brasil), seja de esquerda (algo que pode vir a ocorrer por aqui).

Como bem demonstram estudos feitos por centros internacionais de pesquisa (9), os governos petistas – ao contrário de alguns governos de direita, no Brasil, como o de Collor e o atual governo Bolsonaro – se distanciaram do populismo. O mesmo eu ouvi pessoalmente do hoje Diretor do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade da Flórida, Carlos de la Torre. Há um ano atrás, descrevi assim o referido evento (quando eu imaginava que ele ainda era docente da Universidade de Kentucky), num artigo no GGN (10):

“Em 2016, quando eu me encontrava como pesquisador visitante da Universidade do Texas-Austin, nos EUA, assisti a uma conferência do Prof. Carlos de la Torre, da Universidade de Kentucky, sobre o que ele chama de ‘neopopulismo latino-americano’. Ele falou sobre os casos da Bolívia, Equador e Venezuela. Ao final, lhe perguntei como ele via o caso dos governos petistas no Brasil, pois parte da mídia conservadora costumava colocar esses governos sob uma categoria única junto com aqueles que ele havia acabado de analisar chamando-os de ‘bolivarianos’. Ele me respondeu que via tal afirmação como algo totalmente sem sentido, pois identificava os governos petistas como muito mais próximos do ‘tipo ideal’ da socialdemocracia do que do ‘neopopulismo’ (que também, obviamente, é um “tipo ideal”, no sentido weberiano).” (11)

Acredito que o golpe de Estado de 2016, que depôs a então presidenta Dilma Rousseff, e a posterior prisão política do ex-presidente Lula (12) foram um golpe muito forte e violento. Não há hoje mais qualquer incentivo para o PT se posicionar como um partido socialdemocrata. Afinal, como eu também já disse antes (13), seria loucura esperar resultados diferentes fazendo tudo exatamente igual.

Leio na revista Piauí que a fala do ex-presidente Lula no 7 de setembro teve mais impacto nas redes do que o pronunciamento do presidente Bolsonaro. Na mesma direção, ouço o jornalista Tales Faria dizer que o 7 de setembro de 2020 inaugurou a campanha presidencial de 2022, com Lula fazendo um discurso de atacante – agressivo, incisivo – e Bolsonaro com um pronunciamento defensivo, acuado e artificial.

A dinâmica econômica dos próximos dois anos irá, em boa parte, ditar o que vai ocorrer em 2022. Se o Brasil conseguir sair da depressão crônica – com recessões agudas – na qual tem vivido desde 2015 (o que considero extremamente improvável), é praticamente certo que Bolsonaro conseguirá se reeleger. Se, ao contrário, a economia real cair em um abismo (o que considero muito mais provável), a reeleição estará fortemente ameaçada. Mas o desafiante não virá do “centro democrático” (seja lá o que for isso), como muitos gostariam. Virá do PT, porém agora com um discurso e uma postura mais distantes da socialdemocracia e mais próximos do neopopulismo latino-americano. Dom Sebastião voltará em carne e osso (ou encarnado em um seu discípulo) para enfrentar a besta do apocalipse. A narrativa será a mesma do outro lado, apenas invertendo quem assumirá o papel de Dom Sebastião e o papel da besta. Não era isso que a maior parte de nós desejava ou esperava para o futuro próximo da política brasileira. Mas é o que se tem pra agora… Alea jacta est.

Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997.  Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
  1. Sen, Amartya. A Ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  2. Rawls, John. A Theory of Justice. Cambridge-MA: Harvard University Press, 1971.
  3. O mesmo da nota 1.
  4. Coleman, James. “Inequality, Sociology, and Moral Philosophy”. American Journal of Sociology, Vol. 80, No. 3, pp. 739-764, 1974.
  5. Ver:https://www.nexojornal.com.br/perspectiva/2020/O-sono-da-democracia-produz-monstros.
  6. Ver:https://jornalggn.com.br/artigos/entre-a-oligarquia-e-o-fascismo-uma-nova-alternativa-por-jorge-alexandre-neves/.
  7. Ver:https://www.newstatesman.com/culture/observations/2018/10/francis-fukuyama-interview-socialism-ought-come-back. Quem também parece ter percebido a mudança dos ventos na política foi Caetano Veloso, numa recente entrevista a Pedro Bial. Caetano mostrou ter um bom faro.
  8. Ver:https://jornalggn.com.br/artigos/a-volta-dos-que-nao-foram-por-jorge-alexandre-neves/.
  9. Ver:https://exame.com/brasil/o-que-bolsonaro-e-collor-tem-em-comum-segundo-pesquisa-o-populismo/.
  10. Ver:https://jornalggn.com.br/artigos/agua-de-morro-abaixo-fogo-de-morro-acima-por-jorge-alexandre-neves/.
  11. Nessa sua conferência na UT-Austin, Carlos de la Torre usou o termo “neopopulismo”. Todavia, em suas publicações (ver:https://flacsoandes.edu.ec/wp-content/uploads/agora/files/1215098051.carlos_de_la_torre_1_0.pdf), ele prefere utilizar o termo “populismo radical” para se referir aos exemplos recentes de populismo de esquerda na América Latina. Talvez por não querer ter esses casos confundidos com o “populismo neoliberal” de Fujimori, também denominado “neopopulismo” por Kenneth Roberts (ver: https://www.jstor.org/stable/25053953), que parece ter muito mais a ver com Bolsonaro.
  12. Até o líder do governo Bolsonaro reconheceu o caráter totalmente político da prisão do ex-presidente Lula (ver: https://www.metropoles.com/brasil/lider-do-governo-diz-que-lava-jato-prendeu-lula-para-tira-lo-da-eleicao).
  13. Ver: https://jornalggn.com.br/artigos/agua-de-morro-abaixo-fogo-de-morro-acima-por-jorge-alexandre-neves/ e https://jornalggn.com.br/artigos/geni-nao-quer-deitar-com-o-comandante-e-agora-por-jorge-alexandre-neves/.
Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

1 Comentário

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  1. Jorge Alexandre, seu texto faz uma crítica pertinente ao pensamento metafísico do professor Marcos Nobre, como você anotou.
    Agora, na disputa de 2022, você esqueceu de incluir João Dória, que pelo simples fato de ser governador de São Paulo já o coloca como um postulante de peso.

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