O ápice da violência no Brasil e na Colômbia – o obscurantismo na Idade do Neoliberalismo, por Camila Koenigstein e Andrea Guzman Ortiz

Em análises da conjuntura atual é comum a comparação com o período medieval, mas é preciso muito cuidado em fazer essa associação.

O ápice da violência no Brasil e na Colômbia – o obscurantismo na Idade do Neoliberalismo

por Camila Koenigstein e Andrea Guzman Ortiz

Marc Bloch afirmava que um bom historiador “se parece com o ogro que surge nas lendas: onde tem carne humana, sabe que ali está sua presa”.

Atualmente parece que vivemos uma eterna repetição de fatos que faz com que o jornalista e o sociólogo busquem respostas imediatas dentro de um contexto caótico. No entanto, os historiadores bem sabem que o derramamento de sangue humano, seu cheiro e sua abundância representam momentos de câmbios, fortes rupturas e mudanças sociais, talvez por isso sejam pouco consultados para explicar o momento atual.

O imediatismo e as verdades absolutas são conceitos não concebidos dentro da História, que observa um movimento que muitas vezes pode remeter ao passado rapidamente, ou pelo menos se aproximar de alguma situação já vivida.

Em análises da conjuntura atual é comum a comparação com o período medieval, mas é preciso muito cuidado em fazer essa associação. Apesar de a Idade Média ser marcada pela forte presença das instituições religiosas, também podemos dizer que o período estabeleceu paradigmas que hoje consideraríamos modernos, como por exemplo a prática comunal, as associações de trabalhadores, universidades, a dialética religiosa, avanços no âmbito da ciência, reflexoes sobre o mundo espiritual, a essência do homem, o bem e o mal, ou seja, foi um período caracterizado pelo questionamento, em que obviamente a religião tem um papel importante, mas com muitos religiosos não tão dogmáticos, o que pode ser notado tanto no cristianismo, no judaísmo e no islamismo.

Felizmente, las nuevas generaciones de historiadores siguen cada vez más esa tendencia. La imaginación colectiva se construye y se nutre de leyendas, de mitos. Se la podría definir como el sistema de sueños de una sociedad, de una civilización. Un sistema capaz de transformar la realidad en apasionadas imágenes mentales. Y esto es fundamental para comprender los procesos históricos. La historia se hace con hombres de carne y hueso, con sus sueños, sus creencias y sus necesidades cotidianas. Estaba constituida por un mundo sin fronteras entre lo real y lo fantástico, entre lo natural y lo sobrenatural, entre lo terrenal y lo celestial, entre la realidad y la fantasía. (Le Goff)

Segundo a jornalista francesa Lamia Oualalou, no Brasil, assim como na Nigéria ou na Coreia do Sul, o discurso político está impregnado de referências religiosas às vezes hostis à modernidade e ao progresso. Embora em partes haja uma tentativa de ruptura com a ideia de modernidade e progresso, não podemos esquecer que ambos os conceitos foram inaugurados sob o signo do capitalismo, o culto ao individualismo, o desenvolvimento da racionalidade que definiu quem era o outro, classificou, e sua função dentro do sistema mundo, os homens começaram a gerar acumulação de capital para outros homens, estabelecendo a ideia de bem-estar econômico e status social como presente divino. A tal teologia da prosperidade tem seu embrião na ideia de modernidade e progresso.

Se na Idade Média Maria, a mãe de Jesus, foi exaltada ao nível máximo dentro do catolicismo, na modernidade a mulher começou a ocupar um espaço cada vez mais reduzido na vida pública, algo que notamos nos discursos de pasatores, indígenas e homens do campo foram mortos e negros acabaram escravizados. América é fruto da modernidade e seus desdobramentos estão presentes por todos os países que compõem o continente.

Se por um lado a Igreja Católica serviu de sustentáculo para a barbárie na América Latina, por outro lado, religiosos como frei Bartolomeu de Las Casas questionaram a opressão e violência contra os povos originários. Queremos dizer que ideia de verdade absoluta não está associada à tradição monoteísta que posteriormente se desenvolveu, principalmente dentro do protestantismo e hoje de forma contundente nos movimentos neopentecostais.

Em Americanismo e fordismo, Gramsci trabalhou com a ideia de que nos Estados Unidos o modo de vida capitalista se desenvolveu pois tinha suas bases assentadas nos conceitos da religiosidade e disciplina protestante, obviamente levados pelos colonizadores. No entanto, era o protestantismo do século XVII, não o mesmo que hoje chamam de neopentecostalismo, embora alguns conceitos ficaram ficados, o que também é de fácil percepção.

A primeira colônia inglesa do Novo Mundo foi a Virgínia, que teve início com a fundação de Jamestown, em 1607. Como parte da incorporação da colônia, a Igreja da Inglaterra tornou-se a sua igreja oficial. Embora em um grau menor que na Nova Inglaterra, a religião teve bastante destaque na Virgínia. Seu primeiro código de leis tornou compulsória a frequência aos cultos dominicais e continha normas rigorosas contra o adultério, a violação do dia do Senhor e os excessos no vestuário. A preocupação missionária em relação aos índios também estava presente. John Rolfe casou-se com a lendária Pocahontas em parte para comunicar-lhe a fé cristã. Alexander Whitaker, o principal ministro dos primeiros tempos, sempre se preocupou em converter os indígenas. A chegada de escravos africanos a partir de 1619 traria grandes consequências para a sociedade e para a Igreja.

Nas últimas três décadas é notável o avanço do movimento neopentecostal, que também se originou nos Estados Unidos em 19110. Se, no começo do século XX, 94% da população da América Latina era católica, agora só 1% dos habitantes da população professam o protestantismo. Hoje, os protestantes representam 20%, e o número de fiéis ao Vaticano caiu 69%.

Tal feito não pode ser analisado sem observar três pontos: a consolidação do neoliberalismo, o culto ao individualismo e a ascensão dos meios de comunicação como forma de comunicabilidade com os fiéis.

A liturgia neopentecostal não aceita questionamentos, traço típico da intolerância e do fascismo, o que estabelece um forte vinculo com os governos de direita. O dinheiro é bênção, os problemas são analisados de forma individual e a esfera política e social pouco tem relação com a condição da pessoa.

Se a América Latina teve uma forte tradição da teologia da libertação, entendendo a pobreza, a opressão e a violência contra os oprimidos como fatores sociais, e que Deus estava com os vulneráveis, o movimentos vinculados à teologia da prosperidade toleram massacres, a perda dos ritos alheios, a perseguição a minorias, a apropriação da terra, a acumulação de bens e o desprezo absoluto por aquele que não aceita sua “verdade”.

Por toda a América Latina vemos a ascensão da mistura de Estado e religião (movimentos neopentecostais). A eleição de Messias Bolsonaro e a de Ivan Duque tiveram um forte apoio dos setores ultraconservadores da sociedade. Duque contou com o Partido Mira (Igreja de Deus Ministerial de Jesus Cristo Internacional), assim como Bolsonaro,que contou com o apoio de diversas igrejas, no ranking está a Igreja Internacional da Graça de Deus, consolidando o modelo neoliberal na sua pior dimensão por meio da banalidade do mal, uso da violência, fortalecimento dos valores conservadores e uma política de extermínio apoiada por cidadãos mergulhados no culto ao indivíduo moderno. Em contraposição estão os indígenas, campesinos, mulheres,  negros e os movimentos identitários.

Com a pandemia, tudo ficou mais visceral. Na Colômbia, de 15 de março a 13 de setembro já houve 140 mortes entre campesinos, indígenas, afrodescendentes, comunidade LGBTQI+ e líderes comunitários, denúncias de abusos sexuais em crianças indígenas recorrentes por parte das forças militares surgiram, e massacres de crianças negras dentro de propriedades privadas.

Em agosto ocorreu um incremento dos massacres, evidenciando a ausência do Estado, além da pandemia em curso, mas que tem impacto menor que a violência institucional e o descaso do presidente, que neste momento segue uma política de forte alinhamento com Estados Unidos, mantendo a tradição de Álvaro Uribe, só que atualmente com o respaldo de religiosos (neopentecostais), de grandes latifundiários, forças paramilitares e os setores mais conservadores da sociedade.

O assassinato do advogado Javier Ordóñez, 44 anos, cometido em 9 de setembro por um grupo de policiais, causou comoção pelo contexto de extrema perversidade. Ordóñez foi encontrado com nove fraturas pelo corpo, o que evidencia sinais de tortura. O abuso policial gerou fortes protestos, que seguem levando os cidadãos às ruas, o que resultou no homicídio de 14 pessoas por armas de fogo.

No dia 16 setembro o presidente saiu vestido de policial, demonstrando ao mesmo tempo apoio aos agentes e desprezo pelas mortes que ocorreram.

Leonardo González, coordenador do projeto Indepaz, disse: “Matam porque é muito mais fácil acabar com a vida de uma pessoa que discutir com ela, tratar de convencer ou negociar, ação a que se soma a estigmatização em muitos casos”. Assim como Duque, Bolsonaro continua negando o número de mortos pelo novo coronavírus e desprezando os campesinos e indígenas, que continuam lutando contra a Covid-19 e a ausência de políticas sanitárias. O Brasil já soma quase 140 mil mortos.

Além da pandemia, o avanço do agronegócio é uma realidade cruel para os povos originários, que sabem o impacto que isso significa. Bolsonaro, no entanto, ignora qualquer reivindicação das chamadas minorias.

No dia 6 de julho, em nome de Esequiel Roque, secretário adjunto de Igualdade Racial, Damares pedia a Bolsonaro que retirasse da lei de proteção aos indígenas a obrigação da União, estados e municípios fornecerem itens como água potável; materiais de limpeza, higiene e desinfecção; leitos de UTI; ventiladores pulmonares; e materiais informativos sobre a Covid-19.[…] De acordo com o documento endossado por Damares, “mesmo cientes da situação de excepcionalidade vivida pelo país e da celeridade em aprovar projetos de lei que beneficiem e protejam os povos tradicionais, os povos indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais não foram diretamente consultados pelo Congresso Nacional”.

Não é necessário relembrar que a ministra é uma fervorosa pastora evangélica que, assim como Bolsonaro, não respeita a ancestralidade e os direitos daqueles que protegem a terra e acreditam na conexão entre a natureza e os deuses.

Neste momento os focos de incêndio geram desespero. O Pantanal brasileiro, a maior área úmida do planeta, que abrange grande parte dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, já registra 16 mil incêndios em 2020, o ano mais castigado pelo fogo, segundo os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

O presidente do Brasil, contudo, mantém o negacionismo. Em comum, Ivan e Bolsonaro nutrem desprezo por indígenas e campesinos e usam poucas palavras, uma oratória medíocre e vazia, subestimando o povo, principalmente aqueles que pouco podem fazer para preservar suas vidas. Etnocídio e ecocídio andam de mãos dadas, e parte do continente está sendo massacrada, sem, no entanto, nenhuma real alteração nas práticas estatais e no caso do Brasil pouca presença de protestos contra tudo que está ocorrendo.

Como historiadores americanistas, sentindo tanto cheiro de sangue, nós perguntamos: qual foi de fato a Idade do Obscurantismo?

Fontes:

http://www.indepaz.org.co/lideres/

https://www.nodal.am/2020/09/brasil-record-historico-de-16-mil-incendios-en-el-humedal-mas-grande-del-mundo/

https://cpaj.mackenzie.br/historia-da-igreja/o-protestantismo-norte-americano-seculos-17-a-19/

https://revistaforum.com.br/brasil/lideres-evangelicos-que-apoiam-bolsonaro-devem-276-milhoes-ao-governo/

https://www.eldiplo.org/

https://www.lanacion.com.ar/cultura/seguimos-viviendo-en-la-edad-media-dice-jacques-le-goff-nid746748/

Camila Koenigstein. Graduada em História, pela Pontifícia Universidade Católica – SP, e pós-graduada em Sociopsicologia, pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina e Caribe, pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

Liliana Andrea Guzmán. Graduada em História, pela Universidad del Valle (Cali – Colômbia). Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina e Caribe, pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

Redação

1 Comentário

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  1. Tão cruéis, hoje, que mesmo que todos os núcleos atômicos existentes em 2030 explodirem a um só tempo, juntos e com ondas percorrendo todo o planeta, não irão causar tantos danos ao povo brasileiro

    desgraçado o país cujas principais instituições perdem ou vendem praticamente toda a sua capacidade inibitória, capacidade esta que muitas das suas vítimas ainda consideram como Constituição Cidadã.

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