O desserviço do procurador-geral da República às Forças Armadas e ao seu papel constitucional, por Edson Alves Filho

Independência e harmonia dos poderes não significam desrespeito à Constituição, e sim o estabelecimento de freios e contrapesos para que se faça cumprir o texto constitucional e os objetivos delineados pelo constituinte originário.

O desserviço do procurador-geral da República às Forças Armadas e ao seu papel constitucional, por Edson Alves Filho

Ao dar entrevista a Pedro Bial, o Procurador – Geral da República, Augusto Aras, opinou sobre o papel das Forças Armadas em caso de conflitos entre os Poderes da República Federativa do Brasil. Asseverou que, à luz do artigo 142, da Constituição Federal, quando um determinado Poder invade as competências de um outro não merece a tutela daquelas Forças, dando a entender que é viável a intervenção militar em um dos poderes republicanos.

Em diversas manifestações, o atual chefe do Poder Executivo e seus apoiadores afirmam que aquele poder vem sendo constrangido por atos do Legislativo e mais recentemente do Judiciário, daí as manifestações a seu favor sugerirem uma espécie de tutela das Forças Armadas em favor do atual Presidente da República, com o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

E o atual chefe do Ministério Público Federal parece que vai na senda dos apoiadores dessa tutela, ao sugerir que determinado Poder da República, ao se encontrar invadido em suas competências, merece o “garante” que são as Forças Armadas brasileira, conforme se depreende de suas palavras.

Entretanto, não é essa a legalidade constitucional, nem tampouco o intento do poder constituinte originário ao estabelecer, na dicção do artigo 142, da Constituição, que uma das funções das Forças Armadas é promover a garantia do funcionamento dos Poderes da República, de sorte que sejam resguardadas a harmonia e a independência consagrada em seu artigo 2º.

Note-se que o substantivo “garantia” utilizado no artigo 142 do texto constitucional advém do verbo “garantir”, que, de acordo com o dicionário analógico da língua portuguesa, significa também “ratificar”, “afiançar”, “estar ao lado” e “dar força a” (AZEVEDO, 2010, p. 192; 194; 202; 359). Não se trata, pois, de “usurpar” as competências dos Poderes republicanos, isto é, “traspassar”, “constranger”, “apoderar-se” ou “rapinar” as funções constitucionais executiva, legislativa e jurisdicional (AZEVEDO, 2010, p. 119; 350; 366; 370).

Por essa razão, as Forças Armadas não podem enveredar para além do que dispõe o texto constitucional, e assumir qualquer de tais funções como se suas fossem, muito menos utilizar-se do seu arsenal para fechar os prédios onde aquelas são soberanamente exercidas, ainda que haja de fato um conflito institucional. Ao contrário! Devem estar ao lado daqueles poderes cujas decisões tomadas à luz da Constituição não são observadas por um poder em sua missão assecuratória do regime constitucional.

No caso das decisões dos Poderes Legislativo e Judiciário questionadas pelo Presidente da República, todas são frutos do devido processo constitucional regados pela supremacia da Constituição e pela força normativa dos seus princípios. Enquanto Chefe do Poder Executivo, tem o dever de dar cumprimento à Constituição, às leis e decisões judiciais, como disse em seu juramento ao tomar posse após um processo democrático marcado pelo sufrágio universal e voto direto.

Caso contrário, deixando de cumprir ordens judiciais ou legislativas, simplesmente o Presidente da República está dando de ombros aos demais poderes, e, assim, atentando contra a existência de ambos, no que incorre em crime de responsabilidade (artigo 85, inciso II), a ser processado entre a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, nos termos de suas competências constitucionais.

Independência e harmonia dos poderes não significam desrespeito à Constituição, e sim o estabelecimento de freios e contrapesos para que se faça cumprir o texto constitucional e os objetivos delineados pelo constituinte originário. E esses freios e contrapesos entre os poderes republicanos devem refletir a independência e harmonia entre eles, e não arbitrariedade e monopolização, como ocorreu no absolutismo. José Afonso da Silva afirma que:

“[…] cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos de poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados” (SILVA, 2006, p. 110).

Se o Presidente não foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como a única autoridade a lidar com a recente pandemia, sendo também o caso de Governadores e Prefeitos, o Judiciário o fez sob o federalismo cooperativo pactuado na Constituição. Ao ter medidas provisórias modificadas pelo Congresso, ao aprová-las e convertê-las em leis, como a extensão do auxílio emergencial, o Legislativo atuou mediante autorização constitucional. São exemplos de que não há nenhuma coação entre Poder Legislativo ou Judiciário para com o Executivo, o que não parece ser o contrário.

Caso não haja concordância, deve o Poder Executivo lançar mão dos freios e contrapesos estabelecidos pela Constituição, podendo se valer, por exemplo, do poder de veto; inciativa de projetos de lei; das ações do controle concentrado de constitucionalidade; o uso do devido processo legal por meio das ações ordinárias admitidas no ordenamento jurídico, dentre várias opções constitucionalmente previstas.

O que não deve ocorrer é a recusa deliberada de cumprimento das decisões do Legislativo e do Judiciário por qualquer autoridade constituída, incluindo neste rol o Senhor Presidente da República, principalmente com aceno às Forças Armadas para irem além de suas funções constitucionais, que, como visto, devem zelar pela Constituição, estando ao lado daqueles poderes cujas decisões institucionais não são obedecidas. Aí sim, encontra-se evidente uma tentativa de constrangimento do Executivo em relação aos demais poderes republicanos.

Eis porque o Procurador – Geral da República, chefe de uma instituição a quem compete promover a defesa do regime democrático, como é o caso do Ministério Público, faz em entrevista televisiva um desserviço às Forças Armadas e sua missão constitucional ao fazer interpretações distorcidas do artigo 142, estimulando a inconstitucionalidade e ruptura da institucionalidade, num retrocesso da história brasileira. E o presente texto é para que não chorem outras “Marias e Clarisses”, como Aldir Blanc e João Bosco bem compuseram.

Referências

AZEVEDO, Francisco Ferreira Santos. Dicionário analógico da língua portuguesa: ideias afins/thesaurus. In: Dicionário analógico da língua portuguesa: ideias afins/thesaurus. 2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006.

Redação

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