O literalista e o voluntarista diante dos cães na plataforma, por Lenio Luiz Streck

O literalista é aquele que, diante da regra “Proibido cães na plataforma”, proíbe o cão guia. E deixa entrar o urso. O voluntarista, por outro lado, é aquele que deixa entrar o poodle porque acha bonitinho. O literalista proíbe o cão e deixa entrar o urso.  

do ConJur

O literalista e o voluntarista diante dos cães na plataforma

por Lenio Luiz StreckBem vindo ao Player Audima. Clique TAB para navegar entre os botões, ou aperte CONTROL PONTO para dar PLAY. CONTROL PONTO E VÍRGULA ou BARRA para avançar. CONTROL VÍRGULA para retroceder. ALT PONTO E VÍRGULA ou BARRA para acelerar a velocidade de leitura. ALT VÍRGULA para desacelerar a velocidade de leitura.

Há muito tempo que bato nesta tecla, a de exigir coerência do Judiciário na aplicação do Direito. Lembro que fiz uma comparação (leia aqui) do que disse um importante professor de São Paulo sobre a presunção da inocência: a “literalidade faz da presunção de inocência uma garantia de impunidade”. Tese: cumprir a literalidade faz mal. Logo, porque a literalidade do CPP e CF irem contra o que pensa, o professor busca uma interpretação para além do texto.

Já um juiz federal diz o contrário. Para ele, se a Constituição diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado”, disso não se segue que a pena antecipada fere a Constituição. Tese do juiz: embora a literalidade seja “clara”, não se deve aplica-la.

Resumindo, então: o professor entende que o texto constitucional é claro no sentido de obstar a prisão em segunda instância (ao menos nisso ele acerta…); mas pede que não optemos pela literalidade da Constituição.  Em linha oposta, o juiz entende que o texto constitucional é claro no sentido de não obstar a prisão em segunda instância; assim, pede que optemos pela literalidade da Constituição. Entenderam?

O ponto em comum entre o professor, o juiz e ministros do STF que, no caso da ordem das alegações (artigo 403 do CPP), invocaram a literalidade? Simples: Todos dão “à literalidade” o sentido que querem para chegar em um objetivo já previamente estabelecido.  Isso se chama de textualismo ad hoc, literalidade de marketing.

Temos, assim, que as decisões dos tribunais não resistem a uma análise comparativa, por exemplo, à luz do artigo 926 do CPC, que exige que a jurisprudência seja integra e coerente. No caso da presunção da inocência (logo, logo, esse assunto voltará à pauta do STF —ADCs 44 e 54), uns são contra a garantia com base na literalidade; outros são contra… com base na mesma literalidade. Outros fazem como fez o ministro Fachin: coloca-se, no caso do artigo 403, claramente pela clareza do texto, postura que ignorou totalmente quando da leitura do artigo 283 do CPP (caso da presunção da inocência). Afinal, quando se aplica a literalidade?

O que quero indagar é: quando posso confiar que o Tribunal (qualquer tribunal) vai lançar mão da literalidade e quando será voluntarista? Quando será textualista e quando se portará como os integrantes da “Escola do Direito Livre” (para falar da reação ao positivismo do século XIX que ocorreu na entrada do século XX)?

Para quem não entendeu a comparação, vou mais longe: Não dá pra ser Scalia num caso e Ruth Ginsburg em outro. É muito perigoso quando não temos sequer noção da orientação que vai ser adotada. Esse é o busílis. Eu, hermeneuta que sou, sei muito bem que não existe decisão mecânica. Não existe um processo automático (quem quer isso é a turma da inteligência artificial…!). Mas é necessário ao menos que tenhamos de forma clara a orientação epistemológica de cada um.

Aliás, seja como for, as duas posições estão equivocadas. Essa dicotomia “literalidade ou não literalidade” é falsa. De minha parte —com minha ortodoxia constitucional— nunca preguei “literalismo” (aliás, até o nome está errado —hoje se fala em significado convencional) ou “antiliteralismo”. Essa não é e nunca foi uma discussão hermenêutica.

Quem me lê, sabe disso. O que lamento é que, hoje em dia, cada vez mais a literalidade e a não literalidade se transformaram em argumentos ideológicos e estratégicos. Um dia o texto é tudo; no outro, o texto é nada. Como o personagem Ângelo, da peça de Shakespeare, Medida por Medida (um dia ele usa a letra da lei para condenar Cláudio à morte; no outro, ignora essa mesma lei… porque se apaixonou pela bela Isabela).

Veja-se, pois, que tanto o professor, o juiz federal (e ministros do STF) chegam à mesma conclusão, a favor da prisão antecipada, com dois argumentos antitéticos: de um lado, diz-se que a literalidade é ruim no caso da presunção, porque propicia impunidade; de outra banda, diz-se que a literalidade aponta para a prisão. Seria bom se os intérpretes combinassem melhor entre si “o que é isto —a literalidade”. De outro lado, quem antes era antiliteralista, agora, na discussão do artigo 403, torna-se literalista.

Vejamos: o ministro Barroso, por exemplo, na linha dos ministros Fachin e Fux, diz que não existe previsão legal de que réus não colaborares apresentem alegações  após réus colaboradores. Se ele tem razão, o que ele tem a dizer em relação à existência de previsão de que a prisão só pode ocorrer após o trânsito em julgado? O que é isto —a literalidade?

De todo modo, digo que, na democracia, não é feio aplicar aquilo que a lei diz. Tenho dito isto ad nauseam. Não nos envergonhemos de aplicar a lei. Sinonímias epistêmicas são desejáveis na democracia, desde que —atenção— o texto legal infraconstitucional seja conforme a Constituição. Caso contrário, deve ser expungido ou relido a partir de uma interpretação conforme ou nulidade parcial sem redução de texto. Ou isso ou voltamos ao século XIX.

Por outro lado, cumprir a “letra da lei” em hipóteses quetais não quer dizer subsunção ou “escravidão à lei” ou coisas desse gênero, que povoa(ra)m o imaginário dos juristas do século XIX e início do século XX (até o advento das teorias voluntaristas —embora esse fantasma ainda arraste as correntes nas salas de aula das boas casas do ramo).

O literalista é aquele que, diante da regra “Proibido cães na plataforma”, proíbe o cão guia. E deixa entrar o urso. O voluntarista, por outro lado, é aquele que deixa entrar o poodle porque acha bonitinho. O literalista proíbe o cão e deixa entrar o urso.

E aqui é pior. O mesmo literalista que deixou o urso entrar vira voluntarista no outro caso quando lhe convém. E o voluntarista, a mesma coisa; quando lhe convés, aí o texto vale.

E o hermeneuta? O hermeneuta é o que sabe que, pra dizer algo, deve antes deixar que o texto fale. E, quando o texto fala, o hermeneuta ouve dele os princípios que sustentam a regra. Qualquer animal perigoso deve ser proibido de passear na plataforma.

Como já falei aqui, não é rigor comparar leis com ovos, mas, sim, com caixa de ovos. Na democracia —e vou adaptar um exemplo de Bobbio— um mesmo tipo de caixa pode ser enchido com flores, explosivos ou com ovos. Se a caixa for de ovos, devemos enchê-la com… ovos, e não com flores ou explosivos. E nem com qualquer outra coisa. Podemos até discutir o tipo de ovos. Mas são… ovos.

Saber o que são ovos já é um bom início de conversa hermenêutica. Não se faz direito penal descumprindo garantias. Literalmente falando…!

 é doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado.

Redação

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  1. No café de um Shopping osasquence converso com um amigo advogado sobre esse assunto. Após alguns minutos de prosa, o garoto dele (que também é advogado) diz com a voz embargada “eu defendo o princípio da presunção de culpa”. Fiquei com dó dos clientes dele.
    “Para ser carcereiro você não precisava fazer 5 anos de faculdade e passar no exame da OAB; bastava concluir o ensino médio e fazer um concurso.” Essa resposta fez o rapaz se levantar e ir embora. O pai dele riu e disse “Eu avisei para ele tomar cuidado com o que falaria a você.”
    Aquele garoto obviamente aprendeu bobagens na faculdade. Ele poderia contratar um advogado para processar a instituição com fundamento no art. 14, do CDC. Todavia, o mais provável é que ele continue reverenciando o saber jurídico dos ex-professores. O que é certo parece falso.
    Ainda sou capaz de ver mentalmente Luis Fux no plenário do STF condenando José Dirceu porque “o réu não provou sua inocência”. O estrago que ele causou seguirá reverberando por décadas dentro e fora das faculdades de direito e dos fóruns brasileiros.

  2. ‘In claris cessat interpretatio’, diz o brocardo latino.

    Thomas Morus escreveu no seu livro Utopia:

    “Vejam, diriam, como este bom príncipe violenta seu coração ao vender tão caro o direito de prejudicar o povo.

    Outro ainda, enfim, aconselha ao monarca ter à disposição juizes sempre dispostos a sustentar, em todas as ocasiões, os direitos da coroa. Vossa Majestade, acrescenta ele, deveria chamá-los à corte, e persuadí-los a discutir, perante a vossa augusta pessoa, os próprios negócios reais. Por pior que seja uma causa, haverá sempre um juiz para julgá-la boa, seja pela mania da contradição, seja por amor da novidade e do paradoxo, seja para agradar o soberano. Então, uma discussão se trava; a multiplicidade e o conflito de opiniões embrulham uma coisa de si mesma muito clara, e a verdade é posta em dúvida. Vossa Majestade aproveita o momento para resolver a dificuldade, interpretando o direito em proveito próprio. Os dissidentes se submetem à opinião real por timidez ou por temor, e o julgamento é dado, segundo as formalidades, com franqueza e sem escrúpulo. Faltarão jamais ao juiz, que dá uma sentença a favor do príncipe, os necessários consideranda? Não há o texto da lei, a liberdade de interpretação, e, acima das leis, para um juiz religioso e fiel, a prerrogativa real?”

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