O perigo que vem da direita, por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima

Salta aos olhos a ignorância dos fãs de Bolsonaro nas ruas a respeito de aspectos elementares sobre temas como democracia, estado de direito, previdência, soberania econômica.

“O perigo que vem da direita”

por Martonio Mont’Alverne Barreto Lima

Incansáveis, gritavam os autênticos sociais democratas no parlamento, nos jornais, no debate acadêmico sobre o risco de uma vitória da direita na Alemanha. Uma direita que soube apoderar-se das enormes frustrações generalizadas com a derrota da primeira guerra mundial e da crise econômica de 1929, a dilacerar a dignidade de grande parte da população. A social democracia que fez a transição de uma monarquia reacionária para uma democracia que completaria cem anos em 2019, que deu ao mundo uma nova constituição, a buscar um compromisso mínimo entre capital e trabalho, esta social democracia não estava preparada para a força do inimigo que apareceria com Hitler e seu nazismo. Uma das mais significativas vozes de advertência foi John Maynard Keynes. Em 1919, Keynes já antevia o que significaria uma vitória reacionária na Alemanha: “uma ameaça à segurança do continente, pondo em perigo os frutos da vitória e os fundamentos da paz”¹.

Ao escrever sobre o alcance desta ameaça, parece evidente que Keynes e os mais atentos observadores sabiam que as primeiras vítimas seriam internas: a democracia, o estado de direito, a perseguição à intelligentsia e seus principais espaços, dentre eles a universidade. Em perigosa coincidência com o mês de maio, no dia 10 de maio de 1933, pouco mais de três meses após Hitler tornar-se chanceler da Alemanha, deu-se a queima dos livros, Bücherverbrennung, protagonizada por estudantes, professores e membros do partido nazista. Obras científicas e literárias foram queimadas em cerimônias de delírio coletivo, sem precedentes: “O estado foi conquistado; as universidades ainda não”. Sabemos o resto da história.

A tirar pelas manifestações de 26 de maio em favor do governo Bolsonaro, demonstramos sobretudo que não estamos tão longe deste passado. De todos os fatos durante as manifestações deste dia, nenhum chamou mais atenção que a retirada, sob entusiasmados aplausos, de uma faixa que com dizeres em defesa da educação. A faixa estava exposta no prédio histórico da Universidade Federal Paraná, na Praça Santos Andrade, em Curitiba. O gesto fala por si, e a lembrança ao passado da queima dos livros é inevitável. O que esperar mais diante de tão fortes sinais? A destruição completa do precário sistema democrático que temos?

Até o momento, não há força institucional que tenha sido capaz de deter Bolsonaro e seus partidários. Salta aos olhos a ignorância dos fãs de Bolsonaro nas ruas a respeito de aspectos elementares sobre temas como democracia, estado de direito, previdência, soberania econômica. Não há o menor apreço à democracia da parte de Bolsonaro, tampouco de seus apoiadores. Fechar o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, intervir militarmente são assuntos tão banais como ir à esquina e embarcar num ônibus. Não se pode dizer que Bolsonaro e sua entourage política e das ruas enganaram alguém: na sua medíocre vida política, tudo que Bolsonaro fez foi exatamente o que ele condena como “velha política”, que ele agora tanto critica e responsabiliza por sua incapacidade de governar. Os que foram às ruas neste domingo de maio sequer refletem sobre dados mínimos da história de vida de seu “mito”.

O perigo vem da direita porque as instituições hoje atacadas permitiram. Não foram poucos os advogados, intelectuais, jornalistas sinceros, movimentos sociais etc. que advertiram do que poderiam vir. Quando o Supremo Tribunal Federal se curvou à pressão da mídia mainstream, quando chancelou a ideia de que a perda de apoio popular é elemento legitimador de impeachment e jamais pôs freio à Operação Lava Jato, quando entendeu que deveria sentir o “clamor das ruas” e não o que está escrito no texto constitucional para julgar; quando o Congresso rendeu-se às chantagens de Eduardo Cunha e de Aécio Neves, o que se poderia esperar? A tirar pelas manifestações de 26 de maio, prezado Min. Barroso, o “clamor das ruas” quer a cabeça do Supremo Tribunal Federal. O STF conta agora a seu favor com o qualificado discurso de advogadas, advogados, intelectuais que advertiram e escreveram, por exemplo, a favor da presunção de inocência, fazendo valer uma garantia fundamental da Constituição, e não a relativização desta garantia com base no “clamor das ruas”.

Bolsonaro jamais deu explicações sobre seus vínculos e de sua família com o poder das milícias do Rio de Janeiro. Sequer foi cobrado neste sentido pelo Ministro da Justiça ou pela Procuradoria Geral da República. E como não se sente cobrado por tais instituições constitucionais, caminha a largos passos para neutralizá-las. O cenário futuro não é alvissareiro e o discurso de Bolsonaro, de que veio para destruir e não para construir, parece se realizar mais rapidamente do que se esperava. Seu apoio, pelo que se viu, é decrescente. Contando-se ainda com os robôs incentivados por seus apoiadores mais abonados, sabe-se que seu eleitorado de hoje não seria suficiente para fazer dele presidente como em outubro de 2018. Porém, não subestimemos o risco. Ele bate à nossa porta.

Martonio Mont’Alverne Barreto Lima – Professor Titular da Universidade de Fortaleza. Procurador do Município de Fortaleza.

¹ As consequências econômicas da paz. Brasília/São Paulo: Editora da UnB/Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 201.

Redação

2 Comentários

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  1. Vou fazer uma provocação que acho necessária: os bolsonaristas estão certos ao dizer que, dentro sistema democrático, não há mais solução viável para a sociedade.

    Culpa-se muito as instituições por na terem reagido e até se aliarem à extrema direita: STF, Congresso, grande mídia, cúpula do MPF e PF, forças armadas etc. Mas o PT fracassou em reestruturar o país e se revelou, no final do governo Dilma, apenas mais um governo de administração de crise, mais sensível socialmente do que o PSDB, é bom que se faça justiça. E talvez nem tenha sido culpa do PT, pois o capitalismo neoliberal já estava fazendo água no início do milênio. O boom de commodities em que o Brasil surfou apenas mascarou a falência do capitalismo movido à créditos impagáveis. O PT fez o que deu, que era distribuir as sobras deste boom aos pobres – o que não é pouca coisa num país de mentalidade escravocrata. E tanto não foi pouco que Lula está preso (e odiado) por distribuir renda e ousar um mínimo nacionalismo no comércio exterior, na área militar e no petróleo.

    A desilusão com crise de 2008 seria fatal para um país como o Brasil. Mesmo porque a população está certa: nossa democracia institucional não resolveu nada para o povo, pois foi, no máximo, paliativa para seu sofrimento.

    A revolta contra o Congresso, o estado de direito, o STF e toda a institucionalidade democrática, que foi posta a serviço do grande capital (principalmente financeiro) é legítima. O povo diz “isso tudo é papo fura”. Como discordar? As esquerdas tentar usar o arcabouço institucional da democracia para dar esperança ao povo, na ilusão de que a tomada de poder pelas esquerdas vai melhorar a vida do povão. Ninguém acredita mais nisso.

    Os fascistas chegam, como na Alemanha e dizem: realmente não tem solução dentro desse sistema. E não oferecem a saída, mas apenas um discurso de ódio e bodes expiatórios para a massa descarregar suas frustrações: lá eram os judeus, os gays, os doentes mentais. Aqui são os pobres “preguiçosos”, os comunistas/petistas e os gays. É assim que funciona o bolsonarismo.

    E eles têm razão em afirmar que o sistema faliu, que o país está ingovernável. A esquerda deveria afirmar o mesmo, porque é verdade: dentro da institucionalidade democrática não há mais solução, Marx estava certo em prever que uma hora a democracia burguesa iria ruir junto com o capitalismo.

    E, diferente dos fascistas, a esquerda deveria propor uma outra sociedade, porque, afinal de contas, o fascismo não oferece nada, apenas destruição e autodestruição. Uma hora deverá haver a construção de outra sociedade.

  2. Importante alerta, Prof. Martonio. Igualmente importante a provocação que se segue, Wilton. A questão que sobra é a mesma: quais são as nossas propostas? Temos que acelerar a produção de propostas de construção, debatê-las e praticá-las, no lugar de enfatizarmos as ruínas. Este é, definitivamente, um desafio homérico. Pois as construções a que me refiro, as mais consistentes, demandam um certo anseio coletivo por conhecimento, por razão, e por valores democráticos, e justamente por isso, são de longo prazo. Temos então que refletir nas propostas de construção social também de curto e médio prazos. Neste aspecto, como alguém habituado a pensar nos longos prazos da educação, confesso, também me sinto um tanto inerte. A criatividade pode quebrar a inércia?

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