O TIAR e o “risco Bolsonaro”, por Túlio Muniz

O passo seguinte pode ser espoletar um conflito interno que leve a um auto-golpe, salvaguardado pelos artigos 137 e 139 da Constituição, que tratam das condições para adoção do Estado de Sítio e de suas consequências.

O TIAR e o “risco Bolsonaro”

por Túlio Muniz

Recentemente foram publicados dois imporantes artigos abordando efeitos deletérios que a evocação do Tratado Internacional de Ajuda Recíproca (TIAR), pela OEA, pode ter no âmbito das relações internacionais [aqui] e [aqui].

Ambos os artigos traçam um amplo panorama histórico e estratégico acerca do TIAR. Entretanto, creio caber ainda uma reflexão acerca das consequências internas, para além da perda de soberania consentida apontada pelos artigos acima citados.

Atualmente, o que podemos chamar de “risco Bolsonaro” – somado às desconsiderações de seu discurso anti comunista, tido apressadamente como inofensivo por ser obsoleto no cenário internacional – põe em causa a manutenção da própria democracia, e o TIAR pode vir a ser um caminho para um auto-golpe do governo.

Conforme apontado por Ricobom, Ramina e Proner, o Brasil, sob FHC em 2001, reivindicou a aplicação do TIAR. Em vão, por se tratar de alinhamento às apreensões imediatas dos EUA, após os ataques do 11 de Setembro. Mas vale frisar o servilhismo voluntário de FHC aos EUA, que agora se repete em maior gravidade com Bolsonaro.

Contudo, o Brasil já evocou a aplicação do TIAR antes, e igualmente foi ignorado.

Foi em 1963, durante o conflito económico e diplomático com a França que ficou conhecido como “a Guerra da Lagosta” (ver). Embora tenha durado cerca de dois meses apenas, a  “Guerra da Lagosta” teve episódio ilustrativo acerca da tendência dos EUA em ignorar apelos de parceiros americanos diante de ameça que venha de seus aliados do Norte – o que também foi notório diante do apelo argentino na Guerra das Malvinas, contra a Inglaterra.

À época  da “Guerra da Lagosta”,  subiu o tom dos embates entre militares brasileiros e franceses, por estes estarem a proteger barcos de pesca de seu país que incursionavam por águas brasileiras. Nos dois meses de duração do conflito, nenhum tiro foi desparado. Porém, os EUA a exigiram da Marinha brasileira a devolução imediata de dois navios contratorpedeiros emprestados ao Brasil, diante do risco de as naves serem utilizadas contra a França. O acordo do empréstimo vetava o uso do equipamento contra uma terceira nação que fosse aliada dos EUA

O comando da Marinha brasileira (o  Chefe do Estado-Maior da Armada – CEMA) reagiu e exigiu dos EUA que cumprissem o TIAR e interviessem em favor do parceiro americano. O Brasil, ainda que colocasse o dedo na ferida ‘Pearl Harbor’, foi solenemente ignorado pelos EUA.

A mensagem completa do CEMA era:

‘Inspirado nos fundamentos do pan-americanismo, que tem como uma das principais fontes a Doutrina Monroe, formulada por um Presidente dos EUA há 140 anos, o Brasil cortou relações diplomáticas, e depois, manteve o estado de beligerância com o Japão, em virtude da agressão ao território americano sofrido com o ataque a Pearl Harbor. O Brasil honrou o seu compromisso assumido por ocasião da Conferência de Havana em 1940, onde se declarou que um ataque por um Estado não-americano contra qualquer Estado americano é considerado como ataque contra todos os Estados americanos. Sabemos que os EUA tem compromissos políticos e militares com a França em virtude do tratado do Atlântico Norte, firmado em 1949. Entretanto antes desse Tratado, os EUA em 1947, nesta cidade do Rio de Janeiro, lideraram a assinatura do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), que teve como Propósito prevenir e reprimir as ameaças e os atos de agressão a qualquer do países da América, baseado nos princípios de solidariedade e cooperação interamericanas. Assim sendo, configurando a agressão francesa, como anunciado em Paris, o Brasil espera que os EUA honrem os seus compromissos na defesa coletiva do continente americano declarando guerra contra a França, como o Brasil honrou seus compromissos declarando guerra contra os japoneses na 2ª Guerra Mundial, sem nunca ter sido agredido por eles” (Cf. Cláudio Braga, A Guerra da Lagosta, 2001, edição do autor, pg. 97).

Os EUA recolheram seus navios e não mais se manifestaram contra ou a favor do Brasil na “Guerra da Lagosta”, até porque de fato a França integrava a OTAN, dela se distanciando apenas a partir de 1967, e só retornando em 2009. Não houve registros de protestos dos militares brasileiros pela desatenção norte americana.

Aqui temos de focar nas coincidências entre os fatos de hoje e os atos de FCH em 2001, e dos militares brasileiros de 1963, os mesmos que durante a “Guerra da Lagosta” agiam, muitas vezes, à revelia do presidente João Goulart, e que um ano depois implatariam a Ditadura Militar.

Tal qual nos anos FCH, hoje  estamos sob um governo assumidamente sabujo dos EUA. Desta vez, numa intensidade jamais vista – corre que Bolsonaro disparou um ‘I Love You” para o presidente americano Trump quando se encontraram na Assembleia Geral da ONU.

O governo Bolsonaro não titubearia em apoiar com tropas e território se os EUA colocarem em operação a atual evocação do TIAR contra a Venezuela. Por mais riscos e debates  que uma mobilização assim suscita entre os militares, o atual governo cívico-militar de Bolsonaro já demonstrou que não tem capacidade de gerir o país, tampouco a teria um eventual governo substituto de Hamilton Mourão. Nesse cenário, uma guerra lhes seria propícia para se manterem no poder.

Trump está em apuros, inclusive enfrentará o debate em torno do impeachment no Congresso norte-americano. Só não atacou a Venezuela ainda por esta contar com apoio – militar, da Rússia, e econômico,  da China -, e por não haver disposição de vizinhos sul americanos que façam as vezes de ‘bucha de canhão’ – não por falta de convite, que teria sido lançado em fins de 2018, ainda que informalmente, em conversa de Trump com Temer e outros presidentes, que declinaram.

Trump precisa apresentar ações às vésperas de disputar reeleição, e o petróleo é argumento que convence, sempre, a opinião pública americana. Restaria saber se os EUA manteriam apoio a seus aliados americanos no âmbito de uma ação sob o TIAR, o que nunca ocorreu quando solicitado.

Outro elemento a se observar com atenção, e preocupação, é a busca pelo entendimento do anti-comunismo expressado por Jair Bolsonaro. Por mais obsoleto que seja, ele é real e perigoso, em vários aspectos.

Primeiro, por o próprio Bolsonaro e praticamente todos os integrantes de todas as gerações de militares que o apoiam acreditarem que 1964 não foi um golpe contra a democracia, e sim um ato fundamental para sua manutenção, combatentendo comunismo e socialismo que – na concepção militar – se alastravam ainda sob João Goulart (1961-1964).

Segundo a concepção majoritária entre os militares, eles próprios teriam sido alvo de revanchismo e relegados à insignificância na condução do país sob FCH, Lula e Dilma. Foram pra eles as palavras de Bolsonaro na ONU, quando afirmou: “Há poucas décadas, tentaram mudar o regime brasileiro e de outros países da América Latina. Foram derrotados. Civis e militares brasileiros foram mortos e outros tantos tiveram suas reputações destruídas, mas vencemos aquela guerra e resguardamos nossa liberdade”.

E aqui entra um elemento invariavelmente negligenciado nas análises contextuais e acadêmicas da sociedade brasileira: esta é integrada por estratos sociais que, por um lado, jamais deixaram de render tributos à Ditadura Militar – e daí advém uma nostalgia e saudosismo positivos que, ao cabo, foram assimilados e encarnados por Bolsonaro em sua eleição -, e por outro lado, têm do comunismo uma imagem relacionada com o ‘mal’, à escatologia cristã.

O que Bolsonaro diz ao mundo é ser, sim, capaz de ir à guerra sob abrigo do TIAR para combater o ‘sociaismo bolivariano’, respaldado por apoio popular, ainda que da metade da população – 44% apoiam seu  estilo pessoal, segundo pesquisa Ibope deste 15 de Setembro. O passo seguinte pode ser espoletar um conflito interno que leve a um auto-golpe, salvaguardado pelos artigos 137 e 139 da Constituição,  que tratam das condições para adoção do Estado de Sítio e de suas consequências, entre elas a supensão da liberdade de reunião e a requisição de bens pelo Governo.

Bolsonaro não hesitaria em qualificar de ‘comunista’ a quem reagisse.

Um debate em torno desta questão demandaria de bem mais que um artigo jornalístico. Para ficar em apenas um exemplo do desconhecimento acerca da latência inconteste do anti comunismo na sociedade brasileira, lembro as palavras do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, por ocasião das comemorações dos 30 anos da Constituição, em 04/10/2018: “É função primária de uma Constituição cidadã fazer ecoar os gritos do nunca mais. Nunca mais a escravatura, nunca mais a ditadura, nunca mais o fascismo e o nazismo, nunca mais o comunismo, nunca mais o racismo, nunca mais a discriminação”.

Toffoli jamais foi contestado à altura, apesar de sua opinião afrontar a mesma Constituição que pretendia celebrar, e que garante, entre outros, o pluralismo partidário, inclusive o direito de existir que têm os partidos comunistas.

Em 21/10/2018, poucos dias depois da declaração de Toffoli, o então candidato líder nas pesquisas, Jair Bolsonaro, divulgou vídeo onde prometia, se eleito, fazer “uma limpeza nunca vista na história desse Brasil”.

Uma semana depois Bolsonaro venceu o segundo turno das eleições presidenciais. Hoje, seus quase dez meses de governo são marcados pela completa incapacidade de conduzir democraticamente o  país, ao qual ele impõe sua inescapável agenda de costumes.

E ainda que tenha de ir à guerra tendo um TIAR e um anti-comunismo convicto como pretextos, segue disposto a cumprir sua promessa de campanha: “Varrer do mapa esses bandidos vermelhos do Brasil. Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia”.

Túlio Muniz – Jornalista, historiador, doutor em Pós Colonialismos e Cidadania Global / Sociologia pela Un. de Coimbra.

Redação

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