ONS: o apagão no Amapá e o sofisma como subterfúgio, por Álvaro Nascimento

O termo "sofisma" pode ser traduzido como uma premissa ou raciocínio utilizado com a finalidade de produzir a ilusão de uma verdade

ONS: o apagão no Amapá e o sofisma como subterfúgio

por Álvaro Nascimento

Vazado pelo jornal Valor Econômico, o relatório preliminar do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que identifica as causas que levaram todo o estado do Amapá a viver o maior apagão registrado no Brasil em região tão vasta, é um sofisma, na medida em que termos utilizados no documento têm como objetivo camuflar a gravidade do que efetivamente ocorreu.

O termo “sofisma” pode ser traduzido como uma premissa ou raciocínio utilizado com a finalidade de produzir a ilusão de uma verdade, quando através do uso de argumentos aparentemente racionais determinado indivíduo constrói lógicas que escondem a realidade que não lhe é interessante mostrar, enganando de forma deliberada quem lhe dá ouvidos. O indivíduo que produz um sofisma o faz utilizando-se de ardilosos termos que soam como explicações corretas e plausíveis, mas que têm como objetivo não só enganar como silenciar quem poderia vir a questioná-lo.

A retórica enganosa do ONS começa já no título do documento: “Relatório de Análise de Perturbação” (RAP). O termo perturbação é um sofisma explícito produzido no sentido de esconder a verdade, pois tenta camuflar o que realmente ocorreu no Amapá, e que obviamente poderia ter sido evitado. O desespero e o caos social e econômico causados por 22 dias sem energia estão muito longe de serem traduzidos como uma simples “perturbação”.

Mas a coisa não para aí. A retórica sofismática presente no relatório preliminar prossegue dizendo que a “perturbação” foi resultado de uma “contingência múltipla”. Nos dicionários da língua portuguesa, o termo contingência significa a “possibilidade de que alguma coisa aconteça ou não”, algo “relativo ao que é incerto”, uma “ação ou situação imprevista”, “que não se consegue controlar ou prever”, enfim, uma “eventualidade”. Para os responsáveis pela eficiente operação do sistema elétrico brasileiro, portanto, os 765 mil amapaenses moradores de 13 dos 16 municípios do estado teriam sido vítimas de várias eventualidades ocorridas às 20 horas e 30 minutos do dia 3 de novembro de 2020, quando o caos teve início. Para o ONS, o ocorrido advenha talvez do fato dos amapaenses serem pessoas de muito azar.

Em português sem sofisma, o que ocorreu de fato no Amapá foi um curto-circuito, seguido de explosão e de um incêndio de grandes proporções em um primeiro transformador, que causou uma sobrecarga em um segundo transformador, que entrou em pane. Haveria a possibilidade de se utilizar um terceiro equipamento (mesmo que isso significasse certa irregularidade no abastecimento), mas este estava fora de condições de uso, devido ao fato de se encontrar “em manutenção” desde dezembro de 2019 (11 meses antes da “perturbação”, portanto). A tudo isso os operadores da ONS denominaram de “perturbação de contingência múltipla”, tentando criar a ilusão de uma verdade que tenta minimizar, de forma deliberada, a gravidade do que de fato aconteceu. Neste caso, não é demais repetir: o ONS produziu um sofisma com o objetivo de enganar quem lhe dá ouvidos.

O apagão levou o caos ao fornecimento de água no estado, à paralisação do sistema de telecomunicações, a que milhares de famílias perdessem alimentos perecíveis em suas geladeiras e tivessem eletrodomésticos queimados. Também  gerou uma corrida aos poucos postos de combustíveis que tinham geradores de energia, paralisou o sistema bancário, impediu o uso de cartões de crédito no comércio, emudeceu telefones celulares e provocou enormes prejuízos a comerciantes que não conseguiam manter alimentos refrigerados.

Para além destes enormes prejuízos, a rotina da população do Amapá foi totalmente alterada em plena pandemia causada pelo novo coronavírus. De acordo com o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), na semana do dia 1º ao dia 7 de novembro o Amapá registrou 802 casos da doença. Já na semana do dia 8 ao dia 14 de novembro – quando a população já vivia a “perturbação” – foram confirmados 2.006 casos, um aumento de mais de 250%. Quanto ao número de mortos pela Covid-19, na semana de 1º a 7 de novembro foram registrados 4 óbitos no estado, enquanto na semana do dia 8 ao dia 14 de novembro este número subiu para 26, um aumento de 600%.

Outro fato salta aos olhos no relatório preliminar do ONS. Se efetivamente o que teria causado a “perturbação” no Amapá foram “contingências múltiplas”, nada impede que estas contingências venham a se repetir tanto no próprio Amapá como em qualquer outro estado brasileiro cujas populações venham a ter o mesmo azar dos amapaenses. A minimização das responsabilidades frente ao ocorrido indica que novas “contingências múltiplas” podem se repetir e isso seria parte do risco a que todos devemos nos acostumar.

Para além dos sofismas contidos no relatório preliminar, o comportamento pusilânime (sem energia, de quem é fraco diante de suas responsabilidades) dos operadores do sistema elétrico brasileiro fica ainda mais explícito quando não há nenhuma palavra em relação a eventuais punições aos proprietários da empresa privada Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE) causadora da “perturbação”. Em relação a eles, os operadores do sistema elétrico brasileiro preferem guardar um obsequioso e comprometedor silêncio, como se fosse possível isentá-los de qualquer responsabilidade.

Álvaro Nascimento é jornalista

Redação

2 Comentários

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  1. Qual a surpresa da versão do ONS? Qual a surpresa da leniência da ANEEL com a irresponsabilidade privada quanto à manutenção de suas instalações? Pergunto aos menos jovens (ou idosos como eu)? Antes do ONS quem exercia MUITO BEM a sua função era a Eletrobras. E antes da ANEEL? O DNAEE, que também funcionava a contento. Por que então ONS e ANEEL? Para satisfazer a sanha privatista, mais interessada nos lucros dos mercados do que nos interesses do Brasil. O desempenho e as respectivas versões confirmam. E ainda querem entregar a Eletrobras à especulação financeira. Se conseguirem cometer o crime de lesa-pátria anunciado, já se pode imaginar o que acontecerá a médio e longo prazo com o sistema elétrico. Como diria o Conselheiro Acácio, “as consequências vêm sempre depois”.

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