Pelo Resgate da História

Em cerimônia tocante, do ponto de vista humanitário, e marcante, do ponto de vista político, foi realizada uma Audiência Pública, no dia 21 de junho de 2013, para a entrega dos registros dos depoimentos dos psicólogos afetados pelos crimes da ditadura, à Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva. Esses registros, colhidos por psicólogos do Conselho Regional de Psicologia-SP e reunidos numa enorme pasta de cor esverdeada, foi recebido pelo Deputado Adriano Diogo das mãos da Coordenadora da Comissão dos Diretos Humanos do Conselho, Maria Orlene Daré Vargas.

Trata-se de 26 extensos depoimentos, colhidos a partir de setembro de 2012, que ilustram não apenas a arbitrariedade e a truculência dos agentes de Estado, comuns aos estados de exceção, como também o modo como esse tipo de vivência afeta profundamente os sujeitos, habitando-os para sempre.

Vários depoentes eram crianças que ora viveram diretamente momentos de violência e perda junto a seus pais, ora foram afetados indiretamente pelo não dizível, não perscrutável, não pensável, que sempre ronda as situações de medo.  Essas vivências, que se deram à margem da lei, permanecem também à margem do admissível, do pensável, prolongando assim uma espécie de estado de exceção na interioridade dos sujeitos.  Afinal, não é simples integrar o que é, essencialmente, marginal.

Na Audiência Pública alguns dos depoentes vieram a público relatar suas lembranças e também descrever como foi a experiência de poder, finalmente, falar. Muitos nunca tinham conseguido falar de suas experiências, nem às pessoas mais próximas, mesmo decorridas tantas décadas. Isso se dava não apenas como o prolongamento do silêncio que é próprio a toda ditadura, que impõe pelo medo o limite à expressão, como também pela experiência desconcertante de perceber que nem sempre os interlocutores suportavam reconhecer a verdade cruel contida em seus relatos. Mal começavam a falar, e já ouviam um “deixa disso, esquece, isso é passado, para que voltar para aquele tempo?”. Deste modo, a evitação ansiosa desta questão ia ao encontro do medo, da vergonha, da falta de palavras, enclausurando  os afetados pela violência em seu silêncio, impedindo a elaboração e a superação de suas vivências.

Ao mesmo tempo, os depoentes foram bastante enfáticos ao dizer que estas marcas não os impediram de construir suas vidas e se realizarem profissional e afetivamente. No entanto, todos pareciam sentir que paralelamente a isto eram habitados por estes restos não dizíveis e não socializáveis, que por vezes surgiam e cobravam seu quinhão. Apenas a construção de uma fala, dirigida a um outro apto a suportar e reconhecer o inquietante destas vivências extremas, pode desfazer estes restos enquistados, tornando comum o que antes permanecia privado.  O dizer convoca as palavras, e estas enlaçam a dor, trazendo-a à superfície e ao reconhecimento.  O outro convida para este trabalho de tecer palavras para o que era até então indizível, testemunhando a verdade da experiência que através delas se revela; não há outro modo de desfazer estes enclaves de silencio para dar sentido ao que,  até então, não tinha qualquer sentido ou tinha apenas um sentido privado, não partilhável.

Este empuxo ao silêncio e ao esquecimento é consequência do projeto político que norteou a Lei de Anistia em 1979, que fez, de um lado, reparações modestas, e, de outro, perdões incompreensíveis. Houve pressão para que o país aceitasse as condições limitadas daquela Anistia, levada ao cabo pelos mesmos agentes que cometeram os abusos de Estado, que impuseram um “bola pra frente” em nome de uma suposta paz, denominando todo esforço pelo esclarecimento e responsabilização como “vingativo” e “ressentido”. Isto imobilizou e silenciou ainda mais os afetados pela violência estatal.

Fica patente a necessidade de resgatarmos este episódio da historia do Brasil não apenas no plano individual, conhecendo as histórias e contribuindo para a reparação dos sujeitos, mas também no plano social, preenchendo as lacunas em nossos livros de História, que pouco esclarecem acerca deste nosso passado recente ou mesmo remoto.  Temos uma longa historia de violência no Brasil, que se inicia com o genocídio dos nativos e sua escravidão, junto aos negros sequestrados em suas casas e trazidos para o cativeiro; até que ponto estamos prontos para encarar com franqueza este lado sombrio que marca a construção de nosso pais?  Será que conseguiremos construir uma nação justa e democrática sem enfrentarmos a triste noticia de que tendemos a recorrer à violência e à crueldade sempre que os privilégios de alguns são colocados em questão?

Apenas pela elaboração pública que começa a se dar pelo depoimento daqueles que testemunharam este período, junto aos documentos que podem esclarecer certos episódios e balizar suas percepções, é que poderemos avançar nesta questão. É preciso identificar as causas da ditadura, seus agentes, suas motivações e seu modo de funcionamento, para elaborarmos coletivamente este triste episódio de nossa História, superando-a para que nunca mais se repita.  É o desconhecimento acerca da brutalidade e da ilegitimidade das ditaduras que torna possível para alguns conceberem-na ainda hoje como forma de enfrentar a complexidade das questões que nos defrontamos em nosso caminho de construção da Republica.

É preciso louvar este trabalho realizado pelo CRP-SP, na gestão de Maria de Fátima Nassif, assim como as Comissões da Verdade Municipal, Estadual e Nacional, que tem defendido nosso direito à memória e preenchido as lacunas em nossa História.  Vai nesta mesma direção o “Projeto Clínicas do Testemunho”, lançado em Audiências Públicas realizadas em abril de 2013 pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Trata-se de um projeto público pelo qual o Estado reconhece sua dívida em relação aos  sujeitos que foram aviltados em sua condição cidadã, tendo sofrido abusos por parte das instâncias e das autoridades que deveriam servi-los e protegê-los, e que agora convidados a relatar sua história num ambiente terapêutico, dentro de um programa público de reparação. Maiores informações sobre a Clinica do Testemunho se encontram nos links abaixo:

http://www.sedes.org.br/site/clinica_testemunho

http://www.projetosterapeuticos.com.br/noticia01.php?id=268

Segue o link para artigo do CRP-SP que relata a Audiência Pública mencionada acima.

http://www.crpsp.org.br/portal/midia/fiquedeolho_ver.aspx?id=631

Redação

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