“Quarentena é ruim, mas não é uma prisão domiciliar…”, por Isabela e Samuel

A suspeita do contágio pode ser revelado no uso de máscaras, e quando trata-se de uma tornozeleira, não existe suspeita, a certeza de que aquela pessoa é mais perigosa que o Coronavírus, é real, concreta.

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“Quarentena é ruim, mas não é uma prisão domiciliar…”

por Isabela e Samuel

É compreensível que todas as angústias provocadas pelo isolamento social, pela quarentena, pela suspensão de algumas atividades, e a eventual ociosidade, desperte o sentimento de comparação com a prisão domiciliar, mas fico feliz em afirmar: Não é! (Ainda bem). Convenhamos, nem sempre é saudável comparar a sociedade extramuros e qualquer restrição com a prisão em si. Prisão, intra ou extramuros, quando imposta pela Justiça Criminal é um terror, um horror e uma fábrica de dor. Qualquer semelhança com horror, não é saudável. Mas, se é assim que a pessoa se sente, presa, nos resta apenas a torcida para que ela deixe de se sentir assim, pois no fim, prisão não é bom pra ninguém.

A introdução segue um pouco das angústias compartilhadas, através da internet e recursos virtuais, por mim e Isabela, ambos egressos prisionais. A introdução e todo o texto tem esse tom de angústia: “Angústias dos Penitentes”. Eu já cumpri toda estabelecida pelo Poder Judiciário, inclusive a o período de Prisão Domiciliar. Já Isabela, ainda cumpre pena, e possuí um equipamento de monitoramento eletrônico em uma de suas pernas.

Quarentena: Entre o uso de Máscaras vs o uso de Tornozeleiras.

Iniciamos a conversa falando sobre os estigmas a partir dos sinais evidentes, como um estigma sobreposto a partir de algo preso ao seu corpo, que pode ser removível por espontânea vontade ou não. É que a depender da capacidade de suportar olhares, você até pode remover uma máscara, mas remover uma tornozeleira é impossível.

Nos identificamos com a questão do uso da máscara e a relação com a tornozeleira eletrônica. A máscara, utilizada no início dos rumores sobre a transmissão comunitária do vírus, revelava um espanto, como se quem a utilizasse, seria portador e transmissor da doença. Depois foi esclarecido que não, que o equipamento, era útil e preventivo. A demanda foi tanta, que faltam máscaras e a criatividade abriu margem para uma série de produções customizadas e lindas. “Todo mundo quer usar uma máscara!”.

Já com a tornozeleira não há nenhuma afeição, diferente das máscaras, que os medos e preconceitos foram abolidos e hoje todo mundo quer usar, a tornozeleira não. Ela ainda repele as pessoas ao redor, assusta e provoca ascos. Se o uso da máscara revela uma ação preventiva e de acerto na orientação do Poder Público, já com a tornozeleira é sinônimo de impunidade, falha do Sistema de Justiça Criminal e erro.

Se é assustador sair na rua com uma máscara, pior ainda é ter um treco preso no pé! A suspeita do contágio pode ser revelado no uso de máscaras, e quando trata-se de uma tornozeleira, não existe suspeita, a certeza de que aquela pessoa é mais perigosa que o Coronavírus, é real, concreta, e as vezes geram reações das mais hostis possíveis.

Quarentena: em casa remunerado vs em casa desempregado.

Nós dois sabemos bem que nem todas as pessoas em quarentena possuem trabalho formal ou estão com algum tipo de vínculo empregatício. Tá ruim para boa parte de população. Nossa reflexão neste momento incide sobre em quais condições estamos em casa. Sobre a condição da casa, a distribuição de pessoas por metro quadrado e tudo que permite a pessoa achar que está numa prisão domiciliar, fica como uma provocação, não havendo capacidade nossa para desdobrar o assunto.

Quando ganhamos a oportunidade de ficar em prisão domiciliar (é oportunidade sim – oportunidade e sorte – dificilmente será visto como um direito ou primeira alternativa penal), chegamos em nossos lares sem qualquer vínculo de emprego ou trabalho. Em geral, chegamos em casa sem documentação, salvo um Alvará de Soltura, com demandas em outras documentações como CPF e Título de Eleitor.

E até se adequar com a casa, depois de um tempo custodiado é uma relação de superação de traumas: Acordar assustado esperando a contagem dos presos, banho rápido, ajuntamento de pertences em caixas ou amontados… Achar que vai voltar pra cadeia a qualquer momento. Traumas…

Contudo, cumprir quarentena em home office, férias antecipada ou por qualquer situação de relação com emprego, já é um ponto de diferencia a quarentena da semelhança com a Prisão Domiciliar. A dignidade em ter um trabalho, gozar de férias, ter a remuneração no fim do mês, um cartão de refeição ou alimentação, diferencia por demais as pessoas que estão em prisão domiciliar e as que estão em quarentena. Lamentamos com tristezas, e nos solidarizamos com todos aqueles que cumprem a quarentena desempregados ou recém demitidos. Que miséria desgraçada!

Quarentena: Questão de Saúde vs Questão de Justiça.

Outro ponto que debatemos por WhatsApp foi sobre a expectativa com as determinações ministeriais, e agora escancara a questão da diferenciação. Quem está em quarentena por recomendação do Ministério da Saúde, está sendo alvo de uma política de preservação de vida, e de promoção de cuidado. O Ministério da Saúde ao recomendar a quarentena, deseja te ver vivo, torce por seu compromisso para evitar maiores danos, ou seja, se importa com a tua vida e a considera um bem jurídico, um ativo precioso e lhe confere a digna condição de cidadão. Faz o que faz pois deseja que você se mantenham vivo.

Não é o caso de quem estão em prisão domiciliar, monitorado ou não. Quem está em domiciliar, é alvo de desconfiança institucional. O prendem numa tornozeleira, não por uma questão de controle apenas, mas para que fique evidente seu histórico penal, e quem assim atua, não se importa com tua vida. Com a tornozeleira, és um sujeito matável, e passa a ser visto com um indivíduo cuja a vida não tem valor e o caso de morte nada mais representa que um “CPF cancelado com sucesso”.

E se você morrer, é menos um para o Estado custear, que é menos um marginal na rua e por aí vai… Sempre na perspectiva do desastre, da barbárie e da anulação do sujeito. Não é visto como cidadão, tem o status de bandido, de criminoso e outras identidades forjadas na insanidade persecutória. Um paciente sempre será um paciente, e contará com a expectativa das pessoas quanto a recuperação e o incentivo institucional para a melhora e conservação da vida. Já uma pessoa egressa do sistema penitenciário, terá em seu desfavor o ódio e repulsa quando identificada, a depreciação institucional e a desesperança quanto a sua reabilitação e reintegração social.

Quarentena: dor do isolamento vs dor da privação.

Chegamos ao ponto final das ponderações feitas, as quais estamos dispostos a assinalar algumas distinções entre quem está em casa, sob isolamento social, e quem está em casa sob o regime de privação de liberdade. Dores, são dores! Nesse sentido não pretendemos hierarquizar ou estratificar as sensações horríveis que estamos vivendo. Seja cumprindo uma determinação do médico ou a determinação do juiz. Seja para evitar o hospital ou a cadeia, seja na condição de paciente ou presidiário.

Isolado, o cidadão teme ir comprar pão para não ser contaminado ou contaminar outra pessoa. Privado, o egresso penal, teme ir na rua e a tornozeleira piscar uma luz vermelha, começar a vibrar e ele infringir o perímetro imposto, e seja para comprar pão, buscar o filho na escola, comprar remédio… E isso, independe de pandemia.

O isolado, faz um Meet Hangout ou Zoom, consegue interagir com a galera da faculdade, do trabalho, com vizinhos e amigos. Privado de liberdade, sob prisão domiciliar, a contar do tempo preso, sequer sabe manusear todas essas tecnologias, se é que tem condição pra isso. Se é que ainda tem amigos, se é que existem familiares para poder trocar um papo. Não tem faculdade, na maioria poucos concluíram o ensino médio…

Gente, esse é um pedido nosso: Não compare a prisão domiciliar com esse momento que estamos passando em quarentena. Prisão é algo horrível, viver sob vigilância é horroroso. Se sente dores por achar que teus vizinhos desconfiam que você pode estar contaminado, pergunte a ele o que ele acha se você fosse alguém em prisão domiciliar, após um período de custódia. Os autores do texto passaram e passam por isso.

Eu, Samuel, senti na pele a minha condição de monitorado, morando com meu pai e sua esposa. Os vizinhos comentavam, chegaram a cogitar avisar ao proprietário do imóvel sobre o perigo que eu representava enquanto filho do inquilino. Eu, Isabela, ainda passo por isso. Monitorada, com o equipamento no tornozelo, sou alvo constante de olhares odiosos, inclusive de vizinhos que me conhecem desde a infância. Passo horas do dia com um fio na tomada e a outra ponta presa na tornozeleira que carrego.

“Mas passam por isso quem fez merda. É só não cometer crime que isso não acontece!”– há quem diga e pense assim, esse aí já está contaminado pelo “raivosovírus”. Mas comparar quarentena com prisão domiciliar não traz com o conceito as dores, as humilhações, as demais dores, as culpas, os medos a insegurança e a sensação de fracasso que o regime impõe. Não desejamos quarentena pra ninguém, prisão domiciliar muito menos. Torcemos por um cotidiano saudável, livres de vírus, crime, ódio e repulsas. Por um viver sem qualquer comparação com algo ruim. Prisão não é referência pra nada, salvo para esculacho, humilhação, sofrimento e morte. Como se vê, Prisão Domiciliar, pode ser muito pior que o Coronavírus. E sua casa é uma benção, apesar de possíveis limitações. Não permita que seu lar seja comparado com cadeia e que teu cotidiano seja relacionado com algum regime prisional. Prisão não presta!

Samuel Lourenço Filho

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