Soberano deveriam ser os Direitos Humanos, por Eliseu Raphael Venturi

Ana Gabriela Sales
Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.
[email protected]

Foto: Reprodução/ STF

“Supremo” são os Direitos Humanos: por uma hermenêutica da desconfiança

por Eliseu Raphael Venturi 

Direitos humanos são, historicamente, frutos de uma desconfiança ante os poderes constituídos. Sua lição cotidiana é a de pôr-se de sobreaviso diante das relações de poder, das autoridades, e de qualquer discurso ou prática com função normativa ou com qualquer pretensão executiva ou punitiva.

Com as fundações humanistas modernas da racionalidade jurídica, cuja laicidade afastou fontes de manifestação da vontade para além dos homens concretos, e inseridos os traumas profundos da Segunda Guerra Mundial e o horror totalitário no escopo de prevenção das Declarações Internacionais, um valioso aviso se tornou explícito à comunidade internacional.

Na contemporaneidade, o maior pensador do Estado é, necessária e indissociavelmente, o maior pensador de direitos humanos, caso contrário, não terá alcançado sequer as rebarbas do seu objeto de reflexão. Relações privadas, mercado e indivíduos, igualmente, foram redimensionados em suas referências éticas e jurídicas. “O reconhecimento da centralidade dos direitos humanos corresponde a um novo ethos de nossos tempos”. (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A humanização do direito internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 406).

A grande advertência, qual seja, a de que a desumanidade e a arbitrariedade não constituem exceção no exercício do poder soberano e que a técnica jurídica se debruça no controle desta violência fundante, tornou-se, hoje, pressuposta; ela antecede qualquer consciência de juridicidade, sendo condicionante do funcionamento democrático mínimo.

Este é o compromisso primeiro de qualquer profissional das carreiras jurídicas e, mais, de qualquer pessoa ou organização social comprometida com a construção de uma comunidade substancialmente democrática, daí a abrangência que os direitos humanos assumiram nos últimos setenta anos na educação, nos ordenamentos internos e nos desejos de convivência.

Uma hermenêutica dos direitos humanos, portanto, é antes uma hermenêutica da desconfiança (dos lugares de poder). A suspeita das interpretações (e só há norma jurídica como fruto de interpretação), como recomendou insistentemente o hermeneuta francês Paul Ricoeur, tende à iconoclastia. (RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Tradução de M. F. Sá Correia. Lisboa: Rés, 1988. p. 100).

As interpretações, nesse sentido, precisam ser abertas a partir da perspectiva do conflito – o que representou, inclusive, importante passo na história da discussão hermenêutica, em muito fundada em expectativas de harmonização de compreensões.

Em suma, as interpretações não são bastantes em si, elas precisam ser constantemente confrontadas entre si e em relação aos horizontes de suas referências (normas, história, filosofia). O conflito, contudo, não é estanque, nem tampouco finalidade, mas, antes, um momento: ele depende de uma teleologia pela qual se restaurem os sentidos.

A hermenêutica da desconfiança é, portanto, hermenêutica restaurativa e, aqui, o sentido a ser resgatado é justamente o dos direitos humanos tomados em sua historicidade, principalmente naquilo que possuem de resistência ante arbítrios, discriminações, desumanidade, crueldade e degradação, ao compasso da proteção e promoção de direitos consagrados e garantidos.   

Diante da fluidez da realidade, das dissimulações contidas nos discursos, dos interesses do poder político e econômico, dos lapsos da ética da comunicação, das subjacências inconscientes do humano, das linhas de relações com o passado e o futuro, entre outros fatores envolvidos na realização social da linguagem, o intérprete da hermenêutica da desconfiança busca, para além dos ocultamentos, a revelação do sentido encoberto, firmado em seu compromisso maior.

Em contraste, apesar destas delimitações hermenêuticas, a rigor, centros de poder costumam ser cercados por hermenêuticas entusiastas e festivas, ainda mais levianas do que uma simples hermenêutica da convicção e confirmação, ou uma hermenêutica meramente conservadora, e que, em geral, enfocam rotos véus de integridade aparente e insuficiente, tais como a segurança jurídica, a presunção de legalidade e constitucionalidade, a competência de autoridades e mesmo a qualificação acadêmica de agentes, encerrando seu natimorto horizonte crítico.

Esta distorção comunicativa tem sido sensivelmente perceptível nos mais recentes eventos do Judiciário e da Política brasileiros. A grande mídia, imersa em mentecaptas hermenêuticas entusiastas, apaga o conflito e a diferença, produzindo uma imagem plana e ilusória de um Direito estável e corretivo, voz da moralidade pela qual se insuflam os discursos ideológicos de apagamento da contestação, da crítica, da suspeita. Juízes são endeusados, decisões são inquestionáveis, práticas reiteradas de ilegalidade são ovacionadas.

Se os direitos humanos são luta, são política, são oposição e construção constante, também são Direito, portanto, normatividade e, assim, sujeição. Os poderes estão sujeitos, as instituições são subordinadas, o jogo democrático depende de referenciais anteriores não apenas para fundamentação de validade, mas, sobretudo, para não se quedar em autoritarismos e totalitarismos.

O Supremo Tribunal Federal se sujeita à categoria suprema dos direitos humanos, que depende de construções filosóficas e complexas construções éticas e que, na trama tradicional da política e da soberania, apresenta-se como derradeiro aviso da juridicidade interpretativa.

Mesmo os discursos mais rasos possuem profundezas das quais se deve desconfiar. Menções levianas, sem coesão, coerência e teleologia, a direitos humanos – em uma cultura judicial pouco afeta a vigência destes direitos – se mostraram como puro engodo de procedimentos interpretativos e de enunciação que, além de não se constituírem como processos de argumentação jurídica, têm menosprezado o sentido, a finalidade e o conteúdo contemporâneo dos direitos humanos.

Quando o Supremo trai a Constituição, os constituintes originários, a soberania popular, a técnica, a filosofia e a teoria do Direito, a vontade DA Constituição e a vontade DE Constituição e, ainda segundo termos do constitucionalista alemão Konrad Hesse, quando os fatores reais de poder parecem elidir o horizonte normativo, afirma-se uma distorção jurídica direta e democraticamente reprovável, abjeta e execrável.

Conforme afirmou o constitucionalista norte-americano John Hart Ely: “o direito constitucional existe para aquelas situações em que o governo representativo se torna suspeito, não para aquelas em que sabemos que ele é digno de confiança”. (ELY, John Hart. Democracia e desconfiança. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 246).

Quando o direito constitucional, ele mesmo, se torna suspeito, na figura dos seus guardiões, indignos de confiança, uma hermenêutica da suspeição é mais do que nunca urgente e necessária, posto que Tribunal e seus operadores estão sujeitos a uma normatividade ética e jurídica, por seus códigos próprios e, novamente, pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Esta sujeição dos poderes, e sua suspeição, não podem jamais ser esquecidas. “Supremo” são os direitos humanos, não uma ou outra idiossincrasia, uma ou outra performance, um ou outro interesse, um ou outro modo desconexo de produzir votos. 

.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

Ana Gabriela Sales

Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Texto perfeito escrito pela

    Texto perfeito escrito pela maior referência nacional sobre direitos humanos e pós-humanismo: Eliseu Venturi!

    Vale a leitura! 

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador