STF começa a ser julgado, por Carol Proner

O que se julga, aos olhos da opinião pública e da sociedade brasileira, é a autoridade do STF para exercer limites às excentricidades interpretativas que insistem em flexibilizar ou suprimir as garantias constitucionais do devido processo e da ampla defesa.

STF começa a ser julgado

por Carol Proner

A garantia da presunção de inocência é coisa séria e vem de longe. De Justiniano aos nossos dias, prevista no direito islâmico, na tradição romano-germânica, atravessou o medievo e ganhou os códigos da ilustração, as declarações e pactos sobre direitos civis e políticos do século XX, atingindo o ápice na forma de consenso universal, expresso no artigo 11 da Declaração de 1948: “1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.

A tradução do sentido civilizatório da norma para o direito pátrio, consta no inciso LVII, do rol de Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição de 1988: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, dispositivo simétrico ao que garante o artigo 283 do Código de Processo Penal: “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Fruto dos tempos de arbítrio, eis que o artigo 283 do CPP, mesmo de evidente constitucionalidade, passa a ser avaliado pela Suprema Corte em três Ações Diretas de Constitucionalidade movidas por entidades e partidos, julgamento que há dois anos aguarda definição de mérito. A decisão de julgar, protelada muitas vezes, ganha a pauta da Corte e torna-se prioridade na agenda político-jurídica do país, isto porque encerra o grande embate entre Estado Democrático de Direito e Estado de Exceção.

Mas, afinal, o que está em julgamento a partir de hoje?

Uma forma de responder a esta pergunta é dizer que o que se julga é a constitucionalidade da prisão antecipada da pena, assegurada por decisão precária do STF desde 2016. O Supremo pode, com indisfarçável agressão à Constituição, manter o entendimento pela execução provisória da pena após segunda instância ou rever posição, entendendo que a prisão antecipada contraria a presunção de inocência, fere a Constituição e as normas civilizatórias, abrindo a possibilidade para a soltura de réus até o transito em julgado de sentença penal condenatória. Optando pela Constituição, abrem-se outras possibilidades que agora não vêm ao caso explorar.

Mas há uma outra forma de entender esse julgamento. O que verdadeiramente está em debate é o próprio Supremo Tribunal Federal, a integridade da Corte para exercer o controle de constitucionalidade e de legalidade do sistema de justiça criminal. O que se julga, aos olhos da opinião pública e da sociedade brasileira, é a autoridade do STF para exercer limites às excentricidades interpretativas que insistem em flexibilizar ou suprimir as garantias constitucionais do devido processo e da ampla defesa. O Supremo deverá, numa espécie de autojulgamento, decidir se resiste ao arbítrio ou se dá as mãos ao Estado de Exceção que prospera no país, com exímio protagonismo do poder judicial. E estará sendo observado e julgado por uma sociedade que já compreendeu perfeitamente o papel da Corte, passivo ou ativo, nos episódios de inconstitucionalidade que se seguiram ao golpe de 2016.

O anúncio do julgamento das ADCs alvoroçou generais e representantes da extrema direita que, escorados na gazopa do combate à corrupção, alertam para os riscos de convulsão social caso o STF não resista à tentação de cumprir a Constituição. Sabe-se que, de hoje até o dia 23 de outubro – dia estimado para o julgamento – o tom dos tweets deverá subir. Mas o bom-mocismo de setores da caserna experimenta uma fase de descrédito com o apoio dos militares a um governo corrupto, golpista e traidor dos interesses nacionais, sem falar na decadente figura do Ministro da Justiça e nos esquemas lavajatistas desmascarados pelas revelações do The Intercept.

O momento, portanto, não é bom para a desculpa da tutela militar e está claro que os Ministros do STF, individualmente considerados, não serão esquecidos caso queiram atribuir a falta de coragem aos esgarçados coturnos de soldados que servem aos interesses de outras legiões. As Forças Armadas, tanto quanto a Suprema Corte, têm o dever de cumprir a Constituição. E o povo brasileiro, tanto quanto as Forças Armadas, também tem o dever de defende-la e o direito de julgar aqueles que não o fazem. Hoje, o STF começa a ser julgado.

Carol Proner – Doutora em Direito, Professora da UFRJ, Membro fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD

Redação

5 Comentários

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  1. A elite e seus lambe-botas estão alvoroçados com a possibilidade de que a Constituição e o a lei processual penal venham a ser respeitadas e aplicadas. De acordo com a Falha de $ampa:

    “É bastante razoável a tese -vigente até 2009 e de novo a partir de 2016- de que o segundo julgamento, este por corte colegiada, marca o momento a partir do qual o réu condenado deveria perder a prerrogativa de recorrer em liberdade.

    Desse ponto em diante já está cumprida a cautela do duplo grau de jurisdição, marco do Estado de Direito. Tanto é assim que a regra quase universal das nações democráticas maduras é não deixar soltos os apenados que saíram derrotados do segundo julgamento.

    O alongamento da hipótese de prisão dá à elite de réus que pode pagar advogados caros um privilégio que a sociedade deixou de tolerar. A protelação até a prescrição, em especial nos crimes de assalto ao erário, agride o princípio republicano de que a lei é para todos”.

    https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/10/chega-de-guinadas.shtml

    Será que a protelação até a prescrição, em especial nos crimes de assalto ao erário, NÃO agride o princípio republicano de que o dinheiro para pagar bons advogados é para poucos?

    Será que a falta de dinheiro para a maioria esmagadora da população pagar bons advogados, o que resulta nas suas prisões antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, não agride o princípio republicano de que o dinheiro é para poucos?

    A Itália seria uma nação democrática madura?

    Pois bem. A Constituição do Brasil estabelece que:

    “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

    Por seu turno, a Constituição Italiana dispõe que:

    “L’imputato non è considerato colpevole sino alla condanna definitiva”.

    O Código Processual Penal Brasileiro reza que:

    “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

    Ganha um docinho quem souber se a legislação italiana permite ou proíbe a prisão penal antes do trânsito em julgado da sentença criminal condenatória.

  2. Excelente artigo, didático, claro, contundente, forte e correto. Aguarde-se.
    Dele ressalto:
    – A garantia da presunção de inocência é coisa séria e vem de longe. De Justiniano aos nossos dias, prevista no direito islâmico, na tradição romano-germânica, atravessou o medievo e ganhou os códigos da ilustração, as declarações e pactos sobre direitos civis e políticos do século XX, atingindo o ápice na forma de consenso universal, expresso no artigo 11 da Declaração de 1948: “1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
    – A tradução do sentido civilizatório da norma para o direito pátrio, consta no inciso LVII, do rol de Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição de 1988: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, dispositivo simétrico ao que garante o artigo 283 do Código de Processo Penal: “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
    – Fruto dos tempos de arbítrio, eis que o artigo 283 do CPP, mesmo de evidente constitucionalidade, passa a ser avaliado pela Suprema Corte em três Ações Diretas de Constitucionalidade movidas por entidades e partidos, julgamento que há dois anos aguarda definição de mérito. A decisão de julgar, protelada muitas vezes, ganha a pauta da Corte e torna-se prioridade na agenda político-jurídica do país, isto porque encerra o grande embate entre Estado Democrático de Direito e Estado de Exceção.
    (…)

  3. Na verdade, a parcela da população que não se deixa influenciar pelas manipulações da mídia bandida já vem julgando o esse te efinho há muito tempo e já reuniu elementos materiais de prova suficientes para sustentar o convencimento pela condenação dessa caterva. E já que a alta corte de baixo nível já se desviou de suas finalidades e abraçou a luta no campo da política, nem há sequer a necessidade de provas e nem contraditório para sustentação de tal condenação

  4. Na boa Carol Proner…
    Todo mundo sabe que os ministros do STF se comportam como se fossem deuses acima dos deusinhos da segunda e da primeira instância.
    Eles não estão nenhum pouco preocupados com a história.
    Os deuses existem fora e acima dela.
    De fato, os juízes só se lembram que são seres humanos quando terminam decapitados (Revolução Francesa) ou fuzilados (Revolução Russa).

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