Três poetas, por Walnice Nogueira Galvão

Três poetas

Walnice Nogueira Galvão

Para nosso júbilo, a poesia oferece uma face tão variada quanto prazerosa. O axioma é demonstrado por estes três poetas, que burilam seus poemas de maneira radicalmente diversa uns dos outros. No entanto, sabem como atingir nossa sensibilidade e nosso entendimento, embora de uma maneira toda original, peculiar a cada um.

Waly Salomão, baiano de Jequié, adverte-nos:

vou pegando pelo rabo

a lebre de vidro do acaso

– pois, sem dúvida, o acaso é um de seus deuses. Waly como que acha palavras, tropeça em rimas e sonoridades que ecoam umas nas outras. Mas que o leitor não se iluda. O acaso é trabalhado e retrabalhado, até que o poema fique polido, reluzente, como um artefato ou uma jóia.

Mas não falta alguma coisa no inventário?

Falta sim – falta a pátria poética, a dimensão metalinguística, a poesia lida nos livros e que, de tão convivida, se transubstanciou na carne e no sangue do poeta.

Fiel a sua lira desde cedo, Waly só se despediu dela na morte. Praticava uma poesia exuberante, expressão de sua personalidade sem peias, extrovertida e mesmo extravagante. Libertário, este agitador cultural atirava para todos os lados em luta incansável contra o convencionalismo, fosse estético fosse comportamental. Dá para entender que não foi à toa que adotou ( ou achou) o pseudônimo de Sailormoon.

Já Eucanaã Ferraz, carioca, dá predominância à imagem visual, instantânea, criando uma cena e presentificando-a para o leitor.

Mimetizar o coloquial não é uma de suas metas. A filigrana do verso, rico de recursos, não coincide com unidades sintáticas, não imita a fala, interrompe-se quando menos se espera, frequentemente a contracorrente da fluência.

Revela forte impulso à formalização, o que, aliando-se à economia de meios e à depuração, traz à tona a importância conferida ao arcabouço, constituindo por assim dizer a ossatura da imagem. Essa poesia tão original procura casar o assunto à forma, enfatizando correspondências, pois, dominando a linguagem, sabe usá-la.

Neste poema, podemos apreciar os bizarros laços de parentesco que se instauram entre dois seres “produtores de som”, um animado e outro inanimado, o desavisado besouro causando perplexidade e assombro ao piano. O encanto do poema emana dessa inesperada confluência de duas esferas da empiria habitualmente separadas – mas isso é privilégio da poesia. Senão vejamos como o piano reaje:

… supõe ser o inseto

ali um sinal, um seu semelhante,

talvez um

filho.

Por outro lado, quando Maria Lúcia Dal Farra nos propõe um vegetal comestível como alvo ou fonte de poesia, não seria talvez capaz de prever nosso espanto, a menos que leiamos o poema e deixemos que nos ilumine:

… Pertença da floricultura e da boa

mesa, ornamenta o paladar

com a lembrança das nascentes:

não são de lâmina as escamas,

mas (degustáveis) dádivas mediterrâneas

dispostas no coração em tranca.

Este louvor da alcachofra – mero item de culinária – , é um poema laico implicando que, franciscanamente, devemos exaltar as graças de todas as dádivas da terra. Fornece apenas uma imagem, entretanto submetida à meditação que vai recobrindo o objeto com analogias, paradoxos, abordagens ousadas, sinestesias, questionamento de uma genética fantástica, sensações e percepções. O resultado é o espessamento da única imagem, em seus desdobramentos, amiúde inusitados.

Não se iluda o leitor ao ver que privilegia a condição feminina, trazendo a primeiro plano a casa, as tarefas miúdas, o abastecimento, os gatos, os apetrechos domésticos, as plantas do jardim e do quintal. Na verdade, tudo isso comporta erotismo e metafísica, dando voz a uma meditação da coisa tenaz, sem desfalecimento.

Quase se poderia falar em poesia fenomenológica, que dá primazia à deleitação intelectual, acumulando iluminações, epifanias, alumbramentos. Em meio à azáfama da rotina, percebe-se uma escritora arrebatada pela contemplação e pelo êxtase.

São três poetas: e, se só os une a dedicação ao nobre ofício, o leitor agradece a variedade das oferendas.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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