Ulysses, a Constituição e a tal nostalgia da ditadura, por Luis Felipe Miguel

Bolsonaro não é um ponto fora da curva. Bolsonaro é uma demonstração grotesca de aonde este caminho nos leva.

Ulysses, a Constituição e a tal nostalgia da ditadura

por Luis Felipe Miguel

Ao promulgar a Constituição de 1988, o deputado Ulysses Guimarães disse que ela havia sido escrita “com ódio e nojo à ditadura” – expressão que, aliás, incomodou os chefes militares presentes à cerimônia. Há uma dose de generosidade na descrição, já que nem todos os constituintes eram assim tão comprometidos com a democracia, mas ela captura bem o fato de que, naquele momento, tendo recém saído do pesadelo autoritário, o Brasil queria dotar a si mesmo de instrumentos que impedissem seu retorno. Por isso, apesar de suas muitas ambiguidades, a Carta de 1988 estabelece fortes garantias contra o arbítrio estatal e aponta o compromisso com um patamar mínimo de justiça social.

A culminação lógica da campanha contra a Constituição, que as classes dominantes do Brasil promovem há anos, é a nostalgia da ditadura. Pois não é possível imaginar uma ordem em que as liberdades democráticas existam e não sirvam para que os dominados se organizem em defesa dos próprios interesses. Bolsonaro não é um ponto fora da curva. Bolsonaro é uma demonstração grotesca de aonde este caminho nos leva.

Ulysses, não custa lembrar, era um veterano político conservador paulista. Apoiou o golpe de 1964, marchou com Deus e a família pela liberdade. Mas foi capaz de ver o que a ditadura significava e mudar de posição. Infelizmente, nossa direita de hoje, liderada por Fernandos Henriques e Dórias, não tem essa estatura. Prefere deixar o país sob a tutela de milicianos ou de milicos, prefere destruir o que existe de institucionalidade democrática, a fim de garantir que suas vantagens e privilégios não serão ameaçados e que o risco de construirmos um país mais justo está definitivamente afastado.

Não basta ridicularizar as bizarrices de Bolsonaro ou torcer o nariz para as comemorações da ditadura. É preciso admitir o campo popular de novo como interlocutor legítimo na esfera política – isto é, que nenhuma mudança no ordenamento constitucional ou na vigência dos direitos ocorrerá sem ampla e verdadeira participação da sociedade. E é preciso restaurar as garantias e revogar a tutela dos poderosos sobre as disputas políticas – o que está sintetizado na bandeira “Lula livre”.

Luis Felipe Miguel

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  1. Arquitetura da Constituição
    (…)
    As forças conservadoras

    Na fase seguinte dos trabalhos, cada comissão temática apresentou seu anteprojeto à comissão de sistematização, que ficou responsável por consolidar as demandas. Desse processo resultou o primeiro projeto de Constituição que, conforme observado nos estudos de Antônio Sérgio e também de Costa, refletiu a sobrerrepresentação da ala progressista nas comissões temáticas. A etapa posterior seria a votação em plenário, mas as regras do regimento interno impunham limitações para a alteração do texto. Insatisfeitos com os rumos do processo, os setores mais conservadores da ANC tentaram retomar seu controle. Sob o comando do então presidente da República José Sarney (1985-1990), foi articulada uma coalizão suprapartidária que se tornaria conhecida como Centrão. O objetivo principal era alterar o regimento para permitir a apresentação de emendas e substitutivos em plenário e modificar o projeto aprovado pela comissão de sistematização. O bloco agiu também para derrubar duas medidas específicas: o sistema parlamentarista de governo e o mandato de quatro anos para Sarney – a coalizão defendia o presidencialismo e cinco anos de mandato. A articulação foi bem-sucedida, e um novo regimento interno, mais propício a modificações em plenário, aprovado.
    Além de manter os poderes do Executivo, esse bloco defendeu medidas propostas pela cúpula militar. Segundo Antônio Sérgio, o ministro do Exército à época, o general Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015), redigiu um documento com 26 reivindicações dos militares. Uma dessas reivindicações previa que as Forças Armadas seriam responsáveis pela garantia da lei e da ordem em território nacional. Atenuada em sua formulação final, a reivindicação foi contemplada no artigo 142 da Constituição, que dispõe que as Forças Armadas são subordinadas à Presidência da República, destinando-se “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, apenas quando convocadas por um deles, pela garantia da lei e da ordem”.

    As alterações no regimento interno e essa interação entre as forças políticas atrasaram o processo. Instalada em 1º de fevereiro de 1987, e com previsão para encerrar suas atividades em 15 de novembro daquele ano, a Constituinte brasileira durou 20 meses, período bastante extenso se comparado, por exemplo, a processos latino-americanos recentes – o caso da Bolívia, que em duração mais se aproxima do brasileiro, levou 16 meses; o venezuelano e o colombiano, quatro meses. O texto final da Constituição foi aprovado em plenário no dia 22 de setembro de 1988, com 474 votos a favor, 15 contra e seis abstenções. Apesar de 15 dos 16 constituintes do PT terem votado contra a redação final, por considerarem que, mesmo havendo avanços, as estruturas de poder permaneceriam intactas, o partido assinou o documento final. (…)

    http://revistapesquisa.fapesp.br/2018/12/14/arquitetura-da-constituicao/

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