Vírus e fronteiras, inimigos mortais irreconciliáveis?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Se não houver uma maior cooperação entre todos os países e entre as classes sociais dentro de cada um deles, o fim da guerra está próximo. Os que não forem mortos pela doença estão fadados a sofrer com o desabastecimento das cidades.

Vírus e fronteiras, inimigos mortais irreconciliáveis?

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Em algum momento num passado distante, os homens sentiram a necessidade de levantar barreiras para se proteger dos animais ferozes e dos outros grupos humanos. Assim que nasceu, a fronteira estabeleceu um limite entre dentro e fora e fixou um critério para distinguir quem pertence e quem não pertence à comunidade.

Esse pertencimento, entretanto, rapidamente se tornou objeto de disputas. Temístocles concebeu a estratégia que garantiu a vitória naval de Atenas na batalha de Salamina (480 aC). Algum tempo depois ele foi expulso da cidade. Os cidadãos atenienses não conseguiram suportar um homem que se considerava mais importante do que eles. Condenado a morte Sócrates poderia ter se exilado, mas ele preferiu cumprir voluntariamente a sentença (em 399 aC ele tomou cicuta). O filósofo considerava melhor morrer pertencendo a sua cidade do que viver como um estranho em qualquer outro lugar.

As muralhas de Roma eram consideradas sagradas. Durante sua construção, Rômulo teria matado seu irmão Remo porque ele ousou desrespeitá-las. Onde quer que acampasse o exército romano levantava fortificações transitórias. O acampamento era uma extensão da cidade, mas era administrado com regras mais rígidas do que aquelas que existiam na urbe. O soldado que as violasse poderia ser vergastado, estrangulado ou simplesmente colocado para fora do acampamento. Se não morresse de fome e de frio, ele seria devorado pelas feras ou estraçalhado pelos inimigos dos romanos.

Respeitar a fronteira era essencial. Em algum momento, porém, as muralhas deixaram de ser um marco tão importante. Onde quer que as tropas romanas estivessem a fronteira de Roma estaria. A grande contribuição do império romano para a história das idéias políticas foi a de que era possível pertencer a civilização romana sem morar na cidade de Roma. Ao romanizar o mundo, os romanos deslocaram a fronteira do mundo físico para o universo simbólico.

Essa distinção entre uma fronteira geográfica e o outra cultural se tornaria mais sofisticada no século I dC. Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus tem um significado político muito preciso: é possível pertencer a um novo tipo de comunidade que não é civil, cultural ou econômica. Nos seus primórdios, o cristianismo tinha duas ambições: destruir o isolamento dos povos (todos fazem parte da comunidade de Deus) e pacificar os homens que pertenciam a civilizações que se consideravam inimigas.

A queda de Roma possibilitou ao cristianismo assumir as rédeas do poder. Mas assim que se tornaram governantes, os bispos cristãos começaram a ser inoculados pela ideologia da fronteira. As rivalidades entre as cidades-estados que existia na Antiguidade havia deixado de existir. Um novo tipo de rivalidade estava nascendo: aquela que iria opor mortalmente quem pertencia e quem não pertencia à religião cristã.

Os Estados nacionais nasceram por causa de uma necessidade econômica específica. Durante Idade Média cada burgo, cidade ou feudo tinha suas próprias regras. Unificá-las havia se tornado necessário para possibilitar a expansão do comércio. No princípio, a força bruta foi o único critério empregado para a fixação das fronteiras. Num segundo momento, os monarcas também começaram a usar a diplomacia para concentrar nas suas pessoas os poderes que outrora haviam pertencido aos senhores feudais. Eles obviamente exigiram algo em troca. A Magna Carta inglesa de 1215 é um exemplo de compromisso imposto ao rei pelos nobres.

A fronteira (geográfica, política, jurídica, militar, religiosa etc) foi então encapsulada num único conceito: o de fidelidade ao Rei. Não por acaso o crime mais grave nesse período passou a ser o de “lesa majestade”. O vassalo infiel ao monarca se colocava fora dos limites do reino. Em razão disso sua pessoa e seus bens não podiam gozar de qualquer proteção real. Se fosse condenado, ele perderia a vida e seu patrimônio seria confiscado. A “terra de ninguém” em que ele habitava deveria ser salgada (como ocorreu no caso de Tiradentes, por exemplo).

Apesar das profundas alterações políticas e econômicas que ocorreram nos últimos séculos (fim do absolutismo, revolução industrial, tolerância religiosa, republicanismo, fim do colonialismo, etc) a fronteira continuou a exercer uma função política importante. Ela delimita a soberania de um Estado e outorga a ele o direito de resistir a qualquer agressão estrangeira ao seu território. O imperialismo de alguns Estados é um fato deprimente (digo isso pensando especificamente nos EUA), mas de maneira geral tem sido rejeitada a ideia de que a fronteira de um império pode estar onde quer que ele tenha interesses.

Há algumas décadas, refletindo sobre a criação da fronteira que estava separando o Norte rico do Sul subdesenvolvido, Jean-Christophe Rufin afirmou que:

“A ideologia do desenvolvimento mantinha um vínculo entre os dois mundos. Postulava uma comunidade de natureza e, para quem estivesse atrasado, a possibilidade de alcançar quem estivesse mais à frente. A ideologia da fronteira rompe com essa unidade. Separa, de um lado, o mundo histórico, onde se aplicam categorias universais, e de outro, o mundo dos novos bárbaros, onde reina o relativismo cultural, isto é, as divisões étnicas, os ódios intercomunitários e o particularismo violento.

Essa divisão do mundo é subjacente à vida internacional e esclarece seus novos aspectos. Ganha a opinião pública e ilumina as mentes dos dirigentes políticos: o pacto de segurança contra justiça pouco a ponto impõe-se a todos. Eis ao que se assiste em ritmo acelerado: proteger a prosperidade, limitando-a; preservar a civilização universal, reservando-lhe um espaço controlado; rodear o Norte de uma fronteira. Tentar circunscrever essa mutação no tempo real, isto é, no período durante o qual ela se processa, antes mesmo de concluir-se, é evidentemente expor-se a erros, a aproximações, a previsões que se desmentirão pelos fatos. Os historiadores e estudiosos da política, que esperam para prever um evento que já se tenha produzido, correrão certamente menos riscos.” (O império e os novos bárbaros, Jean-Christophe Rufin, Biblioteca do Exército, Rio de Janeiro, 199, p. 202)

A política internacional ativa e altiva dos governos Lula e Dilma enfiou uma estaca mortal no coração do G-7. A fronteira mencionada por Jean-Christophe Rufin começou a ser destruída com o sucesso do G-20. A demolição da muralha entre os países do Norte e os do Sul, que estava sendo levantada pelo G-7, continuou com a criação dos BRICS. O sucesso da diplomacia brasileira foi histórico: o Norte rico foi impedido de condenar os países do Sul a serem eternamente pobres, subdesenvolvidos, endividados e subservientes.

Esse era o cenário em que nós estávamos vivendo. Ele obviamente deixou de existir em razão da pandemia. O COVID-19 não respeita fronteiras geográficas, políticas, jurídicas, militares, religiosas ou econômicas. O vírus certamente não está preocupado a nacionalidade, religião, sexo ou situação social de suas vítimas. Ele se espalhou por todo o planeta e faz vítimas tanto no Norte quanto no Sul.

Os Estados fecharam suas fronteiras para conter a pandemia. Assim que elas forem reabertas o vírus voltará a circular, pois ele já demonstrou que é um inimigo sorrateiro, resistente e altamente contagioso. Nem todas as pessoas que contraem o COVID-19 desenvolvem sintomas graves. Os aparentemente saudáveis levarão o vírus consigo para qualquer lugar que viagem. Enquanto uma vacina não for desenvolvida, produzida e distribuída no mundo inteiro, a pandemia continuará a minar tanto a economia global quanto a ideia de fronteira.

Aqui mesmo no GGN eu disse que o COVID-19 pode ter abortado uma guerra mundial entre EUA e China https://jornalggn.com.br/artigos/eua-x-china-a-pandemia-abortou-uma-guerra/. A cooperação entre os dois países já está substituindo a rivalidade que existia entre eles. As hostilidades entre israelenses e palestinos também terão que ser superadas. Caso contrário a “terra prometida” de uns será não será mais do que um pacífico cemitério para todos.

Platão disse que os mortos veriam o fim da guerra. Se não houver uma maior cooperação entre todos os países e entre as classes sociais dentro de cada um deles, o fim da guerra está próximo. Os que não forem mortos pela doença estão fadados a sofrer com o desabastecimento das cidades. A fome também será a causa de conflitos sangrentos. Se não enterrar a ideologia da fronteira, o COVID-19 será o coveiro da nossa civilização. Os que sobreviverem poderão criar outra. Mas é impossível dizer se ela será melhor do que a nossa.

Durante o natal de 1914, ao longo de todo fronte, tropas francesas e alemãs declararam um armistício e confraternizaram na terra de ninguém. Os comandantes dos exércitos inimigos ficaram furiosos. Oficiais foram rebaixados, soldados foram punidos, unidades inteiras foram transferidas de um setor para outro do fronte.

Esse curioso episódio da I Guerra Mundial é o tema central de Joyeux Noël (2005). No filme dirigido por Christian Carion, durante a confraternização os inimigos descobrem que o mesmo gato tem um nome francês numa trincheira e outro alemão na outra. O animal cruzava a fronteira sem se importar com as rivalidades entre os exércitos.

A pandemia é como aquele gato que não respeita as fronteiras no filme Joyeux Noël. Mas o vírus não é inofensivo. O desejo de comemorar o natal em paz levou franceses e alemães a suspender a guerra. A fronteira que desapareceu temporariamente entre eles foi restabelecida pelos comandantes dos dois exércitos. A grande guerra tinha que continuar e de fato continuou ceifando milhões de vidas. Quantas vidas serão ceifadas pelo COVID-19 até que os governos consigam perceber que a cooperação é mais útil e benéfica do que a disputa?

Fábio de Oliveira Ribeiro

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