Disciplina industrial, por Julio Massi

Para atender a demanda da Apple, a Foxconn está expandindo para países com mão de obra mais barata, especialmente para a Índia.

Foto: dapd

Disciplina industrial

por Julio Massi

Made in China

Muitos de vocês estão lendo isso num iPhone que provavelmente foi produzido em Zhangzhou, por uma empresa chamada Foxconn. Metade dos iPhones do mundo ainda vem de lá, sendo este um dos grandes problemas da Apple atualmente.

A China já não tem mais o exército de trabalhadores mais barato do mundo. E com a política de lockdown, a Apple chegou a perder cerca de 1 bilhão de dólares por semana, devido à baixa capacidade de produção do iPhone 14.

Nesse período, a Foxconn viveu todo tipo de desastre: as pessoas trabalhassem infectadas – não havia janelas na fábrica – e a empresa incentivava todos a não se testarem. Os trabalhadores também forçados a fazerem lockdown na fábrica se revoltaram e muitos fugiram.

São cerca de 200 mil trabalhadores só na fábrica em Zhangzhou. Como a Apple usa o modelo *just-in-time,* a falta de estoque gera demandas sazonais. Esse fenômeno leva a contratações e demissões constantes, daí o nome de *gig manufacture*.

E qual é o trabalho? Apertar cerca de 600 parafusos e ligar 600 cabos por dia – 60 por hora, durante turnos de 10 horas.

Mesmo com registros de sobra de suicídios, *burnout* e assédio moral, o salário é alto para a região e o modelo funciona. Como ninguém aguenta muito tempo, os próprios contratos contém “desafios” do tipo “bônus de mil dólares se você resistir trabalhar por 60 dias”, além de bônus por horas extras.

Para atender a demanda da Apple por diversificar sua dependência de uma só fábrica, a Foxconn está expandindo para países com mão de obra mais barata, especialmente para a Índia.

Make in India?

Não é a primeira vez que a Foxconn tenta produzir iPhones na Índia. Ao longo da década passada, uma série de problemas paralisaram a produção: de intoxicação alimentar a múltiplas greves. A Foxconn decidiu então sair do país. Com as políticas de incentivo *Make in India* de Modi e a pressão da Apple, a empresa ensaia um rotorno.

Mas os números mostram que o país ainda não tem a disciplina industrial chinesa. Além dos problemas típicos de expansão, como máquinas e softwares importados virem em mandarim e não hindu, a cultura de trabalho é o maior.

Para combater a ineficiência indiana, a Foxconn tem enviado engenheiros de Zhangzhou na expectativa de replicar a eficiência chinesa em Sunguvarchatram, um corredor industrial entre Chennai e Bengaluru. O curto treinamento cultural recebido antes de embarcarem para Chennai, ensinava-os a dizer “por favor”, a não falar de política e evitar água e comida local se possível.

A primeira reclamação dos gerentes é que turno dos indianos é curto, e que fazem muitas pausas para tomar chá. Enquanto o padrão chinês é 10 horas por turno, indianos só trabalham 8 horas. O governo local cedeu ao lobby da Apple para permitir turnos de 12 horas, mas nenhuma empresa conseguiu até agora implementar a medida.

Outro ponto que impressiona os gerentes é a ineficácia das políticas de bônus para horas extra da Foxconn. Os chineses não entendem como os indianos se recusam a fazer hora extra independentemente do valor oferecido.

Apesar dos pesares, a fábrica indiana foi capaz de entregar o iPhone 15s no lançamento. Para a Apple, é vantajoso seguir com o modelo de comparar a eficiência produtiva de seus fornecedores, pressionando-os a cada lançamento.

Se pensarmos na recente tentativa do Ocidente em projetar a Índia como futuro rival Chinês, há muito chão pela frente para que os indianos se adequem ao modelo de *gig manufacturing* de eletrônicos e outros produtos. Talvez seja necessário piorar muito a vida da classe operária lá para que a obediência e a competição façam frente ao *boom* chinês.

E o Brasil?

A Foxconn nunca chegou a considerar o Brasil para produzir iPhones, e fico pensando se deveríamos apostar realmente nessa competição de miséria como propulsor do nosso desenvolvimento.

Se fôssemos por esse caminho, teríamos que acabar com finais de semana, turnos de 8 horas e outras garantias trabalhistas para termos uma chance. Ao mesmo tempo, a disciplina industrial que São Paulo um dia teve precisaria ser retomada num ritmo e contexto muito mais precarizado.

Não podemos comparar os trabalhadores das antigas fábricas do ABC com essa nova *gig manufacture*. A precarização da força industrial é a base do crescimento desses países continentais tidos como exemplos para o nosso.

Sabemos que a BYD chegou aqui para fazer carros elétricos na antiga fábrica da Ford na Bahia. Será interessante ouvir os gerentes chineses daqui comentando sobre a nossa capacidade produtiva. O fato é que se quisermos nos reindustrializar, teremos que aprender nos explorarmos como os chineses fazem.

Precisamos mais do que um plano para a indústria, precisamos ter um plano para esse proletariado.

Julio Massi – Advogado especializado em videogames, entretenimento e tecnologia

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Redação

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