Ciência, tecnologia, negócios, por Felipe Costa

Ciência e tecnologia são atividades igualmente criativas. E que se influenciam mutuamente. Mas que não haja dúvida: são atividades distintas

Ciência, tecnologia, negócios.

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

Em sua obra Ética a Nicômaco [1], o filósofo grego Aristóteles (384-322 aC) agrupou as virtudes intelectuais do ser humano em três categorias: ciência, arte e prudência.

A ciência (episteme) lidaria com o conhecimento demonstrativo de fenômenos universais e eternos [2]. A arte (techne) estaria a cuidar das coisas que nós usamos ou necessitamos no dia a dia. A prudência (phronesis) visaria estabelecer princípios e metas para uma vida humana boa, plena e justa.

1. SEPARANDO O JOIO DO TRIGO.

Há quem diga que as artes práticas constituem aquilo que nós estamos habituados a rotular de tecnologia. Mas há também quem argumente que o significado da expressão tecnologia moderna é mais restrito, abrangendo tão somente as artes práticas que estão assentadas em uma base de conhecimento científico [3].

1.1. O que é ciência, afinal?

Eis aí uma boa pergunta, a respeito da qual iremos matutar repetidas vezes ao longo deste livro [4]. Cabe desde já, no entanto, estabelecer um ponto de partida seguro, evitando assim armadilhas e mal-entendidos. Vejamos.

Nas palavras de Merton (1979, p. 38-9; grifo meu) [5]:

“A palavra ciência é um vocábulo enganosamente amplo, que designa grande diversidade de coisas diversas, embora relacionadas entre si. É usada geralmente para indicar: (1) um conjunto de métodos característicos por meio dos quais os conhecimentos são comprovados; (2) um acervo de conhecimentos acumulados, provenientes da aplicação desses métodos; (3) um conjunto de valores e costumes culturais que governam as atividades chamadas científicas; ou (4) qualquer combinação dos itens anteriores.”

1.2. Quem patrocina o parque de diversões?

Ciência e tecnologia são atividades igualmente criativas. E que se influenciam mutuamente. Mas que não haja dúvida: são atividades distintas e que não devem, portanto, ser tratadas como sinônimos. E mais: a força motriz a impulsionar o desenvolvimento tecnológico não é a ciência, mas sim a economia (digo: o mundo dos negócios), como veremos mais adiante [6]. E esta não é bem uma notícia auspiciosa.

Como escreveu Chalmers (1994, p. 161-2):

“É inquestionável que uma grande força por trás da direção do desenvolvimento da ciência ocidental é proveniente dos interesses militares e econômicos das agências governamentais e dos interesses aliados das corporações multinacionais. Muitos de nós [desejaríamos] que as coisas fossem diferentes e que a ciência se tivesse desenvolvido em direções mais de acordo com os interesses e as necessidades das pessoas comuns. De qualquer maneira, a ciência tem de ser avaliada e articulada segundo outros interesses e valores. As avaliações e as lutas políticas aí encerradas não são por si só receptivas às soluções científicas.”

Há quem descreva a arena científica como um lugar lúdico e prazeroso. Nesse caso, então, bem que nós poderíamos levantar o braço e questionar: tudo bem, mas quem patrocina esse parque de diversões?

1.3. A cristalização da ciência?

A tecnologia tampouco deve ser vista como a materialização, a cristalização ou a mera aplicação prática da ciência.

Nas palavras de Kneller (1980, p. 245-9):

“Onde a ciência persegue a verdade, a tecnologia prega a eficiência. Enquanto a ciência procura formular as leis a que a natureza obedece, a tecnologia utiliza essas formulações para criar implementos e aparelhos que façam a natureza obedecer ao homem. […]

“O principal objetivo da tecnologia é aumentar a eficiência da atividade humana em todas as esferas, incluindo a da produção. A tecnologia produz os mais variados objetos para satisfazer uma gama ainda mais ampla de necessidades, e aperfeiçoa determinados tipos de objetos para satisfazer mais completamente necessidades específicas. A tecnologia aperfeiçoa os objetos tornando-os, por exemplo, mais duradouros, ou mais confiáveis, ou mais sensíveis, ou mais rápidos em seu desempenho, ou uma combinação de tudo isso, dependendo da função do objeto. […]

“[A] tecnologia só começou a fazer uso significativo da ciência em fins do século XIX, quando a indústria química se apoiou em descobertas científicas, primeiro, para alterar substâncias naturais, como nas indústrias de corantes, fertilizantes e farmacêutica, e, depois, para sintetizar substâncias inteiramente novas mediante a reorganização das moléculas de substâncias existentes.”

De resto, ao contrário do que imaginam alguns, a tecnologia não é uma atividade recente (ver Cap. 1). Nem é uma atividade voltada para a produção de objetos modernos ou objetos de rápida obsolescência e descartáveis, como ocorre hoje com tantas quinquilharias eletrônicas. A tecnologia moderna permite que esses artefatos sejam fabricados, mas ela própria não se reduz aos bens e serviços produzidos.

No cômputo final, as diferenças talvez possam ser resumidas da seguinte maneira: a ciência descobre, a tecnologia inventa [7].

Como anotou Solla Price (1976, p. 113-5):

“Tal era a crença de [Thomas] Edison. Seu trabalho consistia em inventar, não em descobrir – e isto, de certa maneira, é típico da espécie de diferença em que pretendo que os leitores pensem. Edison se orgulhava do fato de poder alugar os serviços de químicos e matemáticos, se deles necessitasse. Matemáticos e físicos não poderiam, entretanto, alugar-lhe os serviços. Depois daquela época, a situação inverteu-se totalmente. Tornou-se parte da corrida por ‘status’ e de hierarquia o fato de os físicos e matemáticos se sentirem superiores aos químicos e estes aos engenheiros. Edison pode ser desprezado como simples inventor e não considerado como um cientista, a não ser pela descoberta casual do efeito Edison, que tornou possível a válvula – tecnologia, afinal. Que está errado em ser tecnologista? Por que falamos tão naturalmente de ciência ‘pura’, como se fosse suja a tecnologia? É um rebaixamento calculado, assim como falar de mundo ‘livre’ implica em considerar escravos aqueles a quem se fala. […]

“Ciência e tecnologia são, uma e outra, ocupações altamente criativas. Ambas premiam os capazes de combinar pensamentos de uma forma hábil, que não ocorre às outras pessoas. Edison e [Albert] Einstein estão de inteiro acordo no dizer que a motivação mais forte é, sem dúvida, a de ‘chegar primeiro, antes dos outros’. Contrariamente à crença generalizada de que os cientistas e inventores são estimulados por uma curiosidade natural ou pela esperança de realizar o bem, os levantamentos recentes mostram ser a competição aquilo que atua como incentivo maior.”

2. CODA.

Como escrevi em artigo anterior (ver aqui), a ‘corrida maluca’ não é exatamente um problema. O maior problema de viver na arena científica talvez seja o risco de uma ‘facada pelas costas’.

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NOTAS.

[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados neste Jornal GGN – ver os artigos Livros, lentes & afins; Por que a Terra é esférica?; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Subindo uma rampa em espiral; Quem quer ser um cientista?; Finda a lenha, eis o carvão: Como foi mesmo que entramos nessa enrascada?; Do que é feito o Universo?; A terceira via: Algumas notas sobre o método científico; As origens da política; Um mapa do Brasil. I. Roraima a inchar, Piauí a murchar?; Combatendo notícias falsas. I. Por que não existem fotos da Via Láctea vista de fora?; Um mapa do Brasil. II. Onde estão os brasileiros?; As cores da Terra. I. Biomas de água doce e arquitetura animal; As cores da Terra. II. Biomas marinhos e a produção primária global; Nervos, cérebros e comportamento. I. Ecologia sensorial e a mente humana; Nervos, cérebros e comportamento. II. Podemos aprender com os nossos erros; e O pote de ouro, a corrida maluca e a facada pelas costas: Bem-vindo à arena científica.

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[1] Livro 6 de Ética a Nicômaco. Versão da obra (em inglês) pode ser lida e capturada na íntegra (gratuitamente) no sítio Internet Archive.

[2] Embora a palavra ciência seja usada há séculos, o termo cientista é de origem recente. Consta que apareceu pela primeira vez em uma resenha publicada anonimamente no periódico britânico The Quarterly Review, em 1834 (ver Ross 1962). O reverendo e polímata inglês William Whewell (1794-1866), autor da resenha, fez a sugestão ao escrever sobre o trabalho e o livro mais recente, On the connexion of the physical sciences (1834), da britânica Mary Somerville (1780-1872). (Ainda que apenas de passagem, Somerville é retratada no filme Mr. Turner [2014], de Mike Leigh.) No comentário a seguir, Ronan (1987, v. 4, p. 7) estaria a se referir à adoção oficial do termo: “O século XIX deveria assistir a grandes desenvolvimentos em todos os ramos da ciência. O surgimento de sociedades científicas especializadas, que suplementavam as academias científicas estabelecidas, denotava o grau de especialização que um conhecimento crescente e técnicas mais elaboradas estavam tornando necessário. Além do mais, a ciência começou a apresentar um aspecto mais público, na medida em que suas consequências práticas se tornavam mais evidentes na vida diária. Provavelmente o fato mais notável foi o desenvolvimento da força do vapor, devido, como vimos, a James Watt, que pôs em prática os estudos de Joseph Black, em Glasgow, ao passo que a nova técnica da engenharia elétrica seria trazida à luz no fim do século XIX pelo trabalho pioneiro de Michael Faraday. E foi durante o século XIX – mais precisamente em 1840, em Glasgow – que se criou a palavra ‘cientista’, de modo bastante apropriado, pela Associação Britânica para o Progresso da Ciência, fundada nove anos antes para organizar um encontro anual em que os cientistas pudessem reunir-se para discutir de forma aberta e acessível o seu trabalho.”

[3] Para detalhes e discussões, ver Kneller (1980) e Ziman (1981).

[4] Para uma introdução, ver Alves (1981) e Chalmers (1993).

[5] Uma sobreposição de significados parecida ocorre com o termo evolução, conforme tratei em outro lugar. Cito (Costa 2019, p. 15): “A expressão evolução orgânica (ou e. biológica) pode ser utilizada em alusão a três coisas: (1) o fato da evolução; (2) as reconstituições da história das linhagens (filogenias); e (3) as mudanças que ocorrem no fundo gênico de populações.”

[6] Em grupos humanos ditos primitivos (contemporâneos ou já desaparecidos), a força motriz do conhecimento não seria a economia, mas sim a ecologia – ver, e.g., Leakey & Lewin (1980) e Lewin (1999).

[7] Se alguma civilização alienígena, algum dia, fizer contato conosco, prevejo que o conhecimento científico deles não se revelará diferente do nosso, ainda que possa ser mais avançado. Toda a diferença entre nós e eles residirá na tecnologia.

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REFERÊNCIAS CITADAS.

++ Alves, R. 1981. Filosofia da ciência. SP, Brasiliense.

++ Chalmers, AF. 1993 [1982]. O que é ciência, afinal? SP, Brasiliense.

++ —. 1994[1990]. A fabricação da ciência. SP, Editora Unesp.

++ Costa, FAPL. 2019. O que é darwinismo. Viçosa, Edição do Autor.

++ Kneller, GF. 1980 [1978]. A ciência como atividade humana. RJ, Zahar & Edusp.

++ Leakey, RE & Lewin, R. 1980 [1977]. Origens. SP, Melhoramentos & Editora UnB.

++ Lewin, R. 1999 [1998]. Evolução humana. SP, Atheneu.

++ Merton, RK. 1977 [1973]. La sociologia de la ciencia, 2 v. Madri, Alianza.

++ Ronan, CA. 1987 [1983]. História ilustrada da ciência, 4 v. RJ. J Zahar.

++ Ross, S. 1962. Scientist: The story of a word. Annals of Science 18: 65-85.

++ Solla Price, D. 1976 [1974]. A ciência desde a Babilônia. BH, Itatiaia & Edusp.

++ Ziman, J. 1981 [1977]. A força do conhecimento. BH, Itatiaia & Edusp.

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Redação

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