Nervos, cérebros e comportamento. II. Podemos aprender com os nossos erros, por Felipe Costa

Penso no que ocorre hoje com o senso comum, entendido aqui como um conjunto mais ou menos amorfo e pouco articulado de crenças e tradições variadas.

Nervos, cérebros e comportamento. II. Podemos aprender com os nossos erros.

Por Felipe A P L Costa [*].

1. PRAGMANTISMO ANCESTRAL.

Durante milhares de anos o comportamento individual e a cultura humana foram regidos pela ditadura sensorial (leia-se: a crença de que as informações sensoriais nos dão um retrato fiel do mundo). A rigor, até poucos séculos atrás, não havia por que desconfiar dos órgãos dos sentidos (ver o artigo anterior, aqui).

A ditadura sensorial foi a tônica ao longo de quase toda a história humana. Mais notadamente ao longo da pré-história. Considere, por exemplo, a rotina diária de um grupo de caçadores-coletores bem-sucedido. Imagine 50 indivíduos (9 crianças, 15 jovens, 22 adultos e 4 velhos) a vagar pelo norte da Tanzânia, no sudeste da África. À noite, reunidos em torno de uma fogueira, os adultos e os velhos conversam e discutem sobre uma pauta repleta de urgências. Incluindo os prós e contra do dia que se encerra e as providências para o dia seguinte – e.g., como repetir amanhã o sucesso que tivemos na caçada de anteontem (“a comida está acabando e as crianças já estão com fome de novo”) ou como evitar os desperdícios e os perigos que enfrentamos hoje (“como foi que deixamos aquela presa ferida escapar?” ou “vocês se lembram daquele terreno íngreme, ao lado da curva do rio, que cedeu e quase engoliu dois de nós, na lua passada?”).

Pois assim foi durante milhares de gerações. O que significa dizer que durante centenas de milhares de anos a vida de nossos ancestrais foi ditada pelo pragmatismo. Não havia muito espaço para o pensamento especulativo, muito menos para qualquer tipo de ensaio experimental. A curiosidade sobre as coisas do mundo era uma curiosidade interesseira – e.g., posso comer isso?, posso comer aquilo?, o que devo fazer para estancar o sangue da minha ferida na perna?, o que devo fazer para espantar as moscas da minha perna?

Respostas a estas e a tantas outras perguntas semelhantes foram sendo lapidadas ao longo de gerações, seja por tentativa e erro, seja por imitação de outros grupos humanos ou de outros animais.

1.1. Inércia cultural.

Ora, se o único guia a conduzir e a sedimentar o comportamento, as crenças e as tradições de nossos ancestrais eram as impressões sensoriais, é bastante razoável presumir que a cosmovisão deles, além de pragmática, fosse também bastante tendenciosa e parcial. E mais: se não havia espaço para especulações (e menos ainda para a experimentação), falhas e lacunas devem ter se acumulado. E mais ainda: em tais circunstâncias, hábitos e tradições – próprios de cada contexto ecológico – devem ter permanecido inalterados durante muitas gerações, visto que os novos desafios e os ajustes necessários para enfrentá-los eram esporádicos [1].

2. PRAGMATISMO, INGENUIDADE, SECTARISMO.

Com alguns reparos, mas sem muito esforço, a brevíssima caricatura de dinâmica cultural descrita acima pode ser estendida para os dias atuais. Estou a pensar, sobretudo, no que ocorre hoje com o senso comum, entendido aqui como um conjunto mais ou menos amorfo e pouco articulado de crenças e tradições variadas.

Desprovido de mecanismos de autodepuração, o senso comum não chega a se organizar como um sistema explicativo integrado e coerente. É uma entidade algo anárquica, um modo de conhecer o mundo essencialmente pragmático, incapaz de propor explicações abrangentes, articuladas e consistentes a respeito das coisas.

O senso comum é um guia ingênuo. E um guia que muitas vezes nos empurra para as armadilhas do empirismo sensorial. Para o senso comum, a distinção entre falso e verdadeiro depende mais das circunstâncias de momento do que do peso das evidências. O tripé verdade, argumento e fato, tão caro à tradição do conhecimento científico, não é levado em conta.

Em outras palavras, o entrechoque de argumentos e o confronto deles com as evidências factuais disponíveis – hábitos que estão na base da moderna tradição científica – pouco ou nada significam para o senso comum. Quando entramos ali, muitas vezes entramos no reino do sectarismo.

2.1. Racionalidade ou gritaria?

Para o senso comum, escolher entre duas ou mais alternativas mutuamente excludentes é mais uma questão de gritaria e sectarismo (“é porque é”) do que de raciocínio lógico e racional. Resulta daí uma narrativa volúvel e inconsistente. É uma pena dizer isso, mas há quem não conheça outro tipo de discussão, mesmo no interior do meio acadêmico.

Não são poucos os professores universitários ou os cientistas que, quando indagados sobre questões que fogem de sua área de atuação prontamente recorrem ao senso comum [2]. O resultado costuma ser desastroso. (Assim como pode ser desastroso afundar a cabeça em uma poça de água sem conhecer a profundidade.)

3. CULTIVAR O SENSO CRÍTICO.

Em resumo, somos criaturas imperfeitas e limitadas. Por mais que sejamos atenciosos e cuidadosos, continuaremos a errar, continuaremos a cair em armadilhas. É compreensível e é o esperado.

No fundo, no fundo, todos nós somos garçons a caminhar no escuro sobre um terreno irregular; transportamos em uma das mãos uma bandeja carregada; nessas circunstâncias, tropeçar é quase inevitável e, quando ocorrer, a bandeja muito provavelmente irá cair; ao cair, algumas coisas irão se quebrar. Diante disso, devemos fazer o que todo bom garçom faz: levantar, nos recompor, aprender com o tropeço (leia-se: mapear o terreno) e seguir adiante.

Como anotou Popper (1982, p. 17):

“Nosso conhecimento – em particular o conhecimento científico – progride por meio de antecipações justificadas (ou não), ‘palpites’, tentativas de soluções, por meio de conjecturas, enfim. Conjecturas que são controladas pelo espírito crítico; isto é, por refutações, que incluem testes rigorosamente críticos. Elas podem vencer esses testes, mas nunca são justificadas de modo positivo: não se pode demonstrar que sejam verdades seguras, ou mesmo ‘prováveis’ (no sentido do cálculo probabilístico). O exame crítico das nossas conjecturas tem importância decisiva: põe em evidência nossos erros e nos leva a compreender as dificuldades do problema que pretendemos solucionar. É assim que nos familiarizamos com os problemas e podemos propor soluções mais maduras: por si mesma, a refutação de uma teoria – isto é, de qualquer tentativa séria de solucionar nossos problemas – constitui sempre um passo que nos aproxima da verdade. Desta forma, aprendemos com os erros.”

A lição aqui é relativamente simples: podemos aprender com os nossos erros. (A única dúvida séria é: como fazer isso?)

3.1. – Senso crítico e humildade.

O nosso problema, a rigor, é duplo. De um lado, a insidiosa ditadura sensorial que vive a nos pregar peças. De outro, a crença – igualmente falaciosa – de que, para entendermos o mundo, basta tão somente alimentar o cérebro com informações (experiências sensoriais, leituras etc.). Não basta. Cabe educá-lo – i.e., alimentar o cérebro, sim, mas, sobretudo, exercitá-lo. E alimentá-lo com uma dieta saudável e variada, sem deixar de fora aquele que talvez seja o ingrediente mais relevante de todos: o chamado senso crítico.

Mas não devemos nos iludir: desenvolver o senso crítico não nos tornará imunes ao erro. Razão pela qual deveríamos cultivar uma qualidade extra ainda mais rara e valiosa: a humildade. (Não estou a me referir aqui à falsa e cínica humildade daqueles intelectuais que costumam apunhalar seus adversários pelas costas. Estou a me referir ao fato de que devemos reconhecer – para nós mesmos, em primeiro lugar – que somos falíveis e que erramos. Diariamente.)

3.2. – A sala de aula como um lugar privilegiado.

Fato é que muitos de nós continuamos presos à premissa de que as informações sensoriais nos dão um retrato fiel do mundo, razão pela qual os nossos órgãos dos sentidos continuariam a ser dignos de toda a nossa confiança. (“Só não enxerga quem não quer”, é um dito muito popular entre os brasileiros.)

Não são poucos os observadores – incluindo gente que hoje em dia ganha dinheiro vendendo dicas e truques em redes sociais – que se vangloriam do fato de que a humanidade já se livrou ou estaria a se livrar dos grilhões impostos pelo mundo natural. É uma ironia, pois esses mesmos observadores ignoram o fato de que todos nós – eles, inclusive – deveríamos nos manter vigilantes contra a insidiosa ditadura sensorial.

A lição aqui é simples: Devemos desenvolver desde cedo (se possível, nas séries iniciais do ensino fundamental) algum nível de senso crítico diante das coisas do mundo. Trata-se, a rigor, de um princípio pedagógico que deveria ser amplamente adotado e praticado, caso a escola fosse de fato uma instituição voltada para a promoção do bem comum e do bem-estar individual. Fosse essa a nossa realidade, eu não tenho dúvida em afirmar que o senso crítico estaria a ser praticado onde e como bem deveria ser: em sala de aula, como um exercício cognitivo diário.

4. APENAS ALGUMAS IDEIAS SÃO TESTÁVEIS.

Por fim, antes de concluir, resta apenas esclarecer algumas noções importantes que ficaram subentendidas, pois até aqui só foram mencionadas de passagem (e.g., a distinção entre ideias científicas e não científicas). Vejamos.

Na opinião de filósofos e historiadores da ciência, qualquer tipo de conhecimento que reivindique para si o rótulo de ciência deve ser capaz de gerar proposições consistentes e preditivas a respeito das coisas do mundo. A pertinência de uma proposição científica deve estar sujeita à avaliação, notadamente por meio de experimentos – i.e., testes empíricos por meio dos quais podemos avaliar a aderência entre as conjecturas e aquilo que o mundo nos diz.

Estamos a conjecturar o tempo todo. Pois conjecturar talvez seja uma das mais importantes funções cognitivas do cérebro. Em meio a tantos burburinhos mentais, porém, a maioria das conjecturas logo se dissipa e é perdida, quase sempre de modo irrecuperável; outras se revelam fantasiosas ou falaciosas, sem qualquer aderência ou proximidade com a realidade.

Para os propósitos deste livro, o rótulo científico é aplicado àquelas ideias cujos termos e desdobramentos podem ser verificados por meio de testes empíricos. A rigor, de tudo o que somos capazes de imaginar, apenas um pequeno subconjunto é formado de ideias verdadeiramente científicas (ver a figura que acompanha este artigo). Afinal, apenas algumas ideias são testáveis [3]. Entre as que o são, algumas podem ser postas à prova empiricamente, outras apenas teoricamente.

Entre as ideias testáveis que podem ser verificadas empiricamente, algumas o são de modo direto, outras apenas de modo indireto. Veja um exemplo: achar a distância que separa as margens de um caderno é algo que pode ser calculado de modo direto – podemos usar uma régua comum para isso. Já a distância entre duas cidades é algo que nós estimamos de modo indireto (e.g., recorrendo a um mapa), embora alguém possa ter feito medições diretas no passado. Em certos campos do conhecimento (e.g., astronomia), no entanto, o valor da maioria ou mesmo de todas as variáveis de interesse é estimado de modo indireto – e.g., a distância Terra-Sol ou o diâmetro da Lua (ver cap. 4).

No fim das contas, portanto, o princípio mais prudente e mais saudável de todos seria aquele que nos diz o seguinte: a maioria das ideias que nós temos (seja a respeito do mundo das coisas, seja a respeito do mundo das ideias) deve ser falsa ou não é testável. (Neste último caso, não custa lembrar: Muitas ideias que não podem ser testadas – sejam elas falsas ou verdadeiras – costumam dar margem a bate-bocas estéreis e intermináveis.)

5. CODA.

Os comentários apresentados aqui, por mais que eu tenha procurado assentá-los em bases lógicas e testáveis, representam apenas um ponto de vista. Um amálgama de hipóteses parciais e provisórias.

Ainda que eu tenha procurado me guiar por fatos e palpites mais maduros (e, por isso, já testados previamente), eu posso ter errado na escolha do tecido e na costura dos retalhos. A peça de roupa – o resultado final – pode ter ficado curta ou apertada de mais. Todavia, o pior dos erros, eu me atrevo a dizer, penso ter conseguido evitar: o meu ponto de vista não está assentado em ideias que não são testáveis. Se for o caso, portanto, observadores mais atentos ou mais exigentes poderão (sem gritaria) apontar e corrigir os erros mais graves aqui cometidos.

*

NOTAS.

[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados neste Jornal GGN – ver os artigos Livros, lentes & afins; Por que a Terra é esférica?; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Subindo uma rampa em espiral; Quem quer ser um cientista?; Finda a lenha, eis o carvão: Como foi mesmo que entramos nessa enrascada?; Do que é feito o Universo?; A terceira via: Algumas notas sobre o método científico; As origens da política; Um mapa do Brasil. I. Roraima a inchar, Piauí a murchar?; Combatendo notícias falsas. I. Por que não existem fotos da Via Láctea vista de fora?; Um mapa do Brasil. II. Onde estão os brasileiros?; As cores da Terra. I. Biomas de água doce e arquitetura animal; As cores da Terra. II. Biomas marinhos e a produção primária global; e Nervos, cérebros e comportamento. I. Ecologia sensorial e a mente humana.

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[1] A depender do contexto ecológico, a cosmovisão pode se revelar contraproducente, tendo então de ser ajustada ou substituída. Sobre as implicações culturais da ecologia (em port.), ver, e.g., Foley (1993) e Alcock (2011).

[2] Amálgama envolvendo pragmatismo e empirismo, o senso comum ilustra o que é encarar as coisas do mundo de um modo não científico (ou pré-científico). Sobre o senso comum como ponto de partida do conhecimento científico, ver Popper (1975).

[3] Para detalhes e discussões, ver Bunge (1987).

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REFERÊNCIAS CITADAS.

+ Alcock, J. 2011 [2000]. Comportamento animal, 9ª ed. P Alegre, Artmed.

+ Bunge, M. 1987 [1980]. Epistemologia, 2ª ed. SP, TA Queiroz.

+ Foley, R. 1993 [1987]. Apenas mais uma espécie única. SP, Edusp.

+ Popper, KR. 1975 [1973]. Conhecimento objetivo. BH, Itatiaia & Edusp.

+ —. 1982 [1972]. Conjecturas e refutações. Brasília, Editora UnB.

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O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. A publicação do artigo dependerá de aprovação da redação GGN.

Redação

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