O filme “Medida Provisória”: um libelo contra o racismo, por Roberto Bitencourt da Silva

Denunciando o insidioso racismo à brasileira, “Medida Provisória” apresenta personagens representativos do poder de Estado

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O filme “Medida Provisória”: um libelo contra o racismo

Por Roberto Bitencourt da Silva

Recém-lançado nos cinemas, o filme “Medida Provisória” é um verdadeiro libelo contra o racismo. Dirigido por Lázaro Ramos e protagonizado por Taís Araújo, Alfred Enoch, Seu Jorge e Adriana Esteves, a película representa uma terrível distopia em torno do tratamento concedido pela sociedade brasileira aos pretos e mulatos.

A partir de um certo olhar sobre o nosso passado e de angústias suscitadas pelo presente nacional, o roteiro tem a capacidade de aguçar a imaginação e inflar a indignação do espectador, isso com o destaque conferido a possibilidades de tenebrosos e inovadores métodos racistas excludentes em um insondável futuro do país.

A ideia central do filme é instigante. Denunciando o insidioso racismo à brasileira, “Medida Provisória” apresenta personagens representativos do poder de Estado, sob controle das classes dominantes tradicionalmente brancas, que propõem uma pretensa medida de “reparação histórica” à maioria da população, formada por não-brancos, qual seja: a “devolução” dos pretos e mulatos aos países da África. Na “novilíngua” do poder eurobrasileiro (royalties para George Orwell), a expulsão converte-se em política social.

O argumento principal do filme toca o dedo na ferida da questão racial brasileira, pois chama a atenção para o velho e infame ideal de embranquecimento da nossa sociedade. A proposta especulada na narrativa cinematográfica corresponde a uma eventual via de retomada do objetivo de amplas frações das classes dominantes em “arianizar” o país. A respeito, vale chamar a atenção para determinadas perspectivas e pensadores.

Na segunda metade do século XIX, Arthur de Gobineau foi um dos pioneiros na defesa da teoria pseudocientífica da superioridade inata da raça branca. Durante um tempo representante da diplomacia francesa no Brasil, ele foi amigo do imperador Pedro II e propugnou a este a adoção de iniciativas oficiais para estimular a imigração de alemães para o Brasil, por considerar a miscigenação foco para a degenerescência e a debilidade racial do brasileiro.

Em meados das décadas de 1920 e 1930, o sociólogo Francisco José de Oliveira Viana, apoiado em crenças racistas, entendia que na prevalência de um povo miscigenado, com forte acento da contribuição dos grupos negros e indígenas, supostamente “inferiores” intelectual e moralmente, residia uma das principais fontes do “atraso” brasileiro. Com efeito, Viana esposava a implementação de medidas de Estado que favorecessem a imigração de segmentos étnicos europeus mais tendentes às relações sexuais e familiares inter-raciais, almejando clarear a população do Brasil.

No passado, a mobilização efetiva do recurso à eugenia enquanto meio de modificar a composição étnica do nosso povo. Hoje, em uma produção cultural, na distopia futurista de “Medida Provisória”, a expulsão dos negros e dos mulatos do país. Ambas chaves que permitem mapear aspectos grotescos e reacionários das classes dominantes internas, eivadas de antibrasilianismo.

Não custa lembrar, acompanhando o historiador Manoel Bomfim (um grande intérprete da formação social brasileira nas primeiras décadas do século 20), que o que peculiariza o nosso país é precisamente a miscigenação – um povo com características próprias, cultural e racialmente misturado – e a mescla de tradições, de entroncamentos civilizatórios, fazeres e olhares sobre o mundo. Entre outros frutos, foi essa mescla que deu ao Brasil os seus vastos contornos territoriais, por tanto tempo na era colonial sob as ameaças francesa, holandesa e inglesa. Nos legou igualmente a singular identidade e cultura nacional ricamente diversificada. 

Dotado de muitas virtudes e da capacidade engenhosa de estimular novas formas de ver as mazelas e os riscos nacionais, o filme “Medida Provisória” expressa muito da consciência predominante entre as frações progressistas da sociedade brasileira.

De um lado, embebida no liberalismo made in USA – afirmando a dignidade e o mérito individual das pessoas –, de outro, explorando elementos humanitaristas da igualdade jurídica entre os cidadãos, a denúncia que atravessa a película tende a ficar circunscrita a um problema brasileiro, há muito assinalado pelo sociólogo Octávio Ianni: o problema da conversão dos pretos, mulatos e caboclos (também de muitos brancos) em povo, em comunidade de cidadãos portadores de direitos e de participação política ativa. Na ótica que atravessa a distopia do filme, essa operação tem como desfecho a exclusão física da maioria dos brasileiros do território e, por óbvio, do mundo dos direitos.

Uma grande questão que o filme permite descortinar, ainda que pouco explorada, incentivando a percepção sobre chagas nacionais que cada vez mais obtém contornos piorados, é que já há possibilidade de ver que os grupos étnico-raciais oprimidos no Brasil, como os pretos e mulatos, enfrentam outra ordem de desafios identificada por Ianni, a saber: a metamorfose desses grupos ao status de trabalhadores, de objeto da exploração capitalista.

Com a enorme e crescente extensão da chamada indústria 4.0, das empresas técnico-financeiro-informatizadas, “uberizadas” (no dizer de Ricardo Antunes), bem como em função da centralidade alcançada pelo setor primário-exportador na economia nacional, também fica por resolver e dá ensejo ao não equacionamento da inclusão da maioria dos brasileiros, sobretudo dos não-brancos, ao mundo do emprego e do trabalho.

Hoje com somente 40% dos trabalhadores sob o guarda-chuva das garantias jurídicas trabalhistas, a maioria da classe trabalhadora brasileira encontra-se mergulhada nas sombras do desemprego, do desalento e do subemprego crônico. Nesse sentido, o capitalismo dependente e periférico brasileiro tem crescentemente aumentado a “população excedentária” (nos termos dados por Darcy Ribeiro); submetida a diversas formas de violência institucionalizada e paraestatal e, mesmo, ao genocídio.

Uma desgraça nacional que somente se aprofunda. As desigualdades e opressões raciais são, simplesmente, insolúveis nos marcos do capitalismo, notadamente periférico, subalterno, com economia marginal e meramente complementar na divisão internacional do trabalho, como é o capitalismo selvagem brasileiro.

Dando margens à reflexão em torno de diferentes aspectos que tipificam as misérias remotas e contemporâneas do Brasil, o filme de Lázaro Ramos é bastante interessante e vale muito a pena assistir, por estender a nossa capacidade subjetiva de enxergar desafios e dilemas pátrios, por servir como mote para o debate acerca da relação entre a questão racial e a questão nacional. Infeliz, mas necessariamente, também nos instiga a dizer e pensar o impensável, o horror que se insinua nos dias que correm.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

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