Os liberais que defendem a comercialização de órgãos, por Luís Nassif

Mal comparando, todos os princípios do liberalismo levam a isso: políticas de exclusão social e o placebo do empreendedorismo.

Candidato da extrema-direita argentina, Javier Milei representa um tipo de terraplanismo econômico irracional, como o brasileiro: os anarcocapitalistas, cuja expressão mais barulhenta, no Brasil, é o Instituto Mises e o inacreditável Hélio Beltrão Filho. Uma de suas bandeiras é o da liberação para venda de órgãos para transplante.

O artigo mais polêmico sobre o tema foi de Joel Pinheiro da Fonseca, em 2015, no site do Mises. O artigo já foi retirado do ar, Joel voltou atrás em sua posição – e, ultimamente, tem dado mostras de bom senso.

Dizia ele em 2015:

A ideia básica de um mercado de órgãos (não-vitais) é que, podendo vender, a oferta de órgãos seria muito maior, e isso reduziria drasticamente a fila dos transplantes, evitando muitas mortes. Além disso, a pessoa que vendeu o órgão sai com um bom dinheiro em mãos.

“É um absurdo alguém vender um órgão? Ora, mas a gente aceita que a pessoa doe um órgão. Ou seja, que venda a preço ZERO. Se ela pode dar de graça, e não vemos problema nisso, pq é um problema permitir que, ao invés de sair de mãos vazias, ela ganhe com essa ação?

Como a ideia é tabu, temos poucas experiências a respeito. Mas há um país que permitiu a venda de órgãos: o Irã. A fila de espera para rins é muito menor que nos EUA. Como tudo, tbm há abusos, mas o sistema tem defensores na classe médica.

Alguns ficam indignados pela pessoa que vende o órgão. Provavelmente é alguém que passa alguma necessidade. Mas veja: a proibição de vender o órgão não melhora em nada a vida da pessoa. Pelo contrário, apenas tira dela uma possibilidade de renda. O q há de caridoso nisso? 

Se uma pessoa vê a venda de um órgão seu como o melhor caminho para obter um dinheiro necessário agora, quem é você para proibi-la e deixá-la sem o dinheiro? Sua “boa intenção” apenas aprofunda a pobreza da pessoa sem lhe dar nenhuma ajuda. Esse é UM lado do problema”.

Esqueça todos os desdobramentos dessa maluquice, o estímulo às quadrilhas de sequestro para venda de órgãos, as informações que circulam sobre falsas adoções internacionais com o mesmo propósito. Concentre-se apenas na questão central, a pedra da Roseta nos ultraliberais, que jamais conseguirá ser decifrada e, por consequência, jamais os tornarão alternativas políticas, apesar dessa teia de Penélope da construção das terceira via.

O modelo SUS consiste em uma fila de transplantes, na qual entram pessoas de todas as classes sociais. Doações, mortes e outros eventos vão garantindo a oferta de órgãos, sempre de modo mais lento do que a demanda, mas mantendo a igualdade de oportunidades.

Há problemas sim, com o descompasso entre oferta e demanda..

No ano passado, dr. Ricardo Pasquini, da Santa Casa de Curitiba, foi homenageado com um prêmio internacional devido ao seu pioneirismo na área de transplantes. Foi cirurgião de mais de 4 mil transplantes pelo SUS. Certamente seria execrado pelo Mises, por não aproveitar suas vantagens competitivas para enriquecer. Esses trogloditas sociais não conseguem entender o papel de mobilização de sentimentos como solidariedade, generosidade, exemplo.

No anos 90, Pasquini foi alvo de uma denúncia execrável do programa Fantástico, da Globo, por supostos pagamentos por fora. Para casos mais graves havia a necessidade de consulta a bancos de dados internacionais e o SUS não previa a cobertura dessas despesas.

Esse pagamento motivou uma reportagem escandalosa do “Fantástico”, alimentada pelo Ministério da Saúde, de José Serra, interessado nos holofotes da mídia. Tratei do caso no livro “O jornalismo dos anos 90”.

Ou seja, em vez de campanhas para ampliação das doações ou para convencer bilionários a destinar doações para consultas a bancos de dados, decidiu-se pela criminalização da cobrança, transformando um herói nacional em vilão.

Essa é a diferença fundamental entre o pensamento liberal e o pensamento social. O modelo social do SUS prevê uma lista de doações, às quais se habilitam pessoas de todas as classes sociais. O modelo Mises-Milei pensa exclusivamente na exclusão social. Os únicos beneficiários seriam os ricos, em condição pagar pelo transplante, em um caso clássico de eugenia social.

Mal comparando, todos os princípios do liberalismo levam a isso: políticas de exclusão social e o placebo do empreendedorismo.

Que Deus livre e guarde a Argentina dessa tragédia.

Luis Nassif

10 Comentários

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  1. Existe algo mais tenebroso, obscuro e trágico em relação à eleição desse argentino cruel, desumano e maluco. Ele vai destruir o MERCOSUL e reestabelecer o ciclo de hostilidades diplomáticas e desconfianças militares entre a Argentina e o Brasil com um evidente crescimento do potencial político da xenofobia nacionalista nos dois países.

  2. Como não existiu Lava-Jato na Argentina, eu estava pensando onde a esquerda jogaria a culpa pela chegada da extrema-direita ao poder no país vizinho. Porque como dizia o velho Paulo Francis, a esquerda latino-americana jamais admite seus erros, a culpa pelos desastres que provoca em suas passagens pelo poder é sempre dos outros, nunca deles mesmos. Mas no Brasil 247 já saiu um artigo explicando tudo: a culpa pelos 32% de votos desse roqueiro doidivanas é do FMI. Como eu não pensei nisso antes? Foi essa organização fascista, demoníaca, que se atreve a querer receber de volta os 50 bilhões de dólares que emprestou, para salvar a Argentina da falência em 2018. Porém, a esquerda do nosso continente tão musical nunca conta a história toda, jamais lembra que o FMI não enfia dinheiro na goela de ninguém, governos falidos é que vão lá implorar dinheiro para não desabarem.

    1. Renato, menos. A crise da Argentina decorre de um processo de superendividamento, que foi financiado pelo FMI, um superempréstimo que garantiu apenas o restante do governo de Macri. Guarde sua ironia para ambientes mais simplórios: o Twitter, por exemplo.
      https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-44408231
      O que diz a matéria: Según la periodista de BBC Mundo en Buenos Aires, Verónica Smink, el anuncio del acuerdo sorprendió porque la cifra acordada fue mucho más alta de lo esperado.
      “Los rumores económicos hablaban de un préstamo de US$30.000 millones, por lo que la cifra es leída como un fuerte respaldo del mercado a la gestión de Macri”, señaló.
      “No obstante, los críticos del presidente ven esto como una nueva señal de preocupación de que el país podría volver a endeudarse más allá de sus capacidades”, agregó la periodista.

  3. Só esqueci de dizer que foi o direitista Mauricio Macri quem pediu 50 bilhões de dólares ao FMI, é verdade, mas ele herdou um país falido em 2015, herança de doze anos de governo do casal Kirchner.

  4. Nassif, se armas, drogas, medicamentos, anabolizantes, produtos eletrônicos, perfumes, bebidas, jóias, ouro puro, diamantes, carros estrangeiros, etc e etc.
    Todos esses produtos são traficados e/ou contrabandeados de forma escancarada e com um crescimento descomunal,desde o descobrimento do Brasil.
    Quanto mais dizem que estão combatendo, mais autoridades são vinculadas ao corpo mole, a algum tipo de envolvimento ou a participação efetiva nas operações criminosas.
    Tudo por dinheiro, poder e/ou status.
    Quem em sã consciência confiaria que um programa de vital importância, que exigiria além de uma indispensável confiabilidade ao extremo uma fiscalização constante, transparente e também ultra confiável?
    Se próximo a muitas delegacias existem tráfico, contrabando, desmontes, adulterações e o escambau, quem terá poder, moral, certeza e segurança para assinar em branco,de que com o programa de venda de órgãos nada disso acontecerá?
    Quem irá garantir?
    Quem terá a certeza?
    Quem assinaria em branco?
    Seria um dos maiores escárnio com a vida, com a criação, com o bom senso, com a humanidade, com Deus e com a inteligência humana.
    Isso só pode ser uma grande e inapropriada PIADA ou o maior dos deboches que tomo conhecimento,com a racionalidade humana.

  5. Prezado Nassif, fora a questão menor de defesa de dolarização – que já fracassou no país vizinho, a época do De la Rua, essa proposta sinistra sinaliza uma rota: assim como a gangue das joias, lança os balões de ensaio para banalizar o tema, transformado em mercadoria. Nesse mundo em transição, podemos identificar tendência para substituição de um estado hegemônico por outro, que possibilitaria a reprodução do capital. O que o atual hegemônico faz, além de atrasar a transição, seria oferecer uma alternativa para o sistema. Se no passado o nazismo serviu para combater o comunismo, hoje, o neonazismo serve como alternativa mercantilista para rentabilidade do sistema. Dias piores virão…

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