Sobre o gado mercadista e o bolsonarista, por Luís Nassif

Hoje em dia, um país complexo, uma economia torta como a brasileira, só é vista pelos óculos do mercado financeiro.

O recente ataque difamador contra o economista Márcio Pochmann, indicado para a presidência do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) trouxe à tona as inevitáveis comparações entre o padrão da mídia pós-mensalão e a era bolsonarista.

O padrão de atuação é idêntico:

  1. Desumanização do adversário como recurso da guerra ideológica.

É a tática que substitui qualquer crítica moderada por ataques visando a destruição da reputação do adversário – tratado como inimigo.

No bolsonarismo, utilizavam-se, em geral, considerações de ordem moral e anticomunismo de guerra fria para desqualificar qualquer argumento do adversário-inimigo. 

No padrão ressuscitado agora, cria-se a suposição de que Márcio Pochmann poderia manipular os índices do IBGE. Nada na biografia de Pochmann poderia levar a essa suspeita. E se trataria do chamado crime impossível, porque os sistemas de controle do IBGE, e as diversas alternativas de levantamento de preços do país, impediriam qualquer tentativa.

  1. Aliança mercado x ultradireita

A difamação contra Pochmann surgiu de Mirian Leitão. Imediatamente foi encampada pelo principal porta-voz da ultradireita na mídia, José Roberto Guzzo que, do alto de seu profundo conhecimento de estatísticas, garantiu que Pochmann não entende nada de números.

A aliança é a mesma que permitiu a ascensão de Paulo Guedes e a ilusão de que o governo Jair Bolsonaro seria razoável. É interessante esse repeteco, para a confirmação didática de como a criminalização da discussão econômica levou à parceria do ultraliberalismo com o bolsonarismo.

  1. Falsificação das relações de causa-e-efeito.

Do lado do bolsonarismo, as afirmações pretensamente científicas sobre as virtudes da cloroquina e os riscos da vacina.

Do lado da economia, uma infindável manipulação de causa-e-efeito, misturando notícias falsas e suposições absurdas, visando criar o clima de pânico já conhecido, com consequências funestas.

Por exemplo, a atribuição do desastre do governo Dilma ao desenvolvimentismo, como faz Miriam Leitão em O Globo.

Dilma cometeu diversos erros sim, represando preços de combustíveis, distribuindo incentivos a torto e a direito, paralisando a administração pública com um centralismo impraticável. São decisões de governo que nada têm a ver com linhas de pensamento econômico, assim como as jogadas de Paulo Guedes não podem ser atribuídas a modelos econômicos.

O que levou ao desastre de 2015 foi o pacote de Joaquim Levy, o uso abusivo da cartilha mais ortodoxa possível. Desde o ano anterior houve um desaquecimento da economia mundial, com consequências sobre o país. Em vez de preparar o país para a nova etapa, permitindo às empresas e pessoas físicas reduzir o endividamento feito no período de bonança, adotou-se o receituário do mercado: um enorme choque tarifário, cambial e fiscal, seguido de um trancamento total do crédito e elevação brutal da Selic. O mesmo receituário desastroso do plano Real, no início de 1995. E isso depois de Dilma ser sitiada com pautas bombas da Câmara de Eduardo Cunha e uma atoarda jornalística em cima da Lava Jato.

O pacote Joaquim Levy é filho de um bando de terraplanistas de mercado, completamente descolado da análise empírica da economia. E nem se atribua à ortodoxia, mas à análise plana do mercado sobre os problemas da economia.

  1. Fakenews econômicos procurando espalhar o pânico.

Em 2015, Miriam Leitão espalhou que a Petrobras estava quebrada. Naquele mesmo momento, a empresa levantava no mercado internacional US$ 18,5 bilhões em bônus perpétuo, com uma demanda várias vezes superior à oferta.

O período de 2008-2010 foi de pleno sucesso do país, enfrentando a crise internacional, quando, premido pelo Senhor Crise, Lula abriu mão do receituário de mercado – até então adotado – e valeu-se de gastos públicos e do uso dos bancos públicos para levantar a economia. Para desqualificar os resultados, há um enorme esforço intelectual para atribuir os problemas de 2016 a 2022 ao sucesso de 2008-2010.

  1. Gastos públicos e receita fiscal.

O período de maior superávit primário ocorreu no primeiro governo Lula, com média anual de 2,44%; e o de menor superávit com o primeiro governo FHC, de 0,27% do PIB. E nenhum dos dois governos produziu crescimento econômico.

Sabe-se que há uma relação direta entre aumento de gastos públicos e receitas fiscais. Justamente por isso, o bom senso indica que, em períodos de queda da economia, aumento dos gastos públicos; e de aquecimento da economia, políticas fiscais restritivas ou redução de gastos.

Por aqui, a questão dos gastos públicos é tratada com a mesma superstição dos anti-vacina. Impede-se qualquer discussão racional sobre o tema, através do uso de recursos intelectualmente desonestos – como os argumentos ad terrorem, de fim do mundo próximo se sequer se ousar discutir a solidez dos argumentos da ortodoxia.

Medo da informação

Em seu último artigo, em O Globo, Miriam substituiu os ataques difamatórios de suspeita de manipulação futura dos indicadores, por parte de Pochmann, por termos mais amenos – “Economia é como cristal, mesmo que seja uma ingerência sutil, pode levar à quebra de confiança” – comparando com a desastrada atuação do ex-Secretário de Tesouro Arno Agustin no governo Dilma.

No fundo, a maneira como se colocou em xeque a reputação de Pochmann se deve a uma forma pouco sutil de censura, de impedir que a opinião pública possa receber outras formas de informação e de ver a economia e o país.

Hoje em dia, um país complexo, uma economia torta como a brasileira, só é vista pelos óculos do mercado financeiro. Analisam-se exclusivamente indicadores fiscais planos, as notas das agências de rating, o resultado primário, jamais as externalidades positivas e negativas, os efeitos de médio e longo prazo de medidas econômicas. E as informações primárias do IBGE constituem um material riquíssimo para desdobramento em pesquisas.

Analisa-se uma política econômica pela prova do pudim: quais os resultados concretos no mundo real, em relação ao bem-estar dos cidadãos, às perspectivas de crescimento, de inclusão. O que se espera de Pochmann, no IBGE, é valer-se da competência reconhecida do Instituto para ajudar a entender o país, ajudado nesse trabalho pelos estudos do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), FGV (Fundação Getúlio Vargas), dos consultores da Câmara e do Senado. 

Ao colocar, antecipadamente, a suspeita de “ingerência sutil”, o que se quer é desqualificar antecipadamente resultados que venham a questionar verdades dogmáticas dos falsos profetas da mídia econômica.

Afinal, como lembrava Nietzsche, embora todos os conceitos sejam metáforas inventadas pelos humanos (criadas de comum acordo para facilitar a comunicação), os seres humanos esquecem esse fato depois de inventá-los e passam a acreditar que são “verdadeiros” e correspondem à realidade.

Luis Nassif

5 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Ante Scriptum: A expressão “gado mercadista” é ótima. Já valeu o dia.
    Quer dizer que esses jornalixtas trabalham com possibilidades, independentemente de probabilidades? É possível que o Papa venha a usar crack. A probabilidade desse uso vir a acontecer, entretanto, é mínima. Porque seus adversários e concorrentes não se valeram desse argumento para impedir seu empoderamento? Ora, porque não são “jornalixtas”. My godem, sos!

  2. Critica-se “inferências de suspeitas de possibilidades sem fundamento fático”, mas não se critica. por ex. a “ingerência sutil” do BC de Campos Neto. Não é possível que isto seja burrice ou ignorância, só pode ser má fé “competente, a serviço de interesses escusos e contrários à esmagadora maioria da pobre sociedade brasileira em favor do submedíocre mas bem sucedido poder que se concentra neste país cada vez mais avacalhado.
    Veja-se por ex. a agora “prioridade” dada pelo inacreditável estorquidor-mór presidente da Câmara à uma tal “reforma administrativa” que, ao contrário do que deve ser, pretende privatizar o serviço público (menor que nos EUA e Europa) para permitir as mais sórdidas put@ri@as de aparelhamento e gasto público, transformando a necessidade e o interesse público em uma mega-rachadinhona de interesses particulares, sem sequer mexer nos gastos dos barões políticos e judiciários. É ou não é um “país inteiro feito um grande puteiro”? (® Cazuza)…

  3. Mas o gado, até mesmo o gado, em sua forma humana, é capaz de argumentar. Estava eu outro dia tentando explicar a um desses espécimes bovinos razoavelmente civilizado o absurdo da impugnação de Márcio Porchmann por Miriam Leitão, por esta basear-se na suspeita (Previsão? Adivinhação? Presságio?) de que o citado economista PODERIA agir desta ou daquela maneira desabonadora e prejudicial ao país. Me disse o quadrúpede que, na verdade, a comentarista global estava agindo como aquele juiz que decide que um homem deve ser mantido à distância da ex-esposa de quem se separou, em virtude da possibilidade de que uma agressão, ou coisa pior, venha a ocorrer. Ora, mas essa medida protetiva é tomada quando há histórico de violência doméstica ou ameaça real e documentada. E o GGN dedicou um post a uma exaustiva demonstração do currículo e da idoneidade do economista, disse eu, salientando não haver qualquer indício ou probabilidade de que o mesmo venha a incorrer em alguma ilegalidade. Mas esses esquerdistas são mestres do disfarce, dizem uma coisa e fazem outra…Não adianta. A guerra contra a ignorância não pode ser vencida. E a grande obra da elite dominante nesse país é a manutenção da esmagadora maioria da população na ignorância. Vivemos sob uma opressão – a ignorância – que não só não ousa dizer o nome, mas que se disfarça de sedução – através da televisão e seu glamour, antes, e a transformação do antigo espectador em astro de seu próprio palco: o seu celular, ou iphone. Nesse palco a ignorância brilha, domina, seduz e arrasta multidões. Trabalho como terceirizado em uma escola com 497 alunos matriculados, dos quais talvez 1/3 frequente regularmente as aulas. Provavelmente menos. Mas todos, com certeza, passam horas e horas de seu dia – inclusive nas salas de aula – vendo os tiktoks e kwais da vida. A ignorância era uma tragédia, pensava eu; hoje, nas entranhas do sistema público de educação, percebo que é uma tragédia misturada com uma desgraça: um futuro de analfabetos funcionais, mas totalmente inseridos no universo virtual. Que, como se sabe, não impulsiona ninguém para a frente. Nem para trás. Ficam no mesmo lugar. Só consumindo.

  4. ATÉ QUE ENFIM!
    Depois de quase 60 anos lendo baboseiras sobre o que é ideologia, provectos e provectas jornalistas, seguidas de novos e novas que adorariam ter nascido quando Assis Chateaubriand, Júlio Mesquita e Octavio Frias pontificavam, finalmente mostraram a diferença do que é técnico e ideológico.
    O mote foi a indicação de um sujeito de sobrenome esquisito – Pochmann – que não deve ter mais de 20 livros publicados e, provavelmente, menos de 30 anos de experiência em pesquisas, catedrático de uma universidade mais do que suspeita, a Unicamp, em substituição a um egrégio e aplicado atual presidente, cujo nome e curriculum me escapam no momento.
    Pude finalmente entender que Andréa Sadi ter Aécio Neves como padrinho de casamento é técnico, assim como Moro ser padrinho da Zambelli, Dallagnol conchavar americanos para ficar com a grana da Petrobras, o filho da Miriam Leitão escrever um livro endeusando a Vaza-jato, ou um estafeta da Faria Lima que tem o mesmo nome de um americanófilo do tempo da guerra fria, mais conhecido por Bob Fields do que pelo nome original, mostrar a sua tecnalidade empunhando planilhas e mostrando que crianças vendendo balas em semáforos tornaram-se empreendedoras graças ao PIX.
    Na fase morna da minha vida, consegui, finalmente, me livrar dos chatos dos Cientistas Sociais, Filósofos e afins que teimavam em dizer que vivíamos na e pela ideologia, fossem elas quais fossem, como uma única e solitária jornalista da grande imprensa, esportiva por sinal, Milly Lacombe, colunista da UOL, escreveu no último dia 27. Acho que ela disse aquilo só pra nos chatear ou, talvez, querer humilhar frondosos e frondosas colegas

  5. Acho pouco sábio trazer sempre o debate dos temas políticos e econômicos a discussão “vacina vs Cloroquina” . Existe uma tremenda área cinza em torno desse tema em que varias “verdades cientificas” da pandemia foram provadas errôneas, porem vários preferem fingir o contrario devido a politização do tema. Esse argumento não reforça as posições defendidas mas sim reforçá duvidas e suspeitas.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador