Manuel Domingos Neto
Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza em 1949. Graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, mestre pela Universidade de Paris III e Doutor em História pela mesma universidade, em 1979. Professor da Universidade Federal do Ceará e professor associado da Universidade Federal Fluminense
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Estancar a depravação, por Manuel Domingos Neto

Soldado é educado para cumprir ordens; não as recebendo, impõe a própria vontade. Ensandece. Sem remorsos, perpetra vilanias.

Estancar a depravação

por Manuel Domingos Neto

Soldados são indispensáveis à proteção coletiva. Merecem respeito. Sem soldados, a humanidade seria irreconhecível. O avanço do conhecimento e dos direitos esteve associado ao exercício legalizado da violência. Não há sociedade complexa sem organizações militares. O custeio dos que se adestram para matar ou morrer em nome de todos é inevitável.

Soldado é educado para cumprir ordens; não as recebendo, impõe a própria vontade. Ensandece. Sem remorsos, perpetra vilanias. Chega ao extremo de pretender impor a história escrita sob a ótica do quartel. Delira, achando que a sociedade deve se orientar pelos valores do castro.

A relação do político com o soldado não pode ser baseada no medo, na mentira, no jeitinho, na bajulação, na acomodação espúria. Soldado pode bater continência para Rolando Lero, mas não se deixa ludibriar facilmente. Admira quem fala com clareza. Respeita quem imagina estar, pelo menos, à sua altura.

A Defesa de um país demanda iniciativas transversais; perpassa todos os domínios do Estado e da sociedade. No Brasil, o político nunca se preparou para orientar o soldado. Assim, deixou a Defesa do país em mãos impróprias: quem se prepara para combater não pode cuidar dos mil lances inerentes à Defesa.

Não se impondo ao soldado, o político declina de sua obrigação e deixa a democracia ameaçada. Pesquisadores, com destaque para Piero Leirner, apontam que desde 2014, pelo menos, o soldado interfere planejadamente na dinâmica política. Entabula “sinergias” com a imprensa, juízes, religiosos e empresários. Fabrica ambientes sociais através de choques cognitivos. Em eleições mal arrumadas, alçou um desqualificado à Presidência.

Soldado não gosta da esquerda por diferentes razões. A mais relevante é a incompatibilidade entre as estruturas orgânicas e funcionais de sua corporação com reformas sociais e com a política externa soberana. Juventude com perspectiva de ascensão social não combina com recrutamento baseado em moldes coloniais. Valorização da mulher e respeito aos homossexuais fere sua cultura patriarcal e homofóbica. Parcerias estratégicas alternativas estragam as relações com seus fornecedores estrangeiros tradicionais. 

Ao compor seu governo, Lula declinou do comando supremo das Forças Armadas: omitiu-se quanto à política de Defesa, optou por um ministro apaziguador e entregou o comando das Forças aos primeiros colocados em listas definidas por regras corporativas. Assim, estimulou o ativismo político das fileiras.

Na busca pela ruptura institucional, o soldado estimulou e acoitou terroristas e vândalos. No dia 8 de janeiro, os inconformados com a eleição de Lula vilipendiaram o que há de mais sagrado: os pendões da esperança que a grandeza da pátria nos traz. Foi ao extremo da degradação moral. Isso ocorreu no lugar que concentra a maior quantidade de soldados de alta patente, da ativa e da reserva, por metro quadrado.

A indignação do brasileiro foi instantânea. Dirigentes mundiais prestaram imediata solidariedade. De repente, Lula ganhou autoridade moral jamais registrada por um presidente da República para assumir o comando das Forças. O comandante do Exército peitou Lula: disse ao seu representante, o Ministro da Justiça, não aceitar suas ordens. Não foi destituído, foi convidado para almoçar.

Lula disse não ter assinado uma operação de garantia da lei e da ordem por desconfiar do castro. Alguns louvaram seu alcance de vista, sua prudência. Na verdade, Lula admitiu não deter o comando supremo. Afirmou, também, que o soldado não constitui poder moderador. Mas evitou propor a revisão do aberrante Artigo 142 da Constituição, que alimenta a depravação sem limite. 

Sob aplauso contente dos democratas, alguns, sedentos de vendeta, seguiu-se a repressão aos vândalos, comandada por um interventor que admira o general Villas Bôas, ícone da movimentação golpista. Entre os aprisionados, nenhum integrante da família militar.

Fiquei com a sensação de ter votado em Arthur Bernardes II. O primeiro governara, entre 1922 e 1926, permanentemente torpedeado pelo castro. Pouco ou nada fez. Na época, o Exército batia-se entre clivagens internas explosivas. Era difícil mesmo exercer o comando.

Hoje, há unidade de doutrina nas fileiras, não há clivagens palpáveis e multidões veneram Lula. Seria mais fácil o exercício do comando, caso o Presidente resolva assumir de fato a Chefia do Estado e estancar a depravação. Mas o prazo para decidir é curto. Acabará quando o apoio popular entrar em declínio.

Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza em 1949. Graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, em 1976. Obteve o título de Mestre em Sociedade e Economia na América Latina, pela Universidade de Paris III, em 1976, e o título de Doutor em História pela mesma universidade, em 1979. Foi pesquisador da Casa de Rui Barbosa, superintendente da Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí, estado pelo qual também foi deputado federal. Professor da Universidade Federal do Ceará e professor associado da Universidade Federal Fluminense, foi também vice-presidente do CNPq e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED).

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Manuel Domingos Neto

Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza em 1949. Graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, mestre pela Universidade de Paris III e Doutor em História pela mesma universidade, em 1979. Professor da Universidade Federal do Ceará e professor associado da Universidade Federal Fluminense

2 Comentários

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  1. Eis a opinião correta sobre o momento.
    Ainda há tempo , mas é a hora e o tempo urge .
    Outro calcanhar do Lula , é a Economia , onde Haddad faz acenos fortes à Banca e a Elite que nunca votou em Lula . Haddad perdeu duas eleições consecutivas , com apoio de toda esquerda e da Mão de ninguém menos que Lula !!! Não fala ou tem alcance com a Massa .Corte de gastos sociais , para superávit , no seu pacote ( 50 bi) .
    Hoje em Davos , citou o FMI , não sei se por obrigação ,ou bajulação .
    Podemos ter o Artur Bernardes e o Guedes!!! Juntos !!!

  2. Esta importância do soldado e do militarismo pode ter sido importante para a constituição das sociedades. Porém, no momento não existe mais e até joga contra. Nada mais resta a louvar nas forças armadas e avacalhadas.

    Lula e os próximos governos civilizatórios não precisam confrontar os militares. Para fazer isto teria que usar argumentos racionais, porém não se deve esperar inteligência nas forças atuais. Podem e devem ir reduzindo as forças até ficarem do tamanho da sua desimportância atual.

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