Castanhas, Rolex e verniz: o Diário Oficial da União e o esquema das joias para Bolsonaro e Michelle, por Hugo Souza

Uma portaria, uma resolução e os indícios de um esquema de tráfico e contrabando de joias operado por militares do gabinete de Bolsonaro

Brasília (DF) 11/07/2023: depoimento para CPMI do golpe do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, ex-ajudante-de-ordens de Jair Bolsonaro (Foto Lula Marques/ Agência Brasil).

do Come Ananás

Castanhas, Rolex e verniz: o Diário Oficial da União e o esquema das joias para Bolsonaro e Michelle

por Hugo Souza

Uma portaria publicada do Diário Oficial da União durante o governo de transição Temer-Bolsonaro, e ao arrepio de um acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU), classificou joias dadas ao presidente e à primeira-dama “em decorrência de relações diplomáticas vigentes” como itens “de natureza personalíssima que não serão incorporados ao acervo patrimonial da Presidência da República”, mas sim, portanto, ao acervo privado do chefe de Estado.

A informação foi publicada pelo Come Ananás em março deste ano, quando veio a público toda a mobilização feita pelo Gabinete Pessoal do Presidente da República no governo Bolsonaro para que chegasse “fisicamente” ao gabinete presidencial um conjunto de joias dadas na Arábia Saudita a uma comitiva do então ministro das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, e apreendidas em 2021 no aeroporto de Guarulhos. No aeroporto, Bento Albuquerque disse aos fiscais da receita que as joias tinham sido enviadas pelo governo saudita de presente para Michelle Bolsonaro.

Depois, descobriu-se que a comitiva de Bento Albuquerque havia trazido mais joias da Arábia Saudita, presentes da ditadura, estas não identificadas pelos fiscais da receita em Guarulhos e incorporadas ao acervo privado de Bolsonaro. Um terceiro – na verdade, um primeiro – estojo com joias foi dado a Bolsonaro em Riad ainda em 2019. É o estojo que continha o relógio Rolex para o qual Mauro Cid, ex-ajudante de ordens Bolsonaro, cotou, digamos, o valor de troca no mercado paralelo.

A portaria nº 59/2018 da Secretaria Geral da Presidência da República, assinada poucos dias após o início do governo de transição Temer-Bolsonaro, classifica como “bens de natureza personalíssima” de bonés a artigos de toalete; de roupas de cama a pijamas; de castanhas a “joias, semijoias e bijuterias”, entre outros itens “recebidos pelo Presidente da República e consorte em situações caracterizadas oficialmente como cerimônias de troca de presentes”; ou mesmo “recebidos protocolarmente, em decorrência de relações diplomáticas vigentes”.

Anexo IV da portaria nº 59/2018 da Secretaria Geral da Presidência da República.

Quando veio a público o caso das “joias das arábias” para Bolsonaro e Michelle, predominaram as análises de que seria um caso de propina. Naquela altura, Come Ananás chamou atenção, porém, para o fato de que se tratava “antes de tudo de um caso de contrabando de pedras preciosas envolvendo a Presidência da República”, e que talvez não fosse um caso isolado; para que o caso das “joias das arábias” poderia ser “a ponta de um escândalo de apropriação por Bolsonaro de presentes nababescos, ou parte deles, com os quais ditaduras do Oriente Médio mimam funcionários de governos estrangeiros”.

A informação sobre a portaria 59/2018, editada no apagar das luzes do governo Temer, às portas do governo Bolsonaro, ganha novo relevo agora, à luz da revelação de e-mails de Mauro Cid tentando vender um Rolex recebido por Bolsonaro em viagem oficial e de dados do Coaf referentes a transações financeiras heterodoxas feitas por Cid. À luz de tudo isso, tudo aponta para um esquema internacional de tráfico e contrabando de joias e pedras preciosas operado de dentro do Palácio do Planalto por militares da confiança de Bolsonaro.

O filho mais velho de Bolsonaro, senador Flavio Bolsonaro, e o advogado do ex-presidente, Frederick Wassef, valeram-se do argumento “item personalíssimo” para defender a apropriação de joias recebidas em viagens.

Em nota divulgada em março, Wassef diz que Bolsonaro, ficando com as joias para si, estaria amparado pelo acordão 2255/2016 do TCU. A referência é ao fato de que em 2016 o TCU estabeleceu que apenas “itens de natureza personalíssima ou de consumo direto” dados a presidentes por governos estrangeiros não precisam ser incorporados ao acervo patrimonial da Presidência da República. Porém, o relator do caso, ministro Walton Alencar, excluiu explicitamente as joias do rol de itens pessoais do presidente quando proferiu seu voto vencedor em plenário:

“Imagine-se, a propósito, a situação de um chefe de governo presentear o Presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do Presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade”.

O acórdão 2255/2016 do TCU fixou complementariedade ao decreto 4344/2002, que trata dos acervos privados dos presidentes da República, com o voto vencedor clarificando que joias cravejadas de pedras preciosas não podem ser abiscoitadas para o acervo privado do presidente como se fossem bijuterias, bonés, roupas de banho, frutas secas ou risque-rabisque.

A portaria 59/2018 da Secretaria-Geral da Presidência da República, que ignorou olimpicamente o entendimento do TCU, foi assinada pelo então ministro-chefe da pasta, Ronaldo Fonseca de Souza, um pastor evangélico que, em 2016, quando deputado federal, ficou conhecido por justificar seu voto favorável à abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff evocando a… “paz em Jerusalém”.

Em março, após a matéria do Come Ananás, o repórter Paulo Motoryn informou no Brasil de Fato que o “ministro de Temer que colocou joia como item personalíssimo usou foto com Michelle em campanha” – na campanha malfadada de Ronaldo Fonseca para deputado federal em 2022. Muito antes, em janeiro de 2019, na cerimônia na qual Fonseca transferiu o cargo para Gustavo Bebianno, disse assim o subscrevente da portaria 59/2018 da Secretaria-Geral da Presidência da República, diante de Jair Bolsonaro:

“Eu até queria fazer continência para Vossa Excelência, mas não servi nem no tiro de guerra”.

Verniz técnico

Em 9 de dezembro de 2021, 44 dias após a apreensão no aeroporto de Guarulhos de um dos estojos de joias trazidos para o Brasil pela comitiva do almirante Bento Albuquerque, o gabinete do então presidente Jair Bolsonaro instituiu uma “Política de Acervos Documentais Presidenciais Privados”.

O ato se deu pela resolução 1/2021 da Comissão Memória dos Presidentes da República, órgão vinculado ao Gabinete Pessoal do presidente. A resolução foi encontrada por Come Ananás nos arquivos do Diário Oficial da União. A “Política de Acervos Documentais Presidenciais Privados” tem como uma de suas diretrizes “prestar apoio técnico ao Presidente da República durante o seu mandato nos assuntos referentes ao seu acervo privado”.

“Considera-se acervo presidencial privado – diz a resolução – o definido nos arts. 2º e 3º do Decreto nº 4.344, de 2002”.

O artigo 2º do decreto 4344/2002 prevê que “o acervo documental privado do cidadão eleito presidente da República é considerado presidencial a partir de sua diplomação, independentemente de o documento ter sido produzido ou acumulado antes, durante ou depois do mandato presidencial”.

O artigo 3º do decreto de 2002 especifica como acervo privado dos presidentes da República desde obras de arte até “objetos tridimensionais”.

A exemplo da portaria nº 59/2018 da Secretaria Geral da Presidência da República, a resolução resolução 1/2021 da Comissão Memória dos Presidentes da República também não menciona a complementariedade do acórdão do TCU aos termos do decreto 4344/2002. 

A resolução foi assinada pelo à época chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência da República, o capitão-de-corveta Marcelo da Silva Vieira. Marcelo Vieira foi um dos cinco militares envolvidos no esforço que mobilizou três ministérios e a própria Presidência da República ao longo de 14 meses para tentar sacar as joias da alfândega de Guarulhos e entregá-las a Bolsonaro.

Em 29 de outubro de 2021, três dias após a apreensão em Guarulhos, o capitão-de-corveta enviou um ofício ao Ministério das Minas e Energia orientando a pasta a preencher e apresentar à Receita Federal o Formulário de Encaminhamento de Presentes para o Presidente da República, visando desembaraçar as joias e a fim de que os presentes fossem encaminhados ao gabinete pessoal de Bolsonaro, “para o devido tratamento técnico” pelo gabinete adjunto de documentação histórica.

O ofício de Marcelo para as Minas e Energia dizia ainda que as joias apreendidas deveriam chegar “fisicamente” – esta é a palavra usada no ofício – ao gabinete presidencial “para análise quanto à incorporação ao acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”.

Eis um indicativo de qual seria o resultado da análise, do verniz técnico, caso o esforço para pôr as mãos nas joias tivesse logrado sucesso: o estojo de joias que a comitiva de Bento Albuquerque conseguiu esconder da Receita Federal em Guarulhos foi parar em um galpão de 195 metros cúbicos de propriedade do ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet, como parte do acervo privado de Jair Bolsonaro.

Hugo Souza é jornalista.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Hugo Souza

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador