Joao Furtado
João Furtado, economista, especialista em temas ligados à indústria e às políticas para o desenvolvimento. Casado, 62 anos, tem 3 filhos.
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A marca maior do subdesenvolvimento, por João Furtado

Não ouvir a voz dos trabalhadores da Educação e da juventude será o maior erro administrativo das gestões Lula e terá um custo político imenso.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A marca maior do subdesenvolvimento

por João Furtado

O lugar subalterno e silenciado do trabalhador no seu trabalho é uma das marcas mais fortes do subdesenvolvimento. A expressão mão de obra tem conotações evidentemente coerentes com esta forma de ver o trabalhador e o conjunto de trabalhadores. Quer-se uma máquina humana obediente e disciplinada, para fazer apenas e tão somente aquilo que a máquina ou o instrumento não fazem.

Mas quando se fala de produtividade do trabalho, contraditoriamente, aponta-se o dedo ao trabalhador, que não é produtivo, e ao Estado, culpado pela Educação insuficiente e deficiente. Esquece-se, ao mesmo tempo, que o determinante principal da produtividade é a escolha técnico-tecnológica, e sobre ela o trabalhador tem quase sempre uma influência nula ou, quando muito, reduzidíssima. O “doutor em física”, altamente educado, sem uma bandeja como instrumento de trabalho tem produtividade inferior ao “garçon” com 3 meses de experiência; e o doutor em economia sem calculadora ou planilha perde para a produtividade do auxiliar de contabilidade acostumado a somar e subtrair por um treinamento singelo no próprio exercício da profissão.

Uma das curiosidades do debate público sobre produtividade é ver os diretores das grandes instituições da indústria criticarem a produtividade do trabalho como um problema do trabalhador, quando são eles os monopolistas dessa formação – com recursos públicos que excedem o orçamento de muitas universidades públicas brasileiras.

Criado em 1942, o Senai recebe recursos públicos para fazer essa formação. São os “empresários” (capitalistas industriais seria mais apropriado) que comandam a instituição e são eles que definem os padrões de formação, capacitação e treinamento.

Historicamente, prevaleceram sempre os cursos de formação rápida e ainda hoje são esses cursos que respondem pela esmagadora maioria das matrículas. Um dos teóricos do sistema de formação do Senai dizia mesmo, apesar de ser um educador, que a indústria não precisava de pessoas bem formadas, precisava antes de pessoas com um treino rápido. Compreende-se. A fila na porta da fábrica tinha (e tem, simbolicamente, dado que não há mais filas) uma função importante.

Um trabalho muito importante sobre a natureza do processo de formação da classe trabalhadora no Brasil foi produzido e escrito por uma “brazilianista”, Barbara Weinstein (escreveu também um livro sobre a borracha). Merece ser lido por todos os que queremos compreender como chegamos onde estamos e continuamos sem ver o que todos os outros, não contaminados pela naturalização do abjeto, veem no primeiro instante.

Perdemos a perspectiva desta questão decisiva. Todos nos lembramos do episódio do anestesista violador, que as enfermeiras guerreiras só tiveram coragem de denunciar depois de terem provas na forma de imagens. Por que tantas pessoas sofreram? Por que elas, corretamente, compreensivelmente, não fizeram a denúncia quando da primeira evidência ou mesmo indício? Elas sabiam, elas sabem, elas tinham a certeza, por vidas profissionais longas e experiências reiteradas, que a voz do trabalhador subalternizado não tem valor. Não desistiram, apesar de saberem dos riscos.

Esse exemplo é extremo? Sim, é, mas é também revelador do grau de subordinação e de reconhecimento do desvalor do trabalho perante aqueles que têm o poder sobre o trabalho e a sua organização. E isso nos leva ao tema quente do momento: a revogação da reforma do ensino médio. O presidente Lula e o ministro Camilo Santana, apoiados por um bem coordenado conjunto de instituições criadas e mantidas pelo grande capital e pelos ricos e poderosos preocupados com os destinos do Brasil, podem preferir manter a reforma do ensino médio e silenciar a voz dos trabalhadores da Educação e da juventude, impondo-lhes, goela abaixo, uma reforma que faria sentido em outro contexto e com outras condições, mas em regime de escassez de financiamento, ela é a subtração do que existia, com muitos problemas, para a instituição de um projeto degradado. A reforma é sucateamento com pretexto de renovação.

Não ouvir a voz dos trabalhadores da Educação e da juventude será o maior erro administrativo das gestões Lula e terá um custo político imenso. Com a reforma, esgarçam-se os elos entre a reflexão crítica e a formação da cidadania, destrói-se o elemento social e coletivo da formação em favor de percursos individualistas e deformadores. Joga-se água no moinho dos valores que antagonizam a mudança a que aspiramos.  Não tem volta. Mas pensando bem, tem tudo a ver com uma das marcas mais fortes do subdesenvolvimento: o lugar subalterno e silenciado do trabalhador no seu trabalho – e na sociedade.

Escrevi este texto pensando em todas as professoras e professores que diariamente lutam para transformar crianças e jovens em cidadãos conscientes sem contarem quase nunca com as condições adequadas. O Brasil tem muitos heróis anônimos. A eles devemos o fio de esperança que ainda mantemos aceso.

João Furtado é economista.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. A publicação do artigo dependerá de aprovação da redação GGN.

Joao Furtado

João Furtado, economista, especialista em temas ligados à indústria e às políticas para o desenvolvimento. Casado, 62 anos, tem 3 filhos.

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