A Elite e Zé-Maria – um conto sobre a desigualdade, por Nathan Caixeta

Sobre trens, marmitas, inflação, fome, bolsa de valores, Zés, Marias e Patrões. Brasil.

Suzana Vier/Rede Brasil Atual

A Elite e Zé-Maria – um conto sobre a desigualdade*

por Nathan Caixeta

Escrito originalmente para Coluna no Brasil Debate: https://brasildebate.com.br/a-elite-e-ze-maria-um-conto-sobre-a-desigualdade/

Homenagem ao amigo André Luiz Passos Santos

Sobe no trem às 6h da matina um tal de Zé. O Zé carrega sua marmita com arroz, feijão e ovo, bafejando calor embaixo do braço, enquanto esse trabalhador tenta se equilibrar a cada sacudida da grande minhoca de ferro que o carrega, rasgando o espaço da cidade em alta velocidade.

No trem, se encontram outros Zés. Suas marmitas carregam o mesmo arroz, o mesmo feijão, o mesmo ovo, em muitos casos menos que isso. Um Zé cumprimenta o outro com o aceno de cabeça que deixa transparecer o cansaço estampado nas olheiras de uma noite mal dormida. Entre um ponto e outro, seu Zé pensa alto como se conversasse com o plano divino, pedindo um auxilio para fechar as contas do mês, ou pelo menos colocar comida na mesa. A velocidade do trem impede qualquer conversa mais profunda, pois a pontualidade da hora do trabalho faz com que um Zé passe diante do outro sem que um consuma do outro alguma atenção.

Zé bate ponto às 8h, atropelando o meio-fio para chegar na hora e não ter minuto algum descontado do salário. Entre um pingo de suor e outro, a chuva que chega, com pingos também, lembra ao Zé que esquecera do guarda-chuva pela pressa com que deu um beijo nas crianças e saiu para pegar o trem. Assim vão os dias, os dias dos vários Zés. Já o patrão muito ocupado para lembrar o nome de cada um, conhecendo-os pelo número de inscrição na firma, para não errar, chama cada Zé de Zé ninguém.

Na volta para casa, o patrão entra no carro com os vidros escuros levantados. Acende o cigarro e segue para o condomínio onde vive, protegido da chuva que cai. No caminho, não deixa de passar pelo restaurante estrelado para encontrar outros patrões. Entre eles fala-se sobre tudo. Os juros, a Bolsa de Valores, o desempenho do setor. Mas o assunto favorito é uma reclamação, pois: quanto absurdo pagar tanto ao Zé, se ele não tem nem instrução. Absurdo maior: são muitos Zés, tantos ninguéns que comem um pão de lucro, impedindo que entre os patrões seja servido mais uma lagosta.

O jornal das 18h anuncia que a inflação dispara. Os patrões assistem juntos, se entreolhando pela fumaça dos cigarros e charutos. Todos pensam o mesmo: vamos aumentar os preços, proteger nossas margens e, caso precise, demitir algum Zé para poupar o custo. Não muito longe dali, Seu Zé volta para casa, novamente no balanço do trem. O badalo da igreja é pontual. O trem também. Sempre sacoleja mais naquela curva, naquele trilho avariado e mal construído. Ouvindo de canto de orelha que a inflação aumentou, seu Zé pensa: “Fodeu!”, posso tirar o ovo da marmita diária, mas e o leite das crianças?

Preocupado, seu Zé chega em casa, mal abraça os filhos e já tem que se preparar para dormir, sem comer tanto, pensando em guardar para o dia seguinte. Chegada a hora de dormir, o Zé lembra que amanhã o dia é igual, mas o salário é reduzido, uma tal de inflação é quem comeu. Lutando contra o corpo cansado, encosta perto na TV velha, pequena, paga em prestações ao vizinho que subiu de cargo e se mudou da Cohab.

Está passando jogo do mengão, o narrador ouve as preces de seu Zé e logo anuncia um gol. Três pontos na tabela. Seu Zé pega no sono, amparando a cabeça do filho mais novo no braço, enquanto com o outro afaga a cabeça do mais velho que está triste, pois o mengão do pai ganhou do seu coringão.

Ao final, eu que li essa história em algum jornal, pois todo dia essa história é contada sempre igual, descubro que seu Zé Ninguém, na verdade, é dona Maria, mãe de três. Mãe sozinha. Seu dia é o mesmo que aquele narrado para o seu Zé, a diferença é que seu destino ao pegar o trem não é para a fábrica, mas para a casa do patrão. Lá ela veste o uniforme, nina as crianças da patroa, a quem chama de Senhora.

O braço balança, ninando a criança, antes de coloca-la no berço que, se não é de ouro, é o dobro do preço do salário que a Senhora paga a Dona Maria. Ao ver a criança adormecer, Dona Maria não vê distinção entre os cabelos loiros e os olhos azuis daquele bebê, com o cabelo crespo, a pele negra e os olhos escuros de suas próprias crianças. A Senhora, no entanto, nem sabe quantos filhos Dona Maria tem, antes de anunciar que seu salário será cortado também. O preço do salão de beleza subiu e o marido, patrão da fábrica onde seu Zé trabalha, quem mandou

: ou corta o cabelo, faz as unhas e passa na butique, ou vá dizer para a “negrinha” que seu salário será cortado. A Senhora, perguntando o porquê, recebe de pronto a resposta: “a inflação, porra!”, você não leu o jornal? O patrão bate a porta, sai apressado, acorda o filho que estava dormindo, Dona Maria quem vai afaga-lo.

Passado alguns meses, outra notícia no jornal da noite: crise no mercado, a bolsa desabou. O patrão que já havia se informado, antes mesmo do noticiário, pegou seus contos e trocou por dólares num tal mercado (de dinheiro). Demitiu Seu Zé e Dona Maria que hoje passam juntos pela fila. A fila da fome. No Brasil, metade é Zé, outra metade é Maria. Os Patrões e Senhoras vão à Miami curtir seus dólares. Essa foi a última noticia que tive, antes do filho de seu Zé ser preso e a filha de dona Maria engravidar, de um canalha que não pensou duas vezes antes de sozinha lhe deixar. Foi negado o aborto a menina, como ao filho de seu Zé foi negado uma explicação: o patrão que cheira pó pode comprar, e eu quem vendo passo fome. Porque não, se nós dois queremos dinheiro?

A criança nascida, recebe todo carinho de sua avó, Dona Maria. Sua mãe, ainda muito menina, troca a boneca pela fralda. Na cadeia, o filho de seu Zé, descobre uma tal de facção que protege quem é irmão. Ele que tinha ouvido o professor falar sobre as formigas que se juntam em bandos para lutar contra a falta de comida na estação fria, se vê sem alternativa. O cano na cintura é seu protetor, contra a farda que protege as posses do Patrão, aquele mesmo que o acusou de vender o pó. O pó já foi, patrão foi quem cheirou para ficar ligado, lá mesmo, no noticiário.

A Senhora, já não se satisfaz com as compras que tanto faz. Ao ver a família rica e assim mesmo triste, não vê saída que não seja um gole de gim para aguentar o baque, e para dormir dois comprimidos de Prozac.

Outro noticiário, apresentado pelo pinga-sangue do helicóptero que sobrevoa a Cohab, persegue os rastros da chuva que arrasam com os barracos construídos no barranco. Distraído o espectador nem nota que: de um lado da tela, há fartura. Do outro, há fome. De um lado, condomínio com seguranças armados. De outro, barracos, a Cohab, cuja única proteção é a milícia, ou a facção.

Ao escrever o conto, ouço o choro do bandolim de Cartola. Ele não sabia escrever e era poeta. O rico patrão que sabe, é, no máximo, um pateta. Não tem sentimentos. O choro do bandolim, ecoa fazendo do cavaquinho de Nelson, um retrato do Brasil: folhas secas pisadas do alto das nossas mangueiras. Vai chegando outra sexta-feira. Quem saíra no jornal? O capitão que protege a milicia, ou o operário que quer tirar o garoto daquela situação de vender bala no sinal?

Belíndia, Sr. Acadêmico, é o caralho. O Brasil é África! Na sua riqueza cultural que a nós faz contente. Na sua pobreza material, também (será, de repente!). Na pele. Na história. Nos lucros que iam para a coroa com a venda dos negros e hoje vão para o banqueiro, chefe do tal Banco Central. Volto para contar outra história. Por hoje, digo “tchau”.

Nathan Caixeta, pós-graduando em desenvolvimento econômico no IE/UNICAMP e pesquisador do núcleo de estudos de conjuntura da FACAMP (NEC-FACAMP).

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Redação

1 Comentário

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  1. Inegavelmente o Brasil é apesar dos apesares, um País resistente. Da convivência com índices inflacionários na época “hiper”, enfrentando outros momentos de dificuldades o País conseguiu se manter. Sua grande deficiência é não conseguir admitir que precisa evoluir como sociedade economicamente organizada e civilizatóriamente organizada. A existência de “elites” sejam elas econômicas, culturais, intelectuais, políticas, acadêmicas, etc; deveria ser considerado uma vantagem para a construção da sociedade/Nação e a participação dos “Zés” e das “Marias”com a oferta de possibilidade de ascenção, incrementando e diversificando o volume dessas elites, aumentando as capacidades de construção do País, deveria ser de interesse absoluto. Esse fosso social que separa os cumes das pirâmides de suas bases, permitindo que as faixas superiores desprezem, ao ponto de ignorar as necessidades dos que estão abaixo, se não impedem o sucesso dos que se encontram acima em relação a fama, riqueza e realização; condenam o País a um subdesenvolvimento de várias naturezas. Qual a atratividade do Brasil nos investimentos de ponta, aqueles que agregam valores e relacionam cadeias que podem transformar as realidades locais em prazos tão curtos. Tudo tem um custo, não é apenas o corte de uma despesa com a demissão de um “Zé” ou uma “Maria”. Certas condutas e atitudes também produzem custos consequentes. A visão de que o todo do País não interessa, somente o meu ganho e satisfação é o que importa, cada um que se vire. Impede uma série de coisas acontecerem.

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