(com o seu quadro na cozinha)
Às vezes, parece que apenas saberei escrever estas crônicas, se com os braços dados estivermos: Eu e Ângela. Ela que na noite se fez, e agora já virou concreto desarmado. Diluída. Espatifou no meu pensamento.
Estou no quarto fechado, há horas, para resguardá-la do mundo. Cuidar de Ângela é a minha mais nova incumbência. Mas isso já é antigo!. E apenas falo em coisa nova, porque demora para se ter em mente uma cena completa!, como esta que agora descrevo: este quadro-retrato, e um prato cheio de frutas, em cima desta extensa mesa de madeira, na cozinha.
As cores não se ajeitam com facilidade, é preciso limpar o corpo para que rocem e lambuzem a tela da mente. E até desenharem por fim um auto-retrato!: este quadro diante de mim, dependurado na cozinha. É Ângela! O seu Real ficou plasmado num quadro pintado: somente assim, vive hoje Ângela. Em uma moldura chinfrim, posta entre armários, e em cima do fogão. Ela vivia nisto que se anuveia em minha mente, em um ambiente pálido, bege desgastado. As frutas em cima da mesa são o seu passado morto. Este quadro, um pouco mórbido e alegre, é a ressurreição bíblica da vontade de Ângela. Ela acredita!
Assim é a sua feição secular. Mulher com frutas e uma larga mesa de madeira. Mas, aclaro, não sei se sou eu que gosto do cheiro, textura e vigor da madeira, ou se tudo isso foi mesmo uma escolha de Ângela para seus móveis. Tudo em meu pensamento-escritor é sempre feito de madeira num marrom matizado. E é com esse tal gosto pela madeira que nos confundimos, Eu e Ângela, a menudo.
Mas Ângela é esta mulher fingidamente desentendida de tudo, ligeira para não saber de nada. Risonha para o descaso de um papel que voa pela janela, sem quê nem porquê, e cai no colo daquele que deve pronunciá-la. Ela sopra. Eu recebo recados de Ângela. Voam e entram pela minha janela escancarada – Às vezes, acho que o fechar-e-abrir de uma janela é igual ao movimento do espírito dentro de nós. Então, escrevo Ângela como posso, vendo este seu quadro pegando gordura na cozinha.
Ângela é tão esquisita, pendurou um quadro-retrato justamente na cozinha!, e não em seu quarto ou na sala. Mas os demais aposentos de sua antiga casa, estes não os conheço. Está-me a ser apresentado, hoje: apenas a cozinha. Nesta cozinha que tem azulejos daquela época em que azulejos enfeitavam o ambiente.
Ângela era toda alerta com as comidas. Nunca deixou uma fruta sequer apodrecer no prato. Ela não tinha cestos, nem fruteiras, ela tinha um prato branco e gostava desse estilo para colocar as frutas.
– Sou ecoada, sou eco! Escreva-me em um registro severo. Se sou mesmo assim, incongruente com a vida!
Estou a ficar enjoada de tanto..Vou sair da sua cozinha, Ângela.
Licença.
*
Ainda não sei como será a descoberta total de Ângela. Ela está no parcial. Sempre que vejo Ângela, é através da luz da noite, que hoje se fez na luz de um quadro cheio de cores – cores que me guiam e desenham o que é a nossa Ângela. Nossa, digo: porque preciso compartilhar o sempre-estar de Ângela. Ela necessita sair para além de, e renovar-se. Ângela pode ser sumamente impositiva, mas está cheia de funduras e cores alagadas – Ela jamais transmite que a escuridão é desprovida de luz. A negatividade para Ângela não existe, ela tem certeza que a sinceridade crua é bondosa. A sua escuridão tem intensidade. Pois, realmente, ninguém vê como são desfeitas, e como caem mortas silenciadas no ar, as notas musicais. Então não julguem a escuridão de Ângela! Tentar ver e estar com cada seu palavrear, pode ser como desenvolver-se num espaço despretensiosamente artístico.
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