Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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As palavras “nossos semelhantes” estão bem passadas de moda, por Maíra Vasconcelos

O espelho pode ser o dos alimentos, como também são as palavras e os livros quando se tenta uma linguagem própria.

As palavras “nossos semelhantes” estão bem passadas de moda

por Maíra Vasconcelos

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Ter preguiça é como não desejar. Depois de um tempo, e cada um terá o seu, a preguiça torna-se insuportável. Não para todos. Mas imagino que para alguns. Preguiça de olhar no espelho, por exemplo, pode ser preguiça de ver que não se deseja o espelho, mas sua alteração. Como ver-se no espelho das águas, como na pintura de Kahlo, O que a água me deu. Tudo fica mais flexível assim. Quer dizer, deseja-se sempre a mudança daquilo que se vê. Sempre que não se tem preguiça. Como querer uma vida de transformações simultâneas para afastar a morosidade e atrair espelhos facetados. Afinal, não existe mais espelho inteiro ao menos desde o cubismo, ou desde as águas de Frida.

Outro dia mesmo, enquanto cozinhava, escutava o radialista dizer que foi o maior quiproquó a saída aos bares e restaurantes, abundância de cervejas e cafés nas calçadas. Nunca vi um espelho tão longe de mim mesma. Foi um horror. Mas, sozinha ao cozinhar, parece que não se precisa de certos espelhos. Pois estava ali como a inventar um modo próprio de preparar os alimentos – sempre um tanto atenta as pimentas de minha predileção. E nisso cozinhar se parece à arte. O espelho pode ser o dos alimentos, como também são as palavras e os livros quando se tenta uma linguagem própria.

Assim tenho descoberto que o próprio de cada um pode ser também o que se prepara em horas na cozinha, enquanto se entende a distância abismal dos espelhos que o radialista reproduz. Claro que estou a dizer de uma falta de semelhança. Aliás, as palavras “nossos semelhantes” estão bem passadas de moda. E tudo isso justifica a necessidade de preparações próprias, seja de uma escrita, seja de um alimento. Por isso, parece ser ainda mais importante escutar as notícias do rádio. Imaginem, parecer semelhante, nos dias atuais, pode provocar traumas nos espelhos-quebrados. Radialistas sempre foram muito bons em alertar o público ouvinte.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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