Conversas com minha mãe – Bicicleta, por Daniel Gorte-Dalmoro

Eu gastava parte da minha mesada para equipar minha magrela, algo incomum na época, ao menos na latitude onde eu morava

Foto do arquivo pessoal de Walter Abramides

Conversas com minha mãe – Bicicleta, por Daniel Gorte-Dalmoro

Ganhei minha primeira bicicleta no aniversário de sete anos. Dei duas dúzias de volta na calçada do pátio de casa, mesmo com as rodinhas caí três ou quatro vezes, e deixei ela encostada por um ano, até passar a utilizá-la seguidamente – abandonei o pedal aos 22, na segunda vez que precisei me atirar na calçada para dar passagem a um ônibus que me pressionava, em Campinas.

Quando em Pato, eu criança-adolescente, tinha uma relação com a bicicleta que João Antônio soube descrever em um de seus contos (cujo nome me foge por completo). Uma relação próxima daquela que eu via nos pais dos meus amigos com seus carros – e não era o caso do meu pai, que tratava seu veículo como um instrumento, e não um filho ou um bibelô: “o carro é que tem que trabalhar para mim, não eu para ele”, ele respondia quando questionava porque ele não fazia como os demais homens adultos. Eu gastava parte da minha mesada para equipar minha magrela, algo incomum na época, ao menos na latitude onde eu morava: chifre, capa para a roda, buzina, velocímetro, lanterna… Quando comprei a lanterna, lembro de minha mãe contar que meu avô possuía uma em sua bicicleta, que funcionava com um dínamo: “mas fazia a bicicleta ficar bem pesada”, ela conta. Pergunto hoje como ela sabia do peso, se não sabe andar de bicicleta. Meu irmão se surpreende:

Não?

Andei uma vez, acabei indo reto num descampado e caí, nunca mais peguei a bicicleta, era o meio de transporte do pai.

Não lembro de meu avô comentar sobre a lanterna, lembro de ele contando que quando estava construindo a casa na qual criou as filhas e viveu até sua partida, ao fim do expediente, depois de passar o dia levantando paredes para os outros, pegava a bicicleta e acelerava para chegar a tempo de ter ainda um pouco do sol do fim do dia para levantar mais uma parede ou meia para sua família. Mãe conta que depois de feita a casa, esse tempo – assim como os fins de semana – eram utilizados para bicos em obras nas cercanias, de modo a complementar a renda.

No meio de nossa conversa sobre bicicletas, mãe acaba por lembrar que andava, sim, e bastante, mas era na garupa. Conta que quando meu avô saía um pouco mais tarde para o trabalho – ela não sabe os motivos -, aproveitava e ia carona para a escola. “Mas eu era folgada”, ela conta, e diz isso de si porque ia na garupa o tempo todo, mesmo nas subidas íngremes em que vô descia para empurrar a bicicleta. “Tadinho do pai, trabalhava pesado o dia todo e ainda tinha que me carregar pela manhã”. Discordo dela: certamente vô fazia isso por gostar dela, e apesar do peso extra, não era um sacrifício, antes uma forma de fazer um agrado à filha.

A imagem que me veio foi de uma manhã fria e ventosa (Ponta Grossa venta muito), com minha mãe ainda criança, as pernas balançando, tagarelando todo o trajeto, enquanto meu avô respondia com sua paciência habitual.

Daniel Gorte-Dalmoro é escritor e funcionário público. Filósofo e Sociólogo formado pela Unicamp, Mestre em Filosofia pela PUC-SP (se debruçou sobre A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord), Psicanalista em formação. Autor, dentre outros, de Trezenhum. Humor sem graça. (Ibiporã 1011) e Linha de Produção/Linha de Descartes (Editora Urutau).

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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