Estórias de cobra, por Walnice Nogueira Galvão

Mas há tempos não ouvíamos a estória de uma cobra chegar tão perto. E há debate a respeito de sua identidade: uns dizem que era uma jararacuçu, outros que era uma limpa-campo.

Estórias de cobra

por Walnice Nogueira Galvão

Nota para o leitor cético: a história que segue ocorreu recentemente, em Paraty. O protagonista foi um menino de 12 anos, o João, João Lacerda Galvão, que lá vive, com seus pais e irmãos.

João aproveitou-se do fato de que não havia ninguém em casa e resolveu entrar no banheiro dos pais. Só que, ao transpor o umbral, a primeira coisa que viu foi uma cobra enrodilhada dentro da pia. Sua reação foi pegar o celular e chamar a mãe, que estava fazendo compras nas proximidades. Ela acudiu imediatamente, trazendo um amigo para matar o bicho mau, que mediu 1,50: não era propriamente insignificante… A casa não fica na zona rural, fica na cidade, num bairro bonito e bem tratado, incrustado na Mata Atlântica. Mas há tempos não ouvíamos a estória de uma cobra chegar tão perto. E há debate a respeito de sua identidade: uns dizem que era uma jararacuçu, outros que era uma limpa-campo.

Em nossa família, ninguém se assombra muito com cobra. A mãe era exímia em trucidá-las  e ensinava a nós todos como é que se faz. É preciso assestar um golpe certeiro e forte na nuca da cobra, para quebrar-lhe a espinha e matar de vez. Se ela não morrer, retorce-se toda, revira-se para trás e como que voa para cima do agressor. Se não for para liquidar de um golpe só, é melhor nem começar. “Nuca” é modo de dizer, porque cobra não tem nuca: é preciso bater bem onde o crânio termina e começa a coluna dorsal. É o ponto nevrálgico e a uma pancada ali nenhuma delas sobrevive.

O pai tinha uma atitude diferente. Ele fazia questão de pegar as cobras vivas e trazê-las ao Butantã, doando-as para a fabricação de soro antiofídico. Para isso, retirava os bancos dos veículos e os substituía pelos caixotes lacrados cheios de cobras. A garotada viajava para São Paulo sentada em cima dos caixotes, ouvindo o ruído abafado dos botes que elas desferiam para todos os lados. Aprendi então que é importante fabricar soros diferentes com as diferentes peçonhas. Há um soro geral inespecífico, mas muito menos eficaz que os soros específicos. Se você for picado por cobra, e for capaz de identificá-la, receberá então um soro preciso e de efeito rápido.

Já se vê que o pai representava a ciência e a cidadania, enquanto a mãe era mesmo Eva contra Satanás, a Grande Serpente, agindo sob a maldição de Jeová registrada na Bíblia, como castigo por provarem do fruto proibido: disso resultaria a expulsão do Jardim do Éden, ou seja, do Paraíso. Foi decretado no Gênesis que seriam eternos inimigos, que Eva  pisaria a cabeça da cobra e esta lhe feriria o calcanhar. Pense só em quanta arte medieval e renascentista maravilhosa esse tema produziu, para nosso deleite.

Na família de minha avó materna um dos piores insultos, a ser resolvido em duelo, era chamar alguém de “jararaca do rabo branco”. Nunca consegui apurar porque não servia uma cobra qualquer, sem preconceito étnico; ou então, se fizessem mesmo questão que fosse uma jararaca, porque não de rabo preto ou mesmo incolor.

E foi um filho dela que protagonizou uma outra estória de cobra. Aos 5 anos, brincando no pomar, veio até  ao pé de minha avó com uma pena na mão e declarou que tinha acabado de matar uma caninana com seu bodoque, apresentando a pena como prova. Até hoje, na família de minha avó, quando se quer qualificar um grande mentiroso ou um impostor, que vive de inventar patranhas, em louvor de seu talento diz-se dele que é um caçador de caninana de pena.

Mas a estória predileta passou-se com meu filho, quando foi estudar fora, em Grenoble, na França. Bom neto de minha mãe que era, ao jogar tênis na quadra da cidade avistou uma cobrinha coleando no meio do gramado. Devia ser a única em toda a Europa… Pegou a raquete e desferiu o golpe que a avó lhe ensinara (“bem na nuca”), matando o bicho na hora. Então levantou-o com a raquete mesmo, transportando o troféu pendurado enquanto procurava uma lata de lixo. E era de ver a francesada correndo e gritando apavorada, abrindo alas para ele passar, o que muito o divertiu e deixou a avó orgulhosa do bom discípulo. Nós dos trópicos temos outra visão das coisas, e inclusive das cobras.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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