Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Geraldo Vandré, um atestado vivo da ditadura, por Urariano Mota

Hemingway em “O Velho e o Mar” dizia que é possível destruir-se um homem, mas nunca derrotá-lo.

Geraldo Vandré, um atestado vivo da ditadura

por Urariano Mota

Nos mais recentes dias, Geraldo Vandré deu uma entrevista à Folha de São Paulo. Mas à sua maneira, é claro, sem responder de frente às perguntas. Segundo o jornal, ele chegou timidamente e parecia desconfiado. Lacônico, durante uma entrevista de 21 minutos, monossilábico.

Ele explicou – ou tentou explicar – a sua aproximação com as Forças Armadas, em especial com a Força Aérea Brasileira, a FAB, para a qual compôs a música “Fabiana”. Nas imagens, vemos um Geraldo Vandré perto dos 88 anos de idade. Boné sobre a testa, quase sobre os olhos, óculos escuros, como a se esconder. De vergonha ou de si mesmo?

Alguns comentários sob a sua “entrevista” são dignos de citação:

“O fato de não querer dizer nada sobre a existência da ditadura no Brasil, parece ser síndrome de Estocolmo….

O cara faz uma música no auge da ditadura com a seguinte letra: ‘Há soldados armados amados ou não, quase todos perdidos de armas na mão. Nos quarteis lhes ensinam uma antiga lição, de morrer pela pátria e viver sem razão’. Daí, depois de exilar no exterior, volta ao Brasil em 1973. É preso. Logo após, ele é libertado e sai dizendo pra todo mundo que os militares são espetaculares. É difícil imaginar algum preso político na ditadura que não tenha sido torturado”. 

Do texto recente da Folha de São Paulo e dos comentários vou ao que escrevi antes sobre uma das suas “entrevistas”. Lembro que ao ver e ouvir as falas de Vandré na Globo News em 2012, passei dias ruminando.

Vinha para mim uma canção íntima, que na década de 70 era senha:

“Eu vou levando a minha vida enfim
Cantando e canto sim
E não cantava se não fosse assim
Levando pra quem me ouvir
Certezas e esperanças pra trocar
Por dores e tristezas que bem sei
Um dia ainda vão findar…
Deixa que a tua certeza se faça do povo a canção
Pra que teu povo cantando teu canto ele não seja em vão”.

Que revolução queríamos naqueles anos, quando ouvíamos a canção de Vandré? Que peitos puros guardávamos ainda não provados pela luta? Agora, aparecia na entrevista: um velho de boné, com a insígnia da FAB, cabisbaixo, com o pensamento cheio de interrupções. O diabo era que nesse pensamento falho, ainda assim, sobrevivia uma certa lógica, como naquele louco Hamlet. Havia uma certa memória, montada, como em toda memória, mas, no caso de Vandré, com os cortes cirúrgicos que expurgavam a violência do regime militar.

E houve então a primeira ressalva, ao entrevistador. Ocorria com Geneton Moraes Neto (junto com Vandré numa foto) o que era comum em 99% dos repórteres na imprensa do Brasil: eles não entendem nada vezes nada da ditadura. Não é que alguns, pela idade, não tenham passado por aqueles malditos tempos de Médici (por coincidência, o período da volta de Vandré ao Brasil). Alguns viveram, mas a sua experiência é exterior aos perseguidos. Devo dizer, eles não comeram e beberam com e daqueles jovens entusiastas que viviam no limite, clandestinos, entre ruas escuras, promessas de barbárie e bares infectos. Daí que os jornalistas cometam os maiores erros. Eles não têm o conhecimento sofrido da dinâmica da ditadura.

Pela pesquisa, pelo aprendizado humilde, atento e curioso, poderiam driblar essa impossibilidade da experiência vivida. Mas não, na entrevista parecia que Vandré era autor de duas músicas, Disparada e Caminhando. Pela insistência do repórter nessas canções, parecia. No entanto, há um momento na entrevista em que Vandré refuga, como um cavalo refuga, a seu caráter de compositor engajado. Se o entrevistador houvesse ido além das duas canções, poderia ter lembrado uma canção do senhor de boné, direta como um soco:

“O terreiro lá de casa
Não se varre com vassoura,
Varre com ponta de sabre
E bala de metralhadora….”.

Mas isso ficou oculto das pessoas que viram o compositor pela primeira vez na televisão. É possível que houvesse uma pauta prévia, aquela que todo repórter hoje no Brasil tem antes da realidade. A saber, no caso do velhinho de boné: na pauta, havia que mostrar Vandré como um sobrevivente da velha esquerda, recuperado com vivas aos militares. A pauta do escândalo. Nesse particular sentido, a entrevista foi um sucesso. Na verdade, ela nem precisava da presença física de Vandré, bastavam-lhe os elementos essenciais da caricatura: um velho, um boné e a logomarca da Força Aérea Brasileira. O que deveria ser uma revelação do que o regime de 1964 fez com um compositor de gênio, transformou-se em uma exibição de paradoxos e ruínas.

Na verdade, Vandré já oferecera antes à imprensa as linhas mestras da sua derrocada. Antes até da sua canção de homenagem à FAB. No coletivo virtual “Os amigos de 68”, uma militante médica, a quem não pedi autorização para divulgar o nome, informou:

“…Foi em torno de 74, quando eu fazia residência no Pinel. Conheci Vandré quando ele foi internado na emergência psiquiátrica da Clínica de Botafogo. Motivo alegado: Vandré estaria ‘armado com uma faca’ e ameaçava matar a sua irmã. Só o vi dias mais tarde, quando tocava violão para os internos no pátio da Clínica. Aparentava ‘tranquilidade’, mas sua fisionomia era de dor. Ele era ouvido com atenção e certa admiração. Sabiam que se tratava de um compositor famoso. Não consigo me lembrar o que tocava. Fiquei muito emocionada e chocada com tudo aquilo. Era o resultado das muitas torturas que ele sofrera na repressão dos anos 60/70…”

Hemingway em “O Velho e o Mar” dizia que é possível destruir-se um homem, mas nunca derrotá-lo. Na entrevista, o que se viu foi um homem ainda em estado de terror, em plena democracia. Nela, Vandré nos lembrava os elefantes amestrados, torturados, que levantam a pata para o público no circo. Por isso não sabemos ao fim se o gênio de Vandré foi destruído.

Falam que na volta de Vandré ao Brasil, em 1973, “ele resolveu não mais cantar”. Isso é absolutamente falso. Na ameaça feita pela repressão política  a ele, condição férrea para que voltasse, ele estava proibido de cantar. Essa foi a imposição para a sua volta. Então ele deu um depoimento no aeroporto, renegando sua militância política. As imagens estão desaparecidas, assim como o Vandré de antes, que não existe mais, cuja identidade anterior está sepultada. Segundo o seu biógrafo Vitor Nuzzi:


“Ele estava no exílio um pouco doente, e a família começou a negociar com o governo militar, para que ele pudesse voltar ao Brasil sob algumas condições. Uma dessas condições foi uma entrevista forjada, que saiu no Jornal Nacional, um mês depois do retorno de fato dele ao Brasil. Ele voltou em julho de 1973, e em agosto o programa divulgou uma matéria como se ele estivesse voltando ao Brasil naquele momento. As perguntas foram previamente selecionadas pelos próprios agentes federais, para que ele falasse que não tinha ligação com nenhum grupo político, que ele teria sido usado nos anos 60, ele só queria fazer canções de amor, e que esperava se integrar à realidade brasileira”,

Repetindo: o retorno de Geraldo Vandré ao Brasil teria acontecido sob a condição de que ele fizesse uma retratação ou confissão pública através do Jornal Nacional. Seu desembarque real no país teria sido 33 dias antes do desembarque fictício, totalmente ensaiado e encenado para ser transmitido na TV Globo, em 21 de agosto de 1973. A câmera focalizou a escada de um avião da Varig no aeroporto de Brasília, fechando mais ainda no rosto de Geraldo Vandré, barbado e com expressão cansada, aparecendo na tela. A locução informa: “O cantor e compositor Geraldo Vandré acaba de voltar ao Brasil”. Ele desce a escada e caminha pela pista do aeroporto. Em seguida, faz aquele que seria seu primeiro pronunciamento desde 1968: queixa-se de que sua música foi apropriada por grupos políticos contra a sua vontade. Diz que espera cantar uma nova realidade do Brasil: “Vocês sabem, a arte às vezes é usada por um grupo determinado com interesses políticos e isso transcende a vontade do próprio autor. Eu, o que tenho a dizer é que, na verdade, nunca estive vinculado ou comprometido em toda minha vida com qualquer grupo político”, esclarece, com voz trêmula e cabisbaixo. “Daqui pra frente só vou fazer canções de amor e paz”.

E sob ameaças que nem às paredes declara em entrevistas, Geraldo Vandré vem cumprindo a ordem. Pior. Passou a idolatrar os militares da ditadura. Alguns falam que ele teve diagnóstico de esquizofrenia no período em que passou no Chile, nos anos 1970. Mas essa possível esquizofrenia nunca o impediu de continuar sua trajetória artística e de militância política de esquerda. Ele só muda depois do desembarque e ser preso no Brasil em 1973.

Os admiradores extremos da grande obra do artista, que encarnam na pessoa de Vandré os feitos musicais, não admitem fraturas morais no ídolo. Toleram tudo. É como uma lei do coração dos que veneram os santos. Mas para compreender o caso Vandré, seria bom que fossem entrevistados os ex-presos políticos. Nas falas e lacunas de fala de Geraldo Vandré, é fatal esta lembrança: os torturados que sob ameaça de morte na ditadura foram à televisão negar suas convicções, e se mostraram contra os terroristas, seus companheiros de luta. O vídeo de um “arrependido” aqui

Em um furo de notícia e coragem, o Jornal do Brasil pulou a proibição de falar sobre o retorno do compositor e, na edição de 18 de julho de 1973, publicou uma nota: “O cantor e compositor Geraldo Vandré foi preso, ontem, no aeroporto do Galeão, ao desembarcar de um avião. O artista foi levado para uma unidade militar, onde se encontra incomunicável”. O fato é que, de lá até hoje, Vandré continua incomunicável porque morreu como artista e homem.

Peguemos então um caminho de esperança: Vandré continua vivo e eloquente nas suas canções. Antes de 1973.

*Vermelho https://vermelho.org.br/coluna/geraldo-vandre-um-atestado-vivo-da-ditadura/

Urariano Mota – Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”

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Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

2 Comentários

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  1. Foi um fanático e resultou no oposto do que dizia. Morte entre aspas e rápida. Lobão, de outra geração fez parecido. Quantos esquerdistas não ficaram conservadores lentamente?

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