O jardineiro, o poeta, o burro e as palavras mutantes, por Homero Fonseca

Lá nos ocos das Minas Gerais, o adjetivo “sistemático” pode ter um sentido oposto ao que dizem os dicionários.

O jardineiro, o poeta, o burro e as palavras mutantes

por Homero Fonseca

Loucuras da linguagem: as palavras são traiçoeiras. Não porque tenham vida própria, como alardeiam intelectuais chegados a uma embromação. Mas justamente porque são produto humano: falíveis, ambíguas, mutantes. Vejam o caso de sistemático. Está em todos os dicionários: relativo a um sistema; que segue um sistema; que age segundo um método; metódico, organizado.

Pois bem. Há uns tempos, em conversa com uma mineira, pedi-lhe informação sobre um jardineiro, ex-funcionário dela. “Ele é sistemático!”  –  disse ela num tom pejorativo. Para mim, sistemático era uma qualidade. Na hora deixei passar, mas a palavra (manejada com um sentido desconhecido para mim) ficou morando nas cavernas de minha memória.

Agora, fui apresentado a um grande poeta, Donizete Galvão (1955 – 2014). Também mineiro, nascido em Borda do Campo, e emigrado desde jovem para São Paulo, onde trabalhou como jornalista e publicitário, até morrer de repente aos 59 anos. Tem publicados oito livros de poemas, além de Poesia reunida. No antológico “Escoiceados” (em que ele fala de um burro comprado pelo seu pai por ninharia), me deparo com o verso:

Chegou com fama 
de sistemático, 
cheio de refugos.

Danou-se. Então, sistemático tanto podia ser atribuído a gente, quanto a bicho! Evidentemente, nesse caso o adjetivo estava longe do significado usual. Afinal, o muar desconhece a noção epistemológica de sistema ou método. Taí uma charada.

Recorro ao meu amigo Ricardo Melo, mineiro como os demais personagens citados.

– Sistemático quer dizer complicado. Pessoa difícil de se lidar.

O verso se tornou cristalino, quando fico sabendo uma acepção do verbo refugar: [“negar-se (cavalo, boi etc.) a seguir caminho.”] Ou seja, o burrinho da infância do poeta, como o jardineiro da sua conterrânea, era teimoso, birrento, cheio de cismas (refugos), temperamental e idiossincrático, ou seja, dado a uma veneta.

A palavra original, por mutação, vira quase o oposto, pois metódico é previsível, enquanto idiossincrático é imprevisível. Os dicionários desfilam sinônimos, mas não registram a exata variante mineira.

Doideira, sô.

Homero Fonseca é pernambucano, escritor e jornalista, formado pela Universidade Católica de Pernambuco. Foi editor da revista Continente Multicultural, diretor de redação da Folha de Pernambuco, editor chefe do Diario de Pernambuco e repórter do Jornal do Commercio. Foi também professor de Teoria da Comunicação e recebeu menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Atualmente, dedica-se à literatura e mantém um blog em que aborda assuntos culturais.

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