Imagem: obra de Lasar Segall
Procuro falar II, por Maíra Vasconcelos
Procuro falar que os objetos de uma casa têm abundante melancolia, assim como meu matemático pai. As lapiseiras de ponta fina do seu escritório, a mesa de madeira e a cadeira de ferro branca, todos necessitados de um redemoinho, tal como a aparição dessas palavras. A palavra pode tanto carregar como também evaporar melancolias. Procuro falar que a arte comprime coisas flutuantes e fixas em indivíduos distraídos e sérios.
Procuro falar que somente no final da vida buscamos rosas deixadas no esquecimento e enquanto isso nos atamos ao futuro com muito rigor. Como se rosas durassem para sempre. Colecionamos talheres e mesas postas gentilmente, mas que não se lembram do instante finito dos corpos. Se cada indivíduo sempre se levanta da mesa de jantar, deixa marcas nas cadeiras e cada objeto cheio de passado se empresta a outros indivíduos como se fossem desprendidos por natureza. Procuro falar que nossos corpos balouçam e são fracos, mas é o único que temos.
Procuro falar que a discriminação e o julgamento roçam a pele feminina como vento, todos os dias, porque somos mulheres ou não-mulheres erradas e irritantes. As aparências sociais salpicam meus olhos, depois intuo amar meu quarto mais que as gentes disfarçadas – atravesso descalça o amor nas ruas, enquanto alguns se preocupam em ajeitar os sapatos.
Procuro falar das amoras dançantes de Herberto Helder e seus pedidos por bocas menos rígidas, pois nem mesmo as amoras suportam a brutalidade humana. Também necessitamos todas as frutas, e elas despencam ao solo sem dó se perdemos seu tempo de busca entre as folhas verdes.
Procuro falar que armamos guerras no quintal indiferente do vizinho, abrimos campos desertos de afeto e carinho e criamos obrigações em jantares familiares. Na cama partilhada, comunicamo-nos sempre antes de dormir para se ter menos tempo a pensar. E acreditamos pensar quando apenas nos detemos a perceber o mínimo de sensatez em nós mesmos junto ao outro. E pensar é outra coisa. Procuro falar que toda comunicação é desviada quando o medo se acampa em nós.
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