Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
[email protected]

As Feridas da Civilização do Automóvel no Filme “Crash”

Ao mostrar pessoas que constroem uma estreita relação entre acidentes automobilísticos, prazer sexual e morte o  filme “Crash – Estranhos Prazeres” (Crash, 1996) do cineasta David Cronenberg torna-se perturbador não somente por explorar os limites entre a pornografia e a violência. O que há de inquietante nesse filme é a possibilidade de estarmos não apenas diante de perversões e obsessões de personagens perdidos em um submundo, mas diante do fato de que a tecnologia atual torna-se um atraente fetiche e objeto de fantasias de fusão entre metal e carne, despertando forças do inconsciente que estavam adormecidas.


Desde a Revolução Industrial e a invenção de máquinas cada vez mais poderosas e fascinantes, críticos, teóricos, artistas plásticos e cineastas têm explorado os efeitos das tecnologias. Fundador do movimento futurista, Marinetti defendia os efeitos da tecnologia: velocidade, mudança, limpeza e purificação. Os surrealistas foram rápidos em explorar as conexões entre tecnologia e desejo. Buñuel em seu escandaloso filme “Um Cão Andaluz” (Un Chien Andalou, 1929) retrata um homem sexualmente excitado pela visão de uma jovem mulher atropelada por um automóvel em alta velocidade.

Três décadas antes, Emile Zola fazia uma conexão similar no livro “A Besta Humana” onde escrevia: “Ela adorava acidentes: qualquer menção de um animal atropelado, um homem cortado em pedaços por um trem, obrigava-a a correr para o local”.

Épicos envolvendo desastres produzidos por máquinas fascinaram o cinema desde o início: “Titanic” (versões 1953 e 1997), “Inferno na Torre” (1994), Aeroporto (1970), sem falar os filmes sci fi que exploram as relações entre homem e robô (“Metrópolis”- 1927), homem e ciborgue (“Exterminador do Futuro”, 1984), carne e metal (“Tetsuo, The Iron Man”, 1989) e o amor entre homem e uma replicante (“Blade Runner”, 1982)

Baseado no livro homônimo de J.G. Ballard, o filme “Crash – Estranhos prazeres” do diretor canadense David Cronenberg vai associar-se a esse rico patrimônio, porém de uma forma radicalmente diferente ao erotizar os dois principais fundamentos da modernidade: a tecnologia e o acidente. Se o pesquisador francês Paul Virilio estiver correto, esses dois fundamentos estruturam a experiência da modernidade: “toda tecnologia que é inventada, toda nova energia que é aproveitada, todo novo produto que é fabricado, também inventa uma nova negatividade, um novo tipo de acidente” (Veja VIRILIO, Paul. “Velocidade e Informação – Cyberspace Alarm!”)

Na época em que foi lançado “Crash” foi encarado como um filme vanguardista “estranho” e “bizarro” ao explorar o limite entre o pornográfico e a violência: apertadas roupas de metal, vidros estilhaçados, volantes ensaguentados, dois sobreviventes de um acidente transando em um carro, um homem fazendo sexo excitado pelos ferimentos na perna de uma mulher vitimada por acidente automobilístico, um artista fetichista que reencena de forma realista para uma plateia o acidente de carro que matou James Dean.

Em consequência de uma batida com seu automóvel, Ballard (James Spader) conhece uma mulher que o conduzirá ao reino de pessoas fascinadas por carros, lideradas pelo artista performático obcecado por James Dean chamado Vaughan (Elias Koteas), que constrói uma estreita relação entre o objeto mecânico, o prazer e a morte. A uma certa altura do filme Vaughan anuncia que seu trabalho é “entender as transformações físicas do corpo depois da máquina” para, mais tarde, contar que isso é apenas “uma maneira de atrair e testar os novatos” para sua verdadeira causa: a libertação espiritual pela tecnologia.

Nesse estranho mix de erotismo, acidentes e espiritualidade, Cronenberg nos defronta com a natureza do desejo na era pós-moderna: o oposto do ideal romântico de beleza, verdade e integridade, mas, agora, marcado por uma espécie de “cultura do acidente”: divisão, simulação, brutalidade, obscenidade e perversidade.

Feridas na Fusão tecnológica

O filme não é tão chocante como os filmes anteriores como Videodrome (Videodrome) e “A Mosca” (1986), mas em “Crash” Cronenberg vai novamente abordar de forma mais radical um tema recorrente em sua cinematografia: a fusão da tecnologia com a carne humana, dessa vez através da ferida e erotização.

Que o automóvel é um objeto de desejo central na sociedade de consumo por causa da promoção publicitária das linhas elegantes, perfeitas, moldadas em metal reluzente prometendo uma potencial fusão com a carne humana (a famosa expressão “cabeça, tronco e quatro rodas”) isso não é novidade. O que o escritor Ballard e Cronenberg fazem é ir além através da erotização dos acidentes automobilísticos e feridas consequentes, arrancando disso a possibilidade de uma experiência espiritual (epifania?). O que os autores colocam em questão é a conexão entre tecnologia, acidentes e o fascínio do público por catástrofes e mortes.

Mark Seltzer (autor do livro “Bodies and Machines”, 1992) analisa o fascínio do público por acidentes de carros, assassinatos em série e outras formas de violência transformadas em espetáculo. É o que ele chama de “esfera pública patológica”, uma “reunião coletiva em torno do choque, trauma e ferida”. O fator-chave para a constituição dessa esfera pública seria o erotismo: a ferida e suas estranhas atrações como a encruzilhada entre a fantasia erótica privada e o espaço público.

Por exemplo, o fascínio e controvérsias pela morte da princesa Diana em um acidente automobilístico indica como a cultura está profundamente enraizada no acidente, muito mais do que em substâncias (a velha distinção aristotélica entre substância e acidente, sendo que no pós-moderno o segundo se sobrepõe ao primeiro).

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador