Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Autoajuda é negação psíquica em “The Invitation”, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

As ricas mansões das colinas de Hollywood escondem estranhas seitas e comunidades formada por celebridades, diretores e produtores da indústria do entretenimento. Em uma dessas ricas casas um grupo de amigos que não se via há dois anos é convidado para um jantar. Lá encontrarão os anfitriões: uma ex-esposa e seu novo marido, entusiastas de uma nova seita que promete “um novo recomeço”. Esse é o thriller psicológico “The Invitation” (2015) de Karyn Kusama onde as seitas de autoajuda se revelam na verdade grandes mecanismos de negação psíquica onde a linha que separa a sanidade da loucura começa a desaparecer. Os convidados daquele jantar conhecerão da pior forma possível a máxima freudiana: “o reprimido sempre retorna”.

Desde o livro clássico Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas de 1936 até livros e filmes recentes como O Segredo, um vasto aparato de técnicas, receitas e manuais de autoajuda vem cada vez mais se expandindo. Ganhar mais dinheiro, descobrir a si mesmo, superar medos e traumas, sucesso profissional, sucesso no amor etc., usar o poder da mente para se motivar, técnicas subliminares de auto-aplicação etc., são vendidas nesse grande denominador comum da autoajuda.

Desde 1936, das primitivas técnicas inspiradas nas táticas de sobrevivência das ruas, a autoajuda se sofisticou através de duas grandes ramificações: de um lado vulgarização de conceitos neurocientíficos (do poder do “pensamento positivo” até a programação neurolinguística”); e do outro o que se convencionou chamar de “New Age” – movimento espiritual buscando a fusão Oriente/Ocidente ao mesclar autoajuda, parapsicologia, esoterismo e física quântica.

“A vida não vem com um manual”, dizem os críticos dessa “literatura”. Mas ela pode criar muitos intérpretes desses “manuais”. Portanto, temos o mais perigoso subproduto da autoajuda: o surgimento de seitas ou grupos liderados por “mestres” carismáticos que vão desde os simples charlatões estelionatários até aqueles mais perigosos que vivem no limite entre sanidade e loucura.

O crítico literário Harold Bloom considerava essa a “verdadeira religião americana” – um mix de autodivinização gnóstica, mormismo, pentencostalismo e sulismo batista. Filmes como O Mestre (2012) fizeram esse mergulho na “América Profunda” ao se inspirar na história do criador da Cientologia, L. Ron Hubbard – sobre o filme clique aqui

O filme The Invitation é mais um exemplar desse mergulho no obscuro psiquismo da cultura norte-americana, dessa vez ambientado no coração a espiritualidade daquele país: as colinas de Hollywood com suas ricas residências onde residem artistas, celebridades, produtores e diretores da indústria do entretenimento. 

E na moderna Hollywood, fazer parte de cultos, seitas ou grupos de autoajuda torna-se condição para que uma pessoa crie uma consistente rede de relações que ajude a alavancar a carreira: Cientologia, The Organite Society, Founded Full Circle, OTO (Ordo Templi Orientis) ou The Kabbalah Centre são alguns desses exemplos onde a natureza de grupo de estudo, seita, autoajuda e culto se confundem.  

Enquanto o filme O Mestre fez uma abordagem mais histórica sobre o tema, The Invitation (2015) concentra-se em uma jantar onde um grupo de amigos se encontra após dois anos. Amigos que tentam reconstruir relacionamentos que se perderam devido a traumas do passado. Mas que revela o grande motor espiritual que impulsiona essas seitas e grupos: o mecanismo psíquico de negação. 

O Filme

The Inivitation é um thriller psicológico que a diretora Karyn Kusama mantém a narrativa numa lenta tensão crescente com diálogos e personagens bem realistas.

O prenúncio do que estar por vir começa logo na primeira sequência quando o carro de Will (Logan Marshall-Green), junto com a sua namorada Kira (Emayatzy Corinealdi) atropela um coiote a caminho do jantar com os antigos amigos em Hollywood. Will é obrigado a sacrificar o animal ferido com golpes de chave de roda.

Os anfitriões do reencontro são a sua ex-esposa Éden (Tammy Blanchard) e o seu novo marido David (Michiel Huisman) que recebem os convidados com uma caríssima garrafa de vinho de três dígitos. E um detalhe principal para aumentar a tensão da trama: a residência é a mesma onde Will e Éden moraram quando casados e também onde viveram o grande trauma que causou a separação: a morte do filho.

David, um produtor de Hollywood que no passado viveu sérios problemas com drogas, recebe a todos brindando um “novo recomeço”.

Mas entre os convidados há dois personagens estranhos que destoam do perfil do grupo: Sadie (uma jovem com um minivestido e sempre exibindo uma falsa alegria) e Pruitt, um homem corpulento e careca com um olhar desconfiado. David e Éden explicam para o grupo que os conheceram no México ao visitar uma seita com a qual aprenderam a lidar com seus traumas do passado. O que faz acreditar que aquele jantar é o simbolismo de um novo recomeço para a vida de todos.

O atropelamento do coiote e o reencontro com as memórias de cenas do passado naquela casa, torna Will cada vez mais introvertido. Mas a gota d’água é quando os anfitriões abrem um laptop e apresentam para todos um vídeo com uma sequência perturbadora: gravado no México, apresenta o mestre da seita reunido com todos os discípulos diante de uma mulher em seu leito de morte por câncer. Ao redor, o grupo faz um ritual de preparação espiritual daquela mulher até o momento do seu último suspiro.

O vídeo é uma evidente estratégia promocional para conquistar novos adeptos àquela seita, o que torna Will de introvertido a desconfiado e paranoico. Os anfitriões, acompanhados daquelas duas figuras estranhas ao grupo, podem ter alguma intenção sinistra.

Will passa a desconfiar das portas trancadas sem chave, das grades que foram colocadas nas janelas mas… Éden, sua ex-esposa, parece que encontrou algum tipo de paz. Está aparentemente feliz com sua nova vida. Porém, pequenas coisas nãos se conectam: telefones celulares sem sinal, telefone fixo desligado.

Mas algo parece fora do lugar em Éden: a técnica de autoajuda daquela seita de ricaços hollywoodianos parece não ter ajudado a ela superar ou resolver o trauma da perda do filho e da separação. Para Will, tudo parece ser apenas uma grande negação psíquica. Uma forma não de simbolizar e compreender (psicanálise), mas uma técnica de deletar (para a psicanálise seria nada mais do que negação e recalque) o passado, até esquecer que um dia teve um filho.

Mas como apontou Freud, o reprimido sempre retorna. E o que teme Will, é que isso retorne de alguma forma sinistra naquela noite. Mas a diretora Karyn Kusama conduzirá a dúvida de Will e do próprio espectador em fogo brando até ferver nos 15 minutos finais: quem está psiquicamente doente? Will ou Éden? Há algo de real ou tudo é resultado da paranoia de Will?

Autoajuda e o retorno do reprimido

Para o filósofo alemão e expoente da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, toda ideologia não é apenas uma mentira. Teve o seu momento de verdade. O mesmo pode-se dizer sobre a ideologia da autoajuda e seus subprodutos em seitas e comunidades.

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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