De São Paulo ao Rio (do Vai-Vai ao Salgueiro) – o samba de Zé Di, por Daniel Costa

Além dois álbuns lançados pela Tapecar, Zé lançaria dois compactos, o primeiro em 1977 pela Continental e o segundo em 1980 pela Top Tape.

De São Paulo ao Rio de Janeiro (do Vai-Vai ao Salgueiro) – o samba de Zé Di

por Daniel Costa

Entre muitas frases eternizadas no imaginário popular, uma que ainda causa polêmica é aquela atribuída ao poeta Vinícius de Moraes que teria bradado em uma boate paulistana que São Paulo seria o túmulo do samba. Muito já foi dito e contradito acerca da frase dita ou não pelo poeta e compositor, e não serei eu mais um, a colocar a mão nesse vespeiro (ao menos por hora). Trago a lembrança sobre essa frase para lembrar que desde os anos setenta, São Paulo tem sido o destino de muitos sambistas cariocas, entre aqueles que podemos citar destacam-se figuras como Silvio Modesto, Murilão da Boca do Mato, Almir Guineto, Leci Brandão, Reinaldo e até mesmo o poeta maior de Mangueira; em meados da década de 1970 o compositor Cartola se aventurou pela Pauliceia abrindo uma filial paulistana do Zicartola na Vila Formosa, zona leste da cidade.

Enquanto muitos cariocas vieram para São Paulo, poucos foram os paulistas que fizeram o caminho inverso, o pianista Osvaldo Gogliano, o Vadico, nascido no Brás tornaria parceiro de Noel Rosa nos anos trinta. Outro que se aventurou pela então capital federal foi o cantor Germano Matias que acabaria sendo um dos grandes intérpretes do compositor mangueirense Padeirinho. Por fim temos nosso personagem, que após tornar-se compositor respeitado na alvinegra do Bixiga partiu para o Rio de Janeiro, onde passaria a integrar a ala de compositores do Acadêmicos do Salgueiro, onde faria um dos mais belos sambas daquela agremiação.

José Dias, ou simplesmente Zé Di, nascido em 6 de abril de 1936 na cidade de Mogi Mirim, foi um daqueles compositores e  intérpretes que literalmente tinha a música correndo em suas veias. A infância no interior paulista deixaria marcas em sua obra, pois além do samba Zé também iria se aventurar em outros gêneros como a música sertaneja.

Sua estreia profissional ocorre em 1963 quando sua composição  “Mil desejos”, fica classificada em segundo lugar no Festival de Música Infantil, da TV Excelsior. Na mesma época compõe com Luiz Vieira “Caminhos do amor” e “Escola da vida”, esta última, gravada em 1965, por Hebe Camargo no álbum Hebe 65, lançado pela Odeon. Ainda na década de 1960, mostrando seu ecletismo Zé Di participaria do Primeiro Festival da Música Sertaneja, disputa ocorrida em 1966 e organizada pela TV Paulista.

Além dos festivais já citados o compositor participaria em 1974 da quinta edição  do famoso Festiva de Músicas de Favela com o samba “No bico”, a parceria com Astrogildo Silva pode ser ouvida no disco com as canções do evento lançado pela gravadora CID no mesmo ano. Zé ainda participaria do Festival da Agroceres, dedicado a música sertaneja em 1988 mostrando novamente a influência da infância vivida em Mogi Mirim continuava presente.

Em meio as disputas em festivais Zé Di começa a firmar seu nome no mundo do samba, sua trajetória começa no Bixiga onde passa a compor para o ainda cordão Vai-Vai, inclusive o último samba da agremiação enquanto cordão é de sua autoria. Sua maneira de compor foi essencial para o sucesso da transição do então cordão para escola de samba.

De acordo com os pesquisadores João Vitor Silveira e Leonardo Antan: “Dos primeiros sambas a contar um enredo até os anos finais como rancho, Zé Di marcou exatamente essa transição necessária. Seus versos misturavam uma pompa, necessária aos temas históricos, a uma descontração típica da alvinegra. Prova disso foi que, em 1972, no primeiro ano como escola de samba, a obra musical trazia uma citação ao clássico “parabéns a você”, em comemoração aos 150 anos da independência brasileira”.

Assim após os sucessos obtidos em 1971, quando o ainda cordão Vai-Vai desfilou com o samba-enredo “Independência ou morte”, e no ano seguinte já como escola volta a desfilar com outro samba seu, “Passeando pelo Brasil”, o compositor paulista decide ser chegada a hora de aventurar-se em terras cariocas, é aí que nosso personagem acaba desembarcando na ala de compositores do Acadêmicos do Salgueiro.

Participar de uma ala que contava com bambas como Caxinê, Anescar, Bala, César Costa Filho, Djalma Sabiá, Geraldo Babão, Gracia, Noel Rosa de Oliveira, Zuzuca entre outros, era uma vitória para o menino nascido em Mogi Mirim que já ganhara o reconhecimento enquanto compositor na alvinegra do Bixiga. Porém, algo ainda estava reservado para Zé, no ano seguinte à sua entrada na agremiação Tijuca o compositor venceria a disputa de sambas enredo e deixaria seu nome na história da escola e do carnaval carioca com um dos mais belos sambas já apresentado e ainda garantindo mais um título para a agremiação.

Segundo o professor e escritor Luiz Ricardo Leitão, o enredo “O Rei de França na Ilha da Assombração”, representava: “um verdadeiro delírio, uma espécie de encontro crepuscular entre a realidade e a imaginação. O enredo buscava recriar as fantasias que Luís XIII de França acalentava sobre a Ilha de São Luís do Maranhão. Com apenas oito anos, o jovem monarca ocupava-se em imaginar como seria o universo da corte nesse intrigante cenário”.

Quem também relembra da viagem onírica proporcionada pelo carnavalesco Joãozinho Trinta e pelos compositores Zé Di e Malandro é o também salgueirense Haroldo Costa, segundo o pesquisador, após uma renhida disputa de samba que culminaria na vitória da parceria de Zé Di: “Quando o Salgueiro começou a despontar na Avenida Antônio Carlos na madrugada de segunda-feira de carnaval, todo mundo percebeu que algo novo iria acontecer. Todos os detalhes estavam cuidados ao máximo. Viriato Ferreira, num lindo peixe de acrílico, vinha puxando o barco do Rei de França. Margeando todo o desfile, vinham palmeiras brilhantes transformadas em candelabros; a carruagem de Nhá Jança era uma beleza de concepção; as fantasias estavam irrepreensíveis; Isabel Valença, de Rainha, estava soberba; podiam-se notar criações fantásticas, onde a invenção era mais poderosa que o luxo. O touro negro coroado, simples, inteiro, sólido, sem nenhum excesso, era uma alegoria que emocionava”.

O ano de 1974 seria especial para o compositor, além da conquista do título no Salgueiro, “Rei de França na Ilha da Assombração” seria gravada pela cantora Alaíde Costa em compacto lançado pela Odeon, o cantor Jair Rodrigues lançaria o samba no álbum “Dez anos depois” produzido pela Philips. No mesmo ano a cantora Elza Soares grava “Xamego de crioula” pela Tapecar, na mesma gravadora Zé lança seu primeiro álbum solo, em “Zé Di… Samba”, no qual estavam as faixas “Independência ou morte”, “Salgueiro chorão”, a curiosa “De como um homem deixou de fazer música e foi vender pipoca” e a exaltação “Quando meu Salgueiro desce”, composta por Jair Bala.

No ano seguinte gravaria pela Tapecar seu segundo LP que leva apenas seu nome como título, onde além de composições próprias interpretava compositores como Norival Reis, Vicente Mattos e Luiz Grande. Em 1978 apresentaria com Nelson Cavaquinho o show “Brasileiríssimo”. Já no ano seguinte, em parceria com o amigo e parceiro de início de carreira Luiz Vieira, fez show no Copacabana Palace, o espetáculo foi sucesso de público e crítica.

Em meados de 1979, a diretoria do Salgueiro anunciou, para o carnaval de 1980, um enredo sobre Lamartine Babo. No entanto, uma crise financeira e uma crise de gestão fizeram com que a escola modificasse o tema e substituísse o carnavalesco poucos meses antes do desfile. Diante de tais mudanças, a ala de compositores foi convocada para fazer o samba que iria ser a trilha sonora para o novo enredo: “O bailar dos ventos, relampejou, mas não choveu”.

Segundo Haroldo Costa: “Comprovando a tese de que o componente do Salgueiro é certamente o mais disciplinado e o que mais prestigia o seu carnavalesco, a escola inteira atirou-se confiante no novo enredo. Dois sambas chegaram à final, demonstrando a potencialidade criadora da ala dos compositores, o primeiro era assinado por Zé Di, Zuzuca e Edinho, e o outro por Haydée Blandina, Zequinha, Omildo Neves, Moacir Arantes e Pompeu. Na dúvida da escolha, o carnavalesco Ney Ayan escolheu o caminho mais simples: juntou os dois num só, o que, pelo menos, resultou no samba enredo com maior número de autores na história das escolas de samba até aquele momento”. Mesmo com toda dificuldade a escola ainda ficaria com a terceira colocação.

Dois anos depois, Zé Di concorreria novamente no Salgueiro, desta vez o tema escolhido foi: “No reino do faz-de-conta” e novamente seu samba foi o escolhido, agora em parceria com César Veneno. Imersa em disputas internas e passando por dificuldades financeiras a escola do morro localizado na Tijuca apostou no canto e no poder de sua comunidade, infelizmente apesar do belo samba a alvirrubra tijucana ficaria apenas com a oitava colocação na disputa daquele ano.

Além dois álbuns lançados pela Tapecar, Zé lançaria dois compactos, o primeiro em 1977 pela Continental e o segundo em 1980 pela Top Tape. Gravaria ainda de forma independente o álbum intitulado “Obrigado”, lançado em 1991 o disco teve como destaque as faixas: “No verão que vem” e “Fui”, parceria com Alfredo e Chicão, compositor do Vai-Vai.

Cabe ainda destacar sua participação nos discos: “Convocação Geral – Carnaval 75”, o álbum lançado em 1975 pela gravadora Som Livre foi uma tentativa das Organizações Globo de reavivar as marchinhas carnavalescas, que perdiam ano a ano terreno para os sambas enredos. Ao lado de nomes como Elza Soares, Zuzuca, Djalma Dias, Oswaldo Nunes, Jorge Goulart e Emilinha Borba, nosso personagem interpretou a autoral “Pierrot”. Outro álbum coletivo que contou com a participação de Zé Di e hoje é considerado uma raridade é o disco: “Brasil 150 anos de independência – O samba pede passagem”, lançado em 1972 pela Tapecar, o álbum apresenta faixas de Zeca da Casa Verde, Silvio Modesto e Jangada, Paulistinha, Geraldo Filme e Ideval Anselmo. No disco, Zé é responsável pela interpretação de “Parabéns a você (Passeando pelo Brasil o samba mostra o que é teu) samba defendido pelo Vai-Vai no carnaval daquele ano.

Zé Di foi um daqueles sambistas que de fato tinha uma escola de coração, ao contrário dos compositores que hoje constituem até os tenebrosos escritórios para concorrer com sambas em várias agremiações, nosso personagem forjou sua identidade no Vai-Vai e fincou raízes no Salgueiro. Ao falecer no dia 21 de fevereiro de 2022 pouco se falou do velho compositor que partia para Aruanda aos 86 anos, porém seu legado foi exaltado pelas duas escolas em que disputou e emplacou sambas ao longo de sua trajetória. E para o sambista de verdade essa é uma de suas grandes glórias. Ser reconhecido hoje é sempre por seus pares.

Daniel Costa é historiador, pesquisador, compositor e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga.

Redação

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