Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Em “Cavaleiro de Copas” a bebida do esquecimento que enche nossos copos, por Wilson Ferreira

Por Wilson Ferreira

Livremente inspirado no Tarot e num poema gnóstico cristão do século II chamado “Hino da Pérola”, o filme “Cavaleiro de Copas” (2015) mostra como a crise criativa de um roteirista de Hollywood pode ser o início de uma reflexão sobre o vazio existencial do sucesso material. O protagonista Rick (Christian Bale) vaga por uma Los Angeles e Las Vegas como um estrangeiro em um deserto e percebe como a indústria do entretenimento levanta espelhos e cenografias que não nos deixa ver o que está por trás: horizontes e pontos de fuga. Tal como nos fala os versos do “Hino da Pérola”, é a bebida que enche o nosso copo diário de esquecimento. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

Enviado pelo seu pai, o Rei do Leste, um cavaleiro foi ao Egito encontrar uma pérola. Uma pérola das profundezas do Oceano. Mas quando lá chegou, o povo serviu-lhe um copo com uma bebida que lhe tirou a memória: esqueceu que era filho do Rei. Esqueceu também da pérola e caiu em um sono profundo.

Mas o Rei não esqueceu do seu filho. Continuou a enviar sinais, mensageiros, guias para tentar lembrá-lo. Mas o príncipe continuou dormindo.

Esse é um resumo do poema gnóstico cristão chamado “O Hino da Pérola”, escrito no século II D.C. Ao lado da Alegoria da Caverna de Platão, a imagem criada por esse poema sobre condição humana como um exilado sem memória da sua terra natal e perdido em um cosmos estrangeiro é um dos mitos mais fortes do Gnosticismo.

O filme Cavaleiro de Copas inicia com uma narração em off do resumo desse “Hino da Pérola” para apresentar o vazio existencial de Rick (Christian Bale), um financeiramente bem sucedido roteirista hollywoodiano.  Inspirado também no livro Pilgrim’s Progress from This World to That Which is to Come de 1678, narra a “jornada perigosa” de Rick na tentativa de juntar os fragmentos da sua vida e tentar responder uma pergunta: onde foi que eu errei?

O diretor Terrence Malick nos mostra a ausência de sentido por trás de sucesso material, festas, amigos e linda mulheres na vida de um profissional da indústria do entretenimento.

Mas o filme, com uma linguagem bem experimental (repetidos zoom in e deslocamentos dos planos em stad cam, além da montagem  solta e fragmentada que chega a cansar o espectador em muitos momentos), pretende fazer uma reflexão metafísica e tornar o drama de Rick como o próprio drama da condição humana – a jornada humana pelos “desertos do mundo” como fosse um exilado que tenta juntar os pedaços para achar uma saída.

Malick consegue transformar  lindos cartões postais californianos como praias, por de Sol, o skyline de Los Angeles etc. em desolados desertos através dos quais o protagonista Rick vaga como fosse um estrangeiro em um deserto.

Rick cruza os desertos urbanos e geográficos nas feéricas Las Vegas e Los Angeles como o caçador da pérola de que fala o poema gnóstico do século II. E a pérola é a busca da memória perdida do porquê a humanidade se encontra perdida nesse planeta.

Se no filme Número 9 esse tema AstroGnóstico (o homem como uma criatura celeste prisioneira na Terra) é sugerido, em Cavaleiro de Copas é explícito ao fazer referência direta ao Hino da Pérola e comparar a jornada humana como a do peregrino em busca da Cidade Celestial.

O Filme

O título do filme refere-se a carta de Tarot que descreve um romântico cavaleiro governado pelas emoções ao invés da lógica. É sobre um profissional da indústria do cinema bem sucedido (pode ser um roteirista, mas no filme há evidências de ser um diretor) com algum tipo de bloqueio criativo. 

Ele vagueia em torno de Los Angeles, praias e o deserto de Las Vegas para ter encontros fugazes com muitas mulheres (todas invulgarmente belas), homens (seu pai, o irmão e uma dupla de agentes) para tentar remendar os fragmentos da sua vida. E responder a uma simples pergunta: “onde foi que eu errei?”.

Os encontros aleatórios parecem ser organizados em capítulos indicados por uma carta de Tarot que representa o personagem-chave que marcará a sua jornada: A Lua (Della, a jovem rebelde; O Enforcado (seu irmão e seu pai); O Eremita: Tonio (Antonio Banderas), um playboy amoral; O Julgamento: sua ex-esposa Nancy (Cate Blanchett); A Torre: Helen, a modelo serena; A Alta Sacerdotisa: Karen, a stripper; A Morte: Elizabeth (Natalie Portman), a mulher injustiçada do passado.

Malick faz um paralelo entre as cartas do Tarot e a viagem interior do protagonista, lembrando bastante a abordagem que o psicanalista Carl Gustav Jung fazia do Tarot: as cartas representam cada um dos arquétipos humanos que compõem a nossa personalidade. Todos eles estão em nosso psiquismo, sendo que um ou uma constelação de arquétipos passam a determinar a matriz da nossa personalidade.

A bebida do esquecimento

Mas Cavaleiro de Copas não é apenas uma jornada lírica interior: o protagonista Rick está no coração da cidade que produz a bebida que é posta no copo que bebemos para perdermos a memória, como nos conta os versos do Hino da Pérola – Hollywood, a indústria do Entretenimento e a sua faceta mais bizarra: Las Vegas.

No filme é como se o homem levantasse espelhos diante de si mesmo, criando narcisismo e esquecimento do que o homem já foi. Rick vagueia por sets de filmagens, cidades cenográficas e o seu paroxismo: Las Vegas, a cenografia da cenografia da cenografia… Para Malick essa é a fonte de todo esquecimento: cenografias e espelhos que escondem o que há por trás e os possíveis caminhos que o levariam a busca final.

Apesar dos encontros de Rick parecerem ora aleatórios, ora repetitivos, Malick dá um sentido à narrativa – o tempo inteiro procura contrastar as imagens frias e duras do ambiente urbano e as ricas paisagens naturais de beleza intocada. 

A ideia que une tudo é a mitologia do Deserto: a cidade e seus interiores são mostrados tão áridos e vazios como as praias e regiões desérticas fora de Los Angeles. O deserto é a jornada do peregrino em busca da Cidade Celestial. Mas os espelhos e cenografias escondem esse horizontes e pontos de fuga: são apenas imagens e cenografias, a bebida do copo que bebemos todos os dias para esquecermos.

A ironia do filme é que o protagonista Rick é também um dos produtores dessa bebida: seu bloqueio criativo, seu mal estar e tédio são os sintomas que tentam alertá-lo de que há algo errado com esse mundo.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

2 Comentários

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  1. Minha meditação preferida é

    Minha meditação preferida é ficar olhando para o mar.

    Aos poucos vou me deixando tomar pelo vai e vem das ondas, pelo som que elas causam. Isso vai me trazendo para o aqui e agora. Consigo observar a mente tagarela e me solicita e me consume tanta energia.

    Porque as ondas não tem um padrão, nunca tem uma onda igual a outra, enquanto a mente sempre procura se fixar em padrões, buscar referências no tempo e no espaço, confirmar suas memórias.

    No aqui e agora consigo ver o mundo sem o filtro da mente, consigo ter uma percepção da minha presença, ou melhor da presença. Quem sou eu não pode ser uma definição lógica , uma resposta, um contexto, mas um processo existencial.

    O filme deve ser interessante. Mostra o processo de distração a que a gente é submetido desde sempre. A bebida do esquecimento.

    O trailer termina com a frase: preciso me lembrar. Muito sugesrtivo.

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