Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Filme “O Clã” mostra a transparência do Mal, por Wilson Ferreira

Por Wilson Ferreira

Sob a fachada de uma respeitada família de um burocrata do governo aposentado e uma professora primária em um dos bairros mais ricos de Buenos Aires, estava um terrível segredo: no porão daquela casa escondiam-se vítimas de sequestros, friamente assassinados após o pagamento de cada resgate milionário. Baseado em caso real, o filme argentino “O Clã” de Pablo Trapero retrata um tipo bem especial de maldade, bem diferente da hollywoodiana e próxima da “transparência do Mal” retratada na literatura por Marquês de Sade e no cinema por Pasolini – não mais a maldade como um ente que desvirtua e corrompe, mas o Mal originado da própria racionalidade e da virtude: por trás de uma grande fortuna, esconde-se sempre um grande crime.

Uma família prepara-se para o jantar em uma casa em San Isidro, um dos bairros mais ricos de Buenos Aires. O pai reza com a família antes de iniciar a refeição. À mesa, estão as filhas adolescentes que nasceram em berço de ouro. A mãe, uma pacata professora. E o filho primogênito é um bem sucedido atleta de rúgbi, presente em capas de revistas esportivas nacionais e estrela da seleção argentina.

A perfeita imagem de uma família estável, religiosa e bem sucedida. Se não estivéssemos em 1982, em plena época da conturbada transição da ditadura para a democracia. O patriarca é um ex-agente do serviço de inteligência da ditadura militar argentina (1976-1983) que aproveita da experiência e contados adquiridos nas sombras do poder para ter benefícios e proteção.

E no porão da casa, um segredo que iria abalar a opinião pública da Argentina: sob o olhar frio do chefe da família (Arquimedes Puccio) e a cumplicidade da mulher (Epifania Puccio) e dos filhos, são escondidos empresários e seus familiares sequestrados em troca de resgates milionários. E todos jamais são devolvidos – feito o pagamento eram depois friamente assassinados.

Baseado em um caso real que impactou a Argentina, o cineasta Pablo Trapero (Abutres, 2010 e Elefante Branco, 2012) resolveu aceitar o desafio de revolver esse tema tabu da história recente do país com o filme O Clã. Os mais jovens não conhecem o caso Puccio. Desde o episódio, nenhum livro ou algo que contasse a história foi publicado no país. Trapero teve que conversar com juízes, familiares, vizinhos para levantar pistas sobre o que acontecia dentro da casa e traçar o perfil de cada membro da família.

Ao trabalho genial de câmera e edição de Trapeiro (a narrativa não linear, flash backs, montagens paralelas e os passeios da câmera no interior da casa dos Puccio vão compondo a atmosfera de uma estranha combinação de harmonia e tensão) associa-se a assombrosa transformação do ator Guillermo Francella – conhecido por papeis humorísticos como na série de TV El Hombre De Tu Vida, em O Clã o ator incorpora, inclusive fisicamente, a frieza e o cinismo assustador do personagem, sem dar um sorriso sequer em todo o filme.

Esqueça o Mal hollywoodiano

Não há como assistir ao filme O Clã sem deixar de lembrar da emblemática frase de Honoré de Balzac: “Por trás de toda grande fortuna esconde-se um crime”. Por trás de todo mérito podem estar escondidos impunidade, acobertamento e proteção que perpetuam golpes. 

Por trás do mérito pode esconder-se o Mal. Como imaginar que no interior de uma casa do bairro da burguesia de Buenos Aires morava a família mais violenta de criminosos da história da Argentina? 

Esqueça os vilões psicóticos enlouquecidos ou caipiras selvagens de filmes hollywoodianos como O Massacre da Serra Elétrica. Em O Clã o Mal é de outra natureza, é a própria transparência do Mal: frio, calculista, metódico, quase científico, sob a aparência de normalidade familiar acima de qualquer suspeita. Uma aparência também metodicamente planejada por toda a vida do patriarca Arquimedes Puccio.

Com o filme O Clã o cineasta Pablo Trapero entra numa área cinza e sinistra que é o próprio underground do Iluminismo, discutido desde a obra de Marques de Sade até chegarmos aos filmes de Pasolini, em especial Saló ou Os 120 Dias de Sodoma – o Mal transparente, aquilo que não pode ser explicado porque originado da própria Razão e dos seus instrumentos que deveriam impedir a maldade de existir – sobre o filme Saló, clique aqui.

O Filme

Arquimedes Puccio aproveita-se das suas antigas ligações com a ditadura militar para garantir o acobertamento de todos os seus sequestros. Debaixo de uma chancela de normalidade era ajudado pela esposa e dois dos cinco filhos o ajudavam diretamente nos planos e ações de sequestro.

Alejandro Puccio, o primogênito, é o mais atormentado em ajudar os planos do pai. Vive entre a vida material confortável e atleta bem sucedido de rúgbi e a culpa em ser obrigado a entregar conhecidos seus da alta sociedade de San Isidro ao pai para serem sequestrados e, posteriormente, assassinados.

Tantos sequestros e mortes são escondidos pelos amigos do alto escalão militar. Caso transformem-se em algum escândalo na opinião pública, colocava-se a culpa em grupos terroristas de esquerda. Mas nos anos 1980 a ditadura militar está no ocaso e os amigos militares de Puccio estão perdendo as posições de maior poder no Estado.

Puccio acredita que tudo é apenas uma fase e logo os militares voltarão ao poder. Por isso, ele continua os seus planos macabros, alheio às rápidas mudanças do cenário político argentino.

A transparência do Mal

Com O Clã Pablo Trapeiro não apenas revirou uma história que os argentinos parecem querer esquecer –  assim como por trás de toda fortuna esconde-se um crime, por trás de todo poder esconde-se o genocídio. Seja no Estado ditador ou na sua face mais liberal, o poder é exercido através da violência, da frieza e da indiferença criado pelo sistema conceitual da Razão política ou econômica.

Tanto Marquês de Sade na literatura como Pasolini no cinema pressentiram essa transparência da maldade: o Mal não é algo diabólico que surge do além e corrompe um sistema racional. O Mal já está inscrito tanto na Razão como na Natureza pelo seu caráter reversível – a paz produz a guerra, o remédio a doença, e a virtude a corrupção – leia o conceito de “reversibilidade do Mal” do filósofo francês Jean Baudrillard – clique aqui.

No filme, Arquimedes Puccio apresenta um álibi para perpetrar todos os crimes: para ele, todos os ricaços que rouba e mata são desgraçados responsáveis pela crise político e econômica argentina. Mas isso é apenas uma racionalização que esconde a própria essência do Mal – Puccio transformou-se numa máquina fria e calculista de punições. O sistema repressivo militar acabou, mas ele deve continuar castigando. Para Puccio este é o preço para manter a normalidade das instituições: o Estado, a tradição, a família.

O Mal não é a antítese da Razão: é a sua reversibilidade natural. Para Puccio, assim como para o próprio sistema como pressentiu Balzac, o conforto material, a fé na religião, o sucesso do filho atleta e a paz no lar somente podem ser construídos através de uma violência subterrânea. Se poucos ganham, a maioria deve perder.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

5 Comentários

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  1. Imagino que muitos casos

    Imagino que muitos casos semelhantes devem ter acontecido aqui no Brasil. Muitas famílias “de bem” devem ter se aproveitado da impunidade dos ditadores. 

  2. O filme é excelente.

    Mas o comentário nada tem a ver com o filme. A frase de Balzac é cretina, porque baseada na falsa idéia de que toda propriedade é um roubo. Ora, se por trás de grandes fortunas há sempre um roubo, como diz o francês (e como o articulista, obviamente, pensa), certamente por trás de pequenas riquezas há pequenos delitos. Fica fácil creditar o sucesso dos outros (e dminiuir a própria incompetência) a roubo, a delinquência. Uma lógica perversa essa, até porque em nome dela pode-se perdoar o roubo, desde que este seja realizado em nome de alguma causa nobre. Não é. Roubo é sempre roubo, não importa em nome do que é feito. Os fins condicionam os meios, não os justificam.

    Tratar o filme pela ótica da política apenas é emprobrecer o filme. Dizer que a família ajuda o patriarca é não enxergar a violência psicológica, que aquele pai de família exercia sobre os seus. Essa família era coagida violentamente pelo patriarca. Há tensão palpável em todas as cenas familiares. Não acho que estejamos falando da banalidade do mal, como no caso de um Eichmann, mas de uma família também sequestrada por um demente. É algo totalmente diferente, mas só perceptível quando se tiram as lentes da política da frente. A questão política é a menor parte desse excelente filme.

  3. Também existe a série de TV

    Também existe a série de TV El Clan. Mesma história, também argentina,com a Cecília Roth, também bastante elogiada.

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