Sobre imigrantes, racismo no Brasil e nacionalismo

Comentário ao post “Sobre os estereótipos de negros e imigrantes

Nacionalismo é uma construção tão ou mais manipulada cotidianamente quanto o racismo. O fato de que quase todo mundo está acostumado ao “nacionalismo” não o torna mais lógico. E seu uso mais comum não é exatamente bom: fazer pessoas se agruparem em torno de um objetivo que não seria delas, que é atacar outros grupos/povos.

O básico para a evolução futura da humanidade é perceber que tudo que se articulou em torno de etnias, povos, nações, estados, raças, religiões, ideologias são construções sociais e históricas, nada é natural. E o que não é natural pode ser mudado por vontade social e racional.

Etnias, nacionalidades, etc são modos de agrupar pessoas e interesses que, ainda que artificiais, podem ser reconhecidos (para sua compreensão) por refletirem construções presentes no imaginário das pessoas. E o que as pessoas acreditam se torna uma construção quase real até que acreditem em outra coisa.

Pessoas são levadas a constituírem grupos e a reproduzirem valores. E grupos podem se formar sobrepondo-se quase indefinidamente. E não é raro uma pessoa sentir-se pertencente a grupos conflitantes entre si.

Vejamos o que ocorre com imigrantes no Brasil pertencentes a nacionalidades: italianos à parte, o Brasil, ao longo do século XX, recebeu mais imigrantes da Espanha que do Líbano ou Japão. No entanto não há uma comunidade “visível” de descendentes de espanhóis como há de outras nacionalidades. Algumas nacionalidades se perpetuam mais que outras dentro de uma nacionalidade-destino (como a brasileira ou estadunidense.) Pode ser uma busca de manter zonas de conforto, como religião, língua, alimentação, atividades econômicas, cultura enfim, um nacionalismo subnacional.  Ao longo das décadas alguns grupos de descendentes estabeleceram “colônias” (bairros, clubes, escolas, hospitais, atividades de ajuda mútua) outros não. Isso é o que determinou a visibilidade maior ou menor dentro da nacionalidade maior (a “brasileira”.)

Mas, considerando que no geral todas as comunidades de imigrantes no Brasil aceitaram a submissão incondicional à legislação e costumes brasileiros a relevância final é pequena  (sendo relativamente muito reduzida a presença do fenômeno de “máfias étnicas” e quase nenhuma a discriminação religiosa além da, anteriormente e infelizmente, já dedicada a cultos afro-brasileiros.) Filhos até aprendem a língua dos pais, mas netos raramente.

No entanto, parte dessa aculturação geral ao Brasil envolveu um traço já presente, tanto no nosso país como em vários dos países de origem da imigração : o racismo dirigido a afrodescendentes.  

Isto é (respondendo à questão de Douglas): no Brasil, árabes, judeus e orientais (os que miscigenaram relativamente menos com “brasileiros”) identificam-se claramente, quando necessário, com “brancos ibéricos” ou “eurodescendentes”. Se os extremos étnicos resultaram assim, os grupos de origem europeia (alemães, italianos, gregos) obviamente também. Ficando afrodescendentes e ameríndios em geral (o que inclui grupos recentes de imigrantes da América do Sul) como o outro “grande grupo”.

Em resumo temos: uma cultura nacional brasileira relativamente muito pouco xenófoba (quase xenômana, vide o “complexo de viralata”), a visível integração sócio-econômica no Brasil das nacionalidades que imigraram de fim do século XIX até +/- 1965; a resiliência – que se enfraquece com o tempo e não requer maiores cuidados – de grupos subnacionais; a manutenção de uma estrutura fundamentalmente racista apesar disso tudo.

E tal estrutura racista se confunde com a discriminação por classes sociais, o que torna difícil sua superação.

Percebermos fatos ou coincidências não requer atribuir-lhes importância excessiva. Haver anarquistas entre os imigrantes espanhóis e italianos; simpatizantes de autoritarismo ou de “éticas protestantes” entre outros imigrantes terminou por não se demonstrar relevante. O que se tornou fator determinante: a) ao contrário de ex-colônias inglesas (como EUA, Canadá e Austrália) a imigração nunca representou um percentual expressivo. Nesses países a mão-de-obra imigrante é até hoje 15 a 25%, no Brasil não chega a 1%, tendo um “pico” entre 3 e 5% nos anos 1910/1920 que só se tornou percebido pela concentração em SP e estados do sul. Com exceção de Uruguai e Argentina, que por um momento quase se tornaram bilíngues (de tantos italianos) foi assim na América Latina em geral; b) os imigrantes (como na A. Latina), não importa sua religião ou preferência política, detinham nível médio de instrução maior que o da classe social de pobres no Brasil. Quer dizer: entraram diretamente para a classe média baixa brasileira, de forma conveniente para os estratos sociais já existentes dessa classe ou acima, desalojando e aprofundando a divisão social e inclusive racial do país.

Não deve ter sido intencional, mas nas primeiras décadas da república a presença de negros e mulatos nas posições de mando do Brasil, quer seja na Academia ou na Política foi maior do que nunca depois. Ainda que não decisivamente, a integração rápida de imigrantes de Europa e Ásia, sempre de países com escolaridade média maior que a brasileira, parece ter levado a um atraso na ascensão sócio-econômica de grupos brasileiros, quer sejam descendentes de ex-escravos quer os já discriminados socialmente, como sertanejos e caboclos.

Resumindo esta parte: haver nazifascistas entre imigrantes na Am. Latina é fato histórico, como japoneses e judeus demorarem para fazer casamentos com componentes de outras etnias, mas não é materialmente relevante para a compreensão do Brasil, de sua opção por uma sociedade concentradora de renda e de seu racismo.

Teorias biológicas e antropológicas, intencionalmente ou não, foram construídas ao longo dos últimos dois séculos e muitas vezes resultaram na manutenção de preconceitos a um ponto que até os grupos objeto de discriminação os incorporam.

Temos que há homossexuais que se acreditam merecedores de menos direitos, de tanto que ouviram isso, até há um grupo expressivo que acredita que a homofobia não precisa ser combatida. Ou seja, existe a homofobia internalizada.

A popularidade atual das teorias que atribuem “naturalidade” às divisões sociais de papéis de gênero (o que é masculino, o que é feminino) é especialmente impressionante, mas isso merece outra discussão.

E, do mesmo modo, não deveria causar estranheza o racismo internalizado. É um componente provavelmente menos significativo no Brasil de hoje que o racismo convencional propriamente dito (o que faz gerentes de lojas preferirem vendedores brancos ou famílias preferirem babás brancas, quando a opção é possível) e o preconceito de classe profundamente disseminado (que restringe acesso a pessoas que morem aqui ou ali, que se vistam de um modo ou outro, que estudaram lá ou cá.)

Sutil ou não, ainda existe. O que leva seguranças de shoppings, clubes ou estacionamentos a verem de modo diferente as pessoas? Por que negros dirigindo carros de luxo chamam atenção e brancos vestidos displicentemente não? Por que uma certa “atenção” a algo que deveria ser irrelevante, como barbas e cabelos? Por que não é incomum que negros se declarem “pardos” ou pardos como “brancos” em pesquisas do Censo?

Se existe hoje, pode ter existido mais. Alguma desmobilização na busca de escolaridade ou habilitação profissional pode ter ocorrido. E, se alguém argumentar sobre cotas raciais em universidades ou propagandas como modo de contrabalançar isso, eu tendo a aceitar a pertinência. E, por outro lado, quando surge a “teoria Seleções”, de que heróis ou abnegados que conseguem superar barreiras deveriam “servir de exemplo”, descarto por irrelevância.

Douglas lembra: “Um disse aqui que o problema é de (falta de) vontade, ou seja, negros não se fazem representar por uma anomalia ou apatia de vontade, e não por razões concretas e objetivas de exclusão.” Isso representa apenas mais uma teoria, propositadamente ou não racista, pois os preconceitos internalizados são razão concreta e objetiva de exclusão.

Que há racismo no Brasil – e que é grave – é algo absolutamente inconteste. Pesquisa FAPESP/Perseu Abramo de 2003 aponta para 87% de pessoas que, no total, notam o racismo de brancos em relação a negros, mais chocante que isso é 4% dos brancos se autorreconhecerem como racistas e 74% apresentarem algum grau de preconceito racial velado. A isto junta-se o flagrante quadro de diferença em acesso na educação e no trabalho.

Felizmente, de uns 25 anos para cá, notam-se cada vez menos teorizações em torno de fantasias como as do “Brasil cordial e não-racista”. A resistência a lidar com o fato é substancialmente menor do que nunca, mas ainda não havendo concordância geral em relação ao “como”.

A maior dificuldade é separar o que é preconceito de classe do que é racismo. As posições “o Brasil não é racista” e “o racismo se autorresolve com o tempo” já são tão minoritárias que não é mais necessário discuti-las. Quaisquer teorias que busquem alguma suposta naturalidade para a divisão sócio-racial do Brasil são imediatamente desqualificadas como racistas e é bom e racional que assim sejam.

Ficamos com duas correntes maiores agora: a) “o racismo no Brasil deve ser combatido através de políticas sociais” (que é decorrência da constatação de que há uma grande correlação entre cor e renda declarada em censos) e b)  “a redução do racismo pode ser acelerada com o complemento de políticas explícitas de integração racial”, que subentendem o reconhecimento de um grupo ser discriminado não apenas por sua classe sócio-econômica, mas também pelo preconceito difuso em relação a construções sócio-culturais, como raça e cor.

É claro que a) está contido em b), pois não há quem busque integração racial que descarte a integração social.

Assim, podemos finalmente focar a questão. Abandonando como simples demonstrações renitentes todas as teorias e fantasias, intencionalmente ou não, racistas; estando claro que a sociedade brasileira é racista, por vezes até internalizadamente racista, no inconsciente coletivo de grupos; sabendo que políticas sociais inclusivas (como cotas sociais e programas de transferência de renda) ajudam a reduzir o racismo.

Sabemos que o ideal imaginário de todas as pessoas com boa vontade é que não existisse o racismo. Quase ninguém deseja que as coisas sejam como são. O que leva a contradições cotidianas: as pessoas não-racistas, que são a grande maioria, podem subconscientemente relutar em perceber a extensão maior do problema racial, pois fazer isso significaria se perceberem como omissas, o que afeta sua própria zona de conforto.

Mas fiquemos apenas com a questão: cotas raciais devem ou não ser utilizadas? Tudo o mais é periférico, apenas isto é ainda relevante discutir.

E há algo subjacente que não deve ser menosprezado. Cotas raciais referem-se a uma demanda de grupo. Como em tantas outras questões, há sempre uma inércia inicial em aceitar sua pertinência, não sendo raras as tentativas de desqualificar a mudança, então temos que avaliar se a resistência em se iniciar ou testar algo é mesmo racional ou apenas um medo. A memória da história demonstra o seguinte: quase sempre os grupos que fazem demandas percebem a resistência e demandam menos do que poderia ser considerado justo.

Na discussão atual brasileira o que temos? A maioria das organizações sociais ligadas a questões raciais ou Movimento Negro aceita bem a ideia das cotas raciais em faculdades. A unanimidade de juízes do STF aceita sua constitucionalidade. Nem o executivo nem o legislativo resistem à tese, tanto que a lei do Estatuto da Igualdade Racial (que prevê cotas, inclusão e o autorreconhecimento das pessoas como negros e pardos), de 2010, passou sem maiores questionamentos por ambos poderes, assim como a Lei das Cotas nas Universidades, em 2012.

Na verdade nem um dos setores mais resistentes a mudanças sociais, a imprensa, têm dedicado maior atenção ao assunto. No momento da aprovação da constitucionalidade das cotas raciais (resultado da ADI apresentada pelo DEM) houve grande presença de crônicas e matérias favoráveis às mesmas – e quase nada, ou nada, contra.

Também não passam despercebidos os relatos de sucesso nas universidades que as implantaram há mais tempo, desde 2002.

A lei das cotas raciais nas universidades públicas federais traz algo interessante, que é seu caráter experimental: o processo e seus resultados deverão ser reavaliados em 10 anos após o prazo para a implementação, que é de 2016.

Assim, não somente é claro para a maior parte da sociedade que o conceito de cotas raciais aparenta trazer mais benefícios que riscos, como também está contemplada a revisão do próprio conceito.

O único risco apresentado por seus opositores é o racialismo, o receio de que haveria uma legalização do racismo, um surgimento de discriminação em relação a ingressantes por cotas raciais nas diferentes faculdades. Isso é um receio racional ou apenas um temor?

Não há prova cabal, e em ciências sociais quase nunca há mesmo quando se prevêm mudanças, capaz de comprovar que o instituto das cotas raciais será bem sucedido em sua missão de acelerar a redução das diferenças sócio-econômicas por raças (entendidas como as sócio-culturalmente construídas.)

Mas também não há prova cabal em relação aos seus riscos.

Para haver a experimentação social é necessária a conjunção de demandas sociais de grupos e a concordância dos estamentos que representam a maioria. Ambas as condições estão presentes no Brasil atual.

Então, parece ser o caso de fazermos o melhor para que a experiência seja bem sucedida, sem dedicar tanta energia a resistir.

Luis Nassif

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