Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Avião usado no “voo da morte” retorna à Argentina e ficará exposto no museu de memória da ditadura

“Destino Final”, trabalho fotográfico-investigativo em exposição em Buenos Aires, colaborou para a condenação perpétua de dois pilotos

Skyvan PA-51 usado no “voo da morte” de 14 de dezembro de 1977

Avião usado no “voo da morte” retorna à Argentina e ficará exposto na ex-ESMA, museu de memória da ditadura

por Maíra Vasconcelos, especial para o Jornal GGN

No Mundial de 1978, Giancarlo Ceraudo, fotógrafo italiano, era um menino de oito anos. Vidrado na televisão, e com a permissão de seu pai, de madrugada assistia aos jogos que jamais esqueceria. Neste Mundial, a seleção argentina, campeã pela primeira vez, perdeu um único jogo e foi contra a Itália. A jornalista, ex-desaparecida e sobrevivente argentina Miriam Lewin, nesta Copa, estava no centro de detenção, tortura e extermínio, ex-ESMA (Escola de Mecânica da Armada), presa e considerada desaparecida. Do centro de concentração, mantido pela ditadura cívico-militar argentina (1976 e 1983), era possível escutar a torcida no estádio “Monumental de Núñez”, que fica a poucos quarteirões da ESMA, hoje um museu da memória. Giancarlo e Miriam se conheceriam décadas depois e, juntos, em 2010, encontrariam cinco aviões dos chamados “voos da morte”. O trabalho fotográfico-investigativo colaborou também para a condenação perpétua de dois pilotos, em 2017. Esse é o desfecho de uma história de parceria investigativa que começou com a pergunta de Ceraudo: “onde estão os aviões?”, diria a Lewin, “vocês, os argentinos, estão um pouco distraídos dos objetos. Aí, foi quando Miriam me mandou à merda. Mas, num momento, ela para, olha, e me diz, eu te ajudo”.

Quando veio a Buenos Aires para cobrir a “crise de 2001”, Giancarlo começou a se perguntar sobre os aviões usados nos “voos da morte”, prática de extermínio utilizada pela “Junta militar” que liderou o genocídio de Estado, durante a ditadura argentina. O trabalho de Ceraudo, em parceria com Miriam Lewin, foi um dos responsáveis pela prisão perpétua dos pilotos Mario Daniel Arrú e Alejandro Domingo D’Agostino, em 2017. O piloto Enrique De Saint Georges faleceria pouco antes do final do julgamento. Miriam e Giancarlo encontraram o avião Skyvan PA-51 usado no dia 14 de dezembro, no “voo da morte” em que desapareceram 12 pessoas. Entre os corpos identificados, encontravam-se as duas freiras francesas, um caso emblemático, e de três mães da Praça de Maio. O Skyvan foi encontrado, ainda em uso, nos Estados Unidos, e voltará ao país, no próximo mês, para ser peça permanente da ESMA. A finalização deste trabalho, que durou 20 anos, veio a público com a exposição fotográfica, “Destino Final”, inaugurada dia 19 de maio, no Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires. A mostra ocupa quatro salas no quinto andar do edifício e conta com um total de 95 fotografias, além de vídeos e objetos.

ESMA, ex-Escola de Mecânica da Armada argentina, desde 2015, museu de memória da ditadura.

Estávamos no “Pedro Telmo”, no bairro de San Telmo, Ceraudo pediu uma lata de cerveja “Quilmes”, e eu uma taça de vinho tinto Malbec. O fotógrafo romano começaria, assim, a relatar uma história que, como bem disse, é como um filme. Tal como seguidas vezes citou o longa “Garage Olimpo” (1999), que tanto influenciou seu trabalho – “Olimpo” foi um dos centros de detenção, tortura e extermínio, localizado no bairro portenho de Floresta, em Buenos Aires. “Quando entrei em um centro de concentração, encontrei uma geladeira dos anos 70. Estava cheio de coisas lá. Pensei, vocês querem fazer memória e não prestam atenção nos objetos que estão aqui. Estavam muito distraídos”. “Destino final” também virou livro, editado em 2017, antes da condenação dos pilotos.

A investigação teve início em 2003. Ceraudo perguntava àqueles com os quais começou a ter contato nas marchas, protestos, e coberturas jornalísticas, onde estavam esses aviões, perguntava às mães que, todas as quintas-feiras, às 15h30, desde 1977, estão presentes na Praça de Maio para pedir justiça e reclamar o aparecimento do corpo de seus filhos. “Onde estão os aviões?”, Ceraudo perguntou também à Taty Almeida, uma das fundadoras do movimento “Mães da Praça de Maio”, que teve o filho Alejandro Almeida desaparecido em 17 de junho de 1975, pela Triple A – Aliança Anticomunista Argentina. A caderneta onde seu filho escreveu um poema – “Se a morte me surpreende longe do seu ventre, pois para você nós três continuamos aí” – está exposta na mostra fotográfica.

Os aviões usados no “voo da morte” eram os chamados “Skyvan”, fabricados na Irlanda do Norte, conhecidos como “geladeira com asas”, com capacidade para até 19 passageiros, e os  “Lockheed Electra”. Este último, especificamente o L-188A-08-10, chamado de “rio grande”, foi um dos aviões encontrados por Giancarlo e Miriam. Na exposição, “Destino Final”, há uma sala dedicada apenas a esta aeronave e, em um vídeo, Giancarlo mostra o avião por dentro. Estima-se que os “voos da morte” desapareceram 5 mil pessoas.

Então, ao ver que a história ainda estava por ser contada, Ceraudo sabia que precisava de ajuda para chegar aos aviões, e, além do mais, queria alguém que tivesse vivido a ditadura na “própria carne”. Foi quando, em 2007, a jornalista e sobrevivente Miriam Lewin aceitou entrar na investigação. Em 2018, a jornalista publicou o livro “Skyvan, aviões, pilotos e arquivos secretos”, sobre a investigação junto a Ceraudo em busca dos aviões.

No primeiro encontro, Miriam vestia um casaco que, segundo Giancarlo, era impossível tirar uma foto. “Mas a mim não me interessava muito essa foto. Queria tirar uma foto dela no centro de detenção onde esteve presa. Mas ela me tratava um pouco mal, meio que de cima pra baixo. “Você me parecia estranho, não veio e tirou fotos como todos os fotógrafos”, dizia. De repente, começamos a conversar, e eu perguntei, você sabe onde estão os aviões? Meio fastidiosa, ela responde, não, por que? Eu disse, pode ajudar a remontar essa história, quem sabe, até chegar aos culpados. Eu, tão insolente, porque não tenho essa coisa, ai, as sobreviventes como sofreram, muito insolente. E ela me disse, para que vai servir isso?”.

– (Jose Saramago) Em 2007, José Saramago (1022-2010) no Parque da Memória, em Buenos Aires.

Naquele início da década de 2000, a Argentina se perguntava pelos corpos dos desaparecidos, não pelos aviões usados para desaparecer opositores ao regime, jogados ao mar. Nesse período, ainda estavam vigentes a “Lei do Ponto Final” e a “Lei de Obediência Devida”*, que estabeleciam a paralisação dos processos penais contra os responsáveis pelo desaparecimento forçado de pessoas durante a ditadura militar – em 2003, o Parlamento declarou a nulidade de ambas leis e, em 2005, foram declaradas inconstitucionais pela Corte Suprema. “Eu tenho essa ideia, mas não estão percebendo, não me dão bola”, compartilhou a inquietação com o colega jornalista estadunidense, Joe Goldman, que comprou a ideia do fotógrafo, “você tem razão, vou te dar um presente, lembra do Scilingo? Eu entrevistei a esposa dele, e tenho o livro”.

Nesse momento, Giancarlo já tinha lido um dos livros fundamentais sobre a ditadura argentina, “O voo” (1995), do jornalista Horacio Verbitsky. Trata-se de uma entrevista-testemunho com o ex-militar da Marinha, Adolfo Francisco Scilingo, primeiro oficial a admitir em público o terrorismo de Estado, e que também confessou ter participado de dois “voos da morte”.  “Eu não sabia que Scilingo tinha escrito um livro, que era gêmeo do livro de Verbitsky. Mas foi boicotado, é um livro que tem 20, 50 cópias. Pego o livro e começo a estudar, lembro que tive febre. Era mal escrito, mas com muita informação. Comecei a sublinhar. Falava dos pilotos, modelos dos aviões, de quando saíam, de quando aterrissavam, eu disse, tenho razão, esses filhos*** sabiam de tudo”. Os tribunais espanhóis condenaram Adolfo Scilingo, em 2005 e 2007, respectivamente, a 640 e 1084 anos de prisão. Em 2020, o ex-militar foi beneficiado pelo chamado “regime cinderela”, que permite ao condenado ficar solto durante o dia e retornar à noite à prisão, exceto nos finais de semana.  

 Pessoas mostrando algumas fotografias de desaparecidos no ato público durante o aniversário do golpe militar na Argentina; Buenos Aires, 2011.

O voo de 14 de dezembro de 1977

Enquanto toma sua “Quilmes” e eu peço duas empanadas bem quentes, Ceraudo volta no tempo. Entra nos detalhes do voo do dia 14 de dezembro de 1977, que atirou 12 pessoas ao mar. Entre elas, as duas freiras francesas Alice Doman e Leonie Duquet, e três mães da Praça de Maio, Azucena Villaflor, Mary Ponce de Bianco e Esther Ballestrino de Careaga. O avião Skyvan usado neste voo é um dos aviões encontrados por Giancarlo e Miriam Lewin, em 2010.

Ceraudo pede uma milanesa de frango e a típica e pequena salada de alface e tomate, já que salada não é o forte da comida argentina. Eu pediria mais uma empanada, agora uma “caprese”. Assim, o fotógrafo entrou em detalhes sobre a história do voo de 14 de dezembro. Entre 1977 e 78, na praia de Santa Teresita, região da costa de Buenos Aires, apareceram sete corpos na beira-mar – os corpos foram trazidos pelo movimento da “Sudestada”, fenômeno climático de ventos que vêm do Sudeste e provocam o aumento do volume das águas do Rio da Prata. Os corpos foram enterrados em vala comum e como “Não Identificados”. Em 2005, a Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) foi ao cemitério municipal General Lavalle** – o cemitério foi transformado em um centro de memória – em busca dos restos e realização de exames de DNA para identificação dos corpos. Eram elas as vítimas de uma operação militar contra um grupo de ativistas e familiares de desaparecidos que se reuniam na Igreja de Santa Cruz, em Buenos Aires, que sequestrou um total de 12 pessoas – quantidade incomum, pois, geralmente, eram sequestradas uma ou duas, de cada vez, comenta Ceraudo. Um jovem, a mando da ESMA, se infiltraria no grupo, fazendo-se passar por um filho de desaparecido.

Giancarlo sabia que não poderiam ser muitos os aviões: “quantos aviões a Armada argentina poderia ter? Então, minha teoria era que, primeiro, a Armada Argentina teria dez aviões, não é como a Armada dos Estados Unidos. E um piloto militar tem uma vida muito breve, entre 20 e 30 anos. Depois vão trabalhar em uma companhia aérea. Um piloto tem que ser treinado, não passa de uma máquina à outra como nós dirigimos um carro. Então, pelo conto de Scilingo, não lembro exatamente, mas eu sabia que eram dois tipos de aviões os que eles usavam para o “voo da morte”. E quantos eram os pilotos, entre 1976, 1979, que tinham entre vinte e trinta anos, que usavam esses aviões e estavam treinados para voar? Eram poucos pilotos, dez, quinze, não muito mais do que isso”.

O sacerdote Christian Von Wernich, envolvido na repressão, com um colete antibalas, entra na sala do tribunal antes de receber o veredito de cadeia perpétua.

O caminho inicial para chegar aos aviões foi uma busca pela internet, logo, ao descobrirem que um desses aviões, e único que ainda voava, estava em Fort Lauderdale, nos Estados Unidos, um jornalista argentino que trabalhava na cidade colaborou com a investigação e foi ao aeroporto atrás das informações do Skyvan PA-51. “Encontrar os aviões não foi tão difícil. Foi difícil pensar, começar, cruzar os dados, as informações, mas em si, os aviões… Buscamos juntos, rastreamos os aviões pela internet. Você colocava lá “Guarda naval Skyvan” e aparecia o PA-50, PA-51, aí você rastreia e vê que um caiu nas Malvinas, já sabe que não existe mais, o outro caiu em Bahia Blanca, esse não existe mais”.

“Perguntei se a Miriam conhecia alguém que estivesse em “Fort Lauderdale”. Ela disse que tinha um jornalista esportivo lá. Então, mandamos ele investigar. O cara que era de Esportes, tinha um pouco de medo. Ele vai ao aeroporto e deixam ele ter acesso ao avião. “Mas se interessa tanto vocês, posso mostrar os documentos que estão no avião, as planilhas”. O cara fica gelado, começa a ver e estão todas as planilhas de voo. Na realidade são planilhas de manutenção do avião. Colocam a data , o dia e a tripulação. Ele tinha nas mãos os documentos dos planos de voo de um avião que tinha participado de um sequestro num “voo da morte”, com o nome dos pilotos, de 1976 a 1979. Tinha tudo. Com a voz trêmula, me liga, olha eu tenho os documentos, temos as planilhas de voo dos “voos da morte”. Tinham voos que eram muito estranhos. Eu não sabia ler os voos, por isso, necessitamos de um piloto”. No início deste ano, o piloto Enrique Piñeyro viajou, a pedido do governo argentino, que, por sua vez, atendeu a um pedido de algumas “Mães da Praça de Maio”, para reconhecimento da aeronave, agora no aeroporto do Arizona, nos Estados Unidos; para confirmar que era a mesma aeronave encontrada, em 2010, em “Fort Lauderdale”. 

Somos interrompidos por uma jovem, de aproximadamente 25 anos, que felicita e agradece Giancarlo pelo seu trabalho, “obrigada pelo o que você fez pelo meu país”. Ele sorri, “está vendo, isso é lindo”. E prosseguimos. Mas agora, aproveito então para voltar ao início da conversa. Pois, para chegar à pergunta, “onde estão os aviões”?, Giancarlo contou sobre suas memórias da infância, quando todos os domingos um amigo de seu pai o levava para sobrevoar Roma. Os pilotos eram então como heróis para aquele pequeno “tano” – como são chamados os italianos na Argentina -, até que, por força das circunstâncias e da história, agora ele se sentia traído pelos pilotos. “Por isso, sempre digo, esse trabalho eu o vejo como uma traição. Os aviões eram a coisa mais linda do mundo. Eram a liberdade, a viagem, o sonho. Depois vem esses caras e te cagam o sonho de criança”. Mas a Copa de 1978, que era a sua felicidade de menino, essa alegria do futebol a ditadura não conseguiu apagar. O Mundial de 78 foi utilizado pela “Junta militar” como aparato de propaganda do Estado.

“Apesar de tudo o que eu descobri, enquanto feliz assistia ao jogo Itália e Argentina, eu lembro perfeitamente desse gol, e, nesse momento, Miriam estava presa a dois quarteirões do estádio. Falei pra ela, Miriam, a memória é tão forte, que nem mesmo a racionalidade apaga. O Mundial de 78, apesar de depois saber de tudo, continua sendo na minha memória algo muito feliz. E isso não posso mudar”.

Somente alguns corpos atirados ao mar nos “voos da morte” foram recuperados. Seus familiares continuam buscando seus restos e pedem justiça e castigo aos culpados.

*A “Lei de Obediência Devida” estabelecia que os delitos cometidos pelos militares, que deviam obediência a seus superiores, não eram considerados puníveis.

**O cemitério municipal de General Lavalle foi fundado em 1870. Durante a ditadura civil-militar, os corpos das pessoas mortas durante os chamados “voos da morte”, encontrados nas praias de Mar de Ajó, San Bernardo, La Lucila del Mar, Santa Teresita, San Clemente del Tuyu, Las Toninas e Punta Médanos, foram enterrados no cemitério como “Não Identificado” (traduzido do próprio site).

Serviço:

Mostra: “Destino Final”

De 19 de maio a Setembro de 2023

Centro Cultural Kirchner (CCK)

Buenos Aires – Capital Federal

*Maíra Vasconcelos – jornalista e poeta, publica artigos sobre política argentina no Jornal GGN e cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

2 Comentários

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  1. Sempre me perguntei sobre o que falta entre nós, brasileiros, para reunirmos materiais os mais diversos, para termos em nossas grandes capitais, ou centralizado em Brasília, um Museu ou um grande Centro de Memória sobre os fatos de 21 anos da ditadura em nosso País.
    Já tive a ideia de ter um ônibus e construir uma “Memória Itinerante” móvel e mostrar por meio de filmes, fotos e demais objetos, o que foram os anos de chumbo. Mas por falta de $$$ ficou somentee na intenção.

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