O jogo delicado entre o mercado e a urna, por Delfim Netto

Do Valor

Nem eterno, nem perfeito, apenas melhor

Antonio Delfim Netto

Quanto mais as análises se sofisticam, de um lado pela aplicação de inferências que emergem de uma dialética que “descobre” leis históricas, e de outro com um cientificismo pretensioso, que esconde uma metafísica que “naturaliza” os mercados (autorregulado, eficientes e morais), menos seremos capazes de compreender os fenômenos econômicos e o seu desenrolar no tempo.

Nas “ciências sociais”, particularmente na economia, o futuro é absolutamente opaco. A experiência demonstra a cada dia que as séries de tempo não são ergódicas. Em outras palavras, que o futuro não está escondido numa dobra do tempo passado. Logo, é inútil esperar que ele, convenientemente torturado pela dialética, ou pela matemática, fará uma “delação premiada”…

O longo prazo será sempre um enigma, mas nem tudo está perdido. Ele é uma sucessão de curtos prazos que estão longe de serem repetitivos ou aleatórios, pois são condicionados pelo ambiente criado pela ação do Estado através do poder incumbente que momentaneamente o representa. Eles são diferentes, mas não aleatórios, uma vez que são determinados pela ideologia que os orienta.

A experiência histórica sugere que, como no mundo físico, no mundo social as mesmas causas tendem a produzir efeitos parecidos. Não produzem os mesmos, porque nelas o agente (o átomo ou a molécula) que responde ao estímulo é um animal complicado: tem interesses e aprende a defendê­-los, pensa, tem expectativas, tem ideologia, reclama, reage e se associa a outros. Mais grave do que tudo, pode aprovar, ou reprovar, na próxima eleição, o poder incumbente que representa o Estado.

Desde que deixou a África há 100 mil anos, os homens procuram uma organização social e econômica que 1) os liberte de toda restrição a sua atividade criativa e lhes permita apropriarem-­se dos resultados das ações produzidas por essa liberdade; 2) que lhes dê uma relativa igualdade de oportunidades (cada um deve depender menos da loteria do seu nascimento) e 3) que a transmissão das riquezas que tenham eventualmente conseguido, pela sorte ou pelo mérito, seja mitigada.

A “justiça social” significa, principalmente, igualdade do ponto de partida na vida ativa, o que sugere que saúde e educação sejam universais e financiadas por toda a sociedade através de impostos gerais que devem prover, também, um mecanismo de solidariedade que estimule a inclusão dos menos favorecidos e os capacite para conquistarem -­ com sua própria atividade -­ sua completa cidadania.

O problema que o socialismo “ideal” insiste em ignorar, que e levou à destruição da experiência do socialismo “real”, é como coordenar a atividade de milhões de agentes livres, de forma a aumentar a produtividade do trabalho, que permita a apropriação de um excedente nas condições acima enunciadas: uma combinação satisfatória de relativa liberdade, com uma relativa igualdade e que opere razoável eficiência para gerar um excedente produtivo que lhes permita gozá­-las.

Um pouco de reflexão e um mínimo de experiência revelam que os três valores: liberdade, igualdade e eficiência produtiva, não são inteiramente compatíveis. Quando cérebros peregrinos supuseram poder compatibilizá­l-os criando o “novo homem”, tiveram que usar a força e o resultado final foi a perda de pelo menos dois deles.

Os homens não inventaram o “mercado”. Eles foram descobertos na sua atividade prática. Na busca do aumento da produtividade do trabalho inventaram a propriedade privada, o que os separou em dois conjuntos que, à medida que crescem os avanços tecnológicos, têm cada vez maior intersecção: os que controlam o capital e os que lhes alugam a sua força de trabalho. A isso se chamou de “capitalismo”, que não é uma coisa, mas um processo histórico, que sobreviveu porque o poder econômico do capital foi relativizado pela invenção do sufrágio universal que produz um viés político a favor do trabalho. Ele nem é eterno, nem perfeito.

Alguns, ingenuamente, acreditaram que o afundamento da URSS em 1989, era a vitória definitiva do capitalismo “real”, sobre o socialismo “real”. Como Sartre no século XX, com seu marxismo não ultrapassável, Fukuyama, no século XXI, acreditou que o fracasso da experiência soviética era “o ponto final da evolução ideológica da humanidade… e a forma final das formas de governo”. Quem esquece que “na prática a teoria é outra”, amanhece superado! Tendo os dois decretados a morte da história, esta divertiu­se desmentindo-­os.

Como o “capitalismo” é um processo adaptativo e o próprio “sufrágio universal” se aperfeiçoa, suspeito que a teoria da esquerda míope de hoje, que “capitalismo” e “democracia” são incompatíveis terá, na prática, o mesmo destino…

A persistência do jogo delicado, complexo e demorado entre o “mercado” e a “urna” parece, até agora, ser o único que pode conduzir à conciliação adequada entre três valores não plenamente conciliáveis: a liberdade, a igualdade e a eficiência produtiva, implícitas na sociedade “civilizada”. O resto é a felicidade efêmera prometida pela ignorância da história, que sempre termina muito mal.

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-­USP, ex­-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às
terças-­feiras
Redação

8 Comentários

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  1. confiança

    sr. delfim

    eu confiaria mais em suas palavras se o senhor não tivesse feito parte da historia do brasil como ministro. Talvez seus mal feitos na economia naquela época, não fossem falta de conhecimento e sim submissão.

    1. O passado

      Acho que ele está tentando alertar para que não se repitam as “condições” que “ocasionaram” o passado.

      Lembrar da URSS e falar do futuro lembrando do passado.

       

  2. “é inútil esperar que ele,

    “é inútil esperar que ele, convenientemente torturado pela dialética, ou pela matemática, fará uma “delação premiada”…

    Brilhante

  3. Gozado. Eu observo que a saga

    Gozado. Eu observo que a saga humana desses 100 mil  anos busca apenas levar uma vida decente e depois aproveitar um pouco da liberdade com alegria.

    Jamais imaginei, até seria interessante indagar às pessoas na rua se esse é o sentimento delas, que as “pessoas procuram uma organização social e econominca que os liberte de toda restrição a sua atividade criativa”.

    Essa frase decerto ficaria bem no Fórum da Liberdade, mas dificilmente corresponde aos anseios do homem comum, mais preocupado em pagar as contas, criar os filhos e curtir os finais de semana com a família do que “libertar-se de todas restrições”.

  4. Ah, esse materialismo vulgar

    Ah, esse materialismo vulgar uspiano… Gerações e gerações que não se cansam de fazer acerto de contas com a guerra fria nunca!  Habermas, Luhmann, Offe, Rawls e tantos outros já viraram essa página desde a década de 70!

  5. a tecnologia desequilibra a equação

    Mais um artigo brilhante do Delfim Netto. Entretanto, na busca por liberdade, igualdade e eficiência produtiva  , a eficiência produtiva ,cada vez mais, abre espaço para o fenômeno da tecnologia. Máquinas ,rôbos e por fim inteligencia artificial. Uma visão futurista, por certo, que levará o homem a se preocupar apenas com as questões da liberdade e da igualdade social. Um capitalismo predatório é incompatível com a sustentabilidade planetária,  somado a um homem livre das amarras da eficiência produtiva, poderá levar à volta de um socialismo revigorado. A história nunca acaba. 

  6. Será que Delfim se sente com
    Será que Delfim se sente com vergonha por ter feito parte de uma turma que atuou contra a democracia, do valor do voto da urna, da liberdade individual e de expressão e pela ausência da sensatez no julgamento da verdade e com demasiada preocupação com o “eu” feliz a qualquer custo, buscando a tal “felicidade” em caminhos eivados de desrespeito ao melhor para a população no seu tempo de vida, com a justificativa de engordar o bolo, em favor da elite.  Que fortalecida, mais rica e poderosa ao final do período de 1964 a 1985 financia com bilhões os representantes, os posseiros do Estado ?

     

  7. O átomo pensa. Será que pensa mesmo?

    Interessante a afirmativa do eminente economista dizendo que a “Economia não é ciência. Deus foi muito duro com os economistas, porque na economia o étomo pensa, fala e reage. O os homens são iguais aos carneiros de Panagúrio”.

    A realidade mostra exatamente o contrário,  já que o átomo da economia, que é o homem, ainda não sabe pensar. embora tenha sido dotado por Deus de uma mente exatamente para fazer isso. Por isso vivem como carneiros de Panagurio e elegem governantes denre os carneiros mais ativos e nem por isso os mais inteligentes. Como os carneiros eleitos também não aprenderam a pensar, para se menterem no poder investem pouco na educação e ensino para os demais. Investem muito na fome e na miséria, sem saber que a fome e a miséria são os efeitos mais perversos  da ignorância. O pior é que os carneiros eleitos depois de infectados pelo virus do poder e do dinheiro fácil, fazem de tudo para  que os átomos que os elegeram não aprendam a pensar. Depois de saciar a fome por um tempo, investem em arenas esportivas e não em salas de aulas. É a forma que encontram para se manterem eleitos por muitos anos.O dia que o átomo pensar, ou pelo menos a maioria, eles nao terão mais qualquer chance.

    Também é bom saber que esse comportamento humano carateristico dos bovídeos, vem de muitos séculos. Resta identificar os responsáveis por isso.

     

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