Os Três Estados Redivivos no Brasil, por Luiz Alberto Melchert

Será que caminhamos para uma estrutura social semelhante à que precedeu a Revolução Francesa?

Reprodução TV Brasil

Os Três Estados Redivivos no Brasil

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Qualquer livro de História traz a  informação de que, antes da Revolução, o reino de França se dividia em três estados: o clero, a nobreza e a plebe. Ao contrário do que era de se esperar, não são os livros de história que mostram a vida pelo lado dos indivíduos. Pela estrutura da própria ciência, a humanidade é apresentada como um formigueiro cujas formigas podem ser nominadas, umas aqui, outras ali, mas sempre dando a impressão de que a vida transcorre em função dela, não apesar delas. Essa preocupação é expressa em “A Era das Revoluções” de Eric Hobsbawm. A visão de baixo para cima, em que as pessoas têm nome,  requer o mergulho na literatura dos períodos adjacentes ao evento em análise. Um bom exemplo de como nos colocarmos dentro dos acontecimentos é “Um Conto Entre Duas cidades” de Charles Dickens. Ele transita entre Londres e Paris durante a Revolução Francesa, dando uma noção bastante realista das angústias do povo.

O primeiro Estado era o clero católico que manteve seu poder intacto depois de enfrentar todas as turbulências protestantes de duzentos anos antes, no século XVI. Como disse Henrique III depois da Matança de São Bartolomeu, “Paris vale bem uma missa”. O clero gozava de privilégios fundiários e tributários em troca de, como intermediários na relações com Deus, manter intacto o segundo Estado, a nobreza.

Ela, por deter as armas, era igualmente imune aos impostos, mas tinha direito de cobrar tributos exorbitantes dos arrendatário de suas terras e dos burgueses, cuja representação no governo era pífia, se é que existia.

Será que caminhamos para uma estrutura social semelhante à que precedeu a Revolução Francesa? Poderíamos dizer que o papel do clero foi substituído pelo das igrejas evangélicas, cujo poder vem crescendo na exata proporção de seus privilégios. A imunidade tributária prevista na Constituição visava impedir que o Estado cobrasse impostos sobre a religião em si, gravando o indivíduo pelas suas crenças. Num contorcionismo intelectual digno de um espetáculo circense, concluiu-se que a imunidade se estendia às igrejas como instituições civis detentoras de um CNPJ. Mais recentemente, os privilégios avançaram sobre as instituições que tivessem as igrejas como sócias. Finalmente, isentaram-se os religiosos, indo muito mais além dos tempos das regências, quando clérigos exerciam o poder em nome do príncipe D. Pedro II, até que ele alcançasse a maioridade.

O segundo estado da atualidade é fruto de uma aliança contendo o mercado financeiro e a estrutura do agronegócio brasileiro, cujo poder a reforma tributária não teve o condão de mitigar. A lista interminável de isenções que se mantiveram na reforma tributária é prova de que os privilégios persistem e que o custo do Estado continua recaindo, majoritariamente, sobre as atividades urbanas, que formam o terceiro Estado. É nele que nos incluímos todos, da classe média aos miseráveis jogados nas ruas.

Não foi outra coisa se não o rentismo que provocou a Revolução Francesa. Houve um tempo em que o povo se cansou de pagar pelos privilégios de classes que não chegavam a cinco por cento da população. É então que cabe perguntar por que a população não se rebela. Porque a classe média acredita piamente fazer parte do segundo Estado e o restante tem medo de ir para o inferno.

A grande diferença é que o medo de ir para o inferno não está mais confinado aos prédios das igrejas, ele passou a vir pelas ondas de rádio e instalou-se no bolso ou nas mãos das pessoas, dentro de seus smartphones. O Congresso, por sua vez transformou-se num palco para tumultos a serem viralizados pela internet, gerando monetização que vai parar no bolso dos congressistas. Antes de serem políticos, eles eram bufões para distração das redes sociais. Para entender melhor, foram as redes que os elegeram e agora eles usam seus gabinetes e a imunidade parlamentar como meios de criar mais tumultos cuja viralização retroalimenta seu poder. A tribuna virou um palco para que se digam os maiores absurdos. Usam-se perucas, apresentam-se pendrives, faz-se todo o tipo de pantomima, tudo  gerando cortes a partir dos órgãos de comunicação do Congresso. Esses cortes são veiculados pelas redes e a monetização gerada por elas excede largamente os proventos dos congressistas. Tirar o Legislativo das mãos dos bufões das redes sociais, trazendo-o para o debate dos interesses nacionais é a grande luta para a redemocratização no século XXI. A monetização de políticos pelas redes sociais é uma excrescência à luz da legislação vigente, basta usá-la.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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