É a Inglaterra de fato um país civilizado?, por Felipe Costa

Além da idade precoce da mão de obra, outros dois agravantes caracterizavam a relação patrão-empregado: a insalubridade e os maus-tratos.

É a Inglaterra de fato um país civilizado?

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

Enquanto as florestas do interior da Inglaterra eram corroídas e convertidas em mastros de navios, tonéis de cerveja e lenha para queimar, a capital do país era transformada em uma floresta de chaminés. Em meados do século 18, Londres era a capital mundial da fuligem. As condições de vida na metrópole eram terrivelmente insalubres. Muito mais insalubres e insanas, porém, eram as condições de trabalho.

É vexatório, mas é compreensível: nos primórdios da Revolução Industrial, os freios civilizatórios à tendência superexploratória do capitalismo eram mínimos ou desprezíveis. Não havia limites, por exemplo, para as horas de trabalho diário ou para a idade mínima da mão de obra. Crianças com menos de 10 anos de idade realizavam tarefas que hoje, em qualquer lugar civilizado, seriam vistas como impróprias até mesmo para um adulto saudável.

Na década de 1830, pressionado pelas circunstâncias, o Parlamento britânico decidiu investigar os rumorosos casos envolvendo a superexploração da mão de obra, sobretudo os casos de trabalho infantil em minas de carvão. Em 1842, após três anos de trabalho, a comissão de investigação – formalmente Comissão Real de Inquérito ao Emprego Infantil (em ing., Royal Commission of Inquiry into Children’s Employment) – publicou um relatório. Foi um estrondo.

Eis uma pequena amostra do tipo de coisa que os integrantes da comissão testemunharam na região mineira de West Riding of Yorkshire (norte da Inglaterra) [1]:

“Em muitas das minas de carvão deste distrito, no que diz respeito ao trabalho subterrâneo, não há distinção de sexo e o trabalho é distribuído indiferentemente entre ambos os sexos, exceto que é relativamente raro que as mulheres quebrem ou carreguem o carvão, embora haja numerosos exemplos em que elas regularmente executam até mesmo essa tarefa. Em um grande número de minas de carvão deste distrito, os homens trabalham em estado de nudez completa, e nesse estado eles recebem a ajuda de mulheres de todas as idades, desde meninas de seis anos até mulheres de vinte e um anos, estando muitas delas nuas até a cintura.”

Como eu disse, foi um estrondo. Parte da opinião pública e da elite vitoriana ficou particularmente escandalizada com o fato de as mulheres mineiras se apresentarem seminuas. O essencial, claro, ainda não podia ser mexido, de sorte que as providências tomadas pelo parlamento se resumiram a proibir que crianças com menos de oito anos continuassem a trabalhar nas minas.

Duas décadas depois, na primeira página do romance The water babies, anotou Kingsley (1863, p. 1; tradução livre) [2]:

“Era uma vez um pequeno limpador de chaminés, e o nome dele era Tom. Esse é um nome curto, e você já o ouviu antes, então não terá muita dificuldade para lembrar. Ele vivia em uma grande cidade das terras do norte, onde havia muitas chaminés para limpar e muito dinheiro para Tom ganhar e o seu patrão gastar. Ele não sabia ler nem escrever, e não se importava com essas coisas; e ele nunca tomava banho, pois não havia água no lugar onde vivia. Nunca lhe ensinaram a fazer suas orações. Ele nunca ouviu falar de Deus, ou de Cristo, exceto em palavras que você nunca ouviu, e que teria sido bom se ele também não tivesse ouvido. Chorava metade do tempo e ria na outra metade. Chorava quando tinha de escalar as chaminés escuras, ralando seus pobres joelhos e cotovelos; e quando a fuligem caía em seus olhos, o que acontecia todos os dias da semana; e quando seu patrão batia nele, o que acontecia todos os dias da semana; e quando ele não tinha o bastante para comer, o que também acontecia todos os dias da semana.”

Como se não bastasse a idade absurdamente precoce da mão de obra, ao menos outros dois agravantes caracterizavam a relação patrão-empregado: a insalubridade e os maus-tratos. Nas palavras de Nuland (1995, p. 221):

“As chaminés eram muito estreitas, medindo aproximadamente de 30 a 60 centímetros de diâmetro. Por que se dar ao trabalho de achar garotos pequenos e magricelas se eles só iriam gastar espaço valioso usando roupas? Então o patrão recrutava os menores garotinhos que pudesse encontrar, ensinava-lhes os rudimentos de limpeza de chaminés e chutava seus traseiros nus e pretos de carvão toda manhã, instigando-os aos gritos para que subissem os poços apertados e sem ar para iniciar o dia de trabalho.”

No mesmo capítulo, Nuland nos apresenta um pioneiro daquilo que chamaríamos hoje de medicina do trabalho: Percival Pott (1714-1788). Em 1775, ao escrever sobre as condições de vida dos limpadores de chaminés londrinos, o cirurgião inglês teria sido o primeiro a estabelecer um elo causal entre uma dada ocupação profissional e o desenvolvimento de uma doença maligna.

Conhecida então como o câncer dos limpadores de chaminés, a doença é rotulada hoje de carcinoma de células escamosas. Nas palavras do próprio Pott (apud Nuland 1995, p. 221-2) [3]:

“[O] destino dessas pessoas parece singularmente difícil: em sua tenra infância, eles são muito frequentemente tratados com grande brutalidade, e quase morrem de frio e fome; são enfiados para cima de chaminés estreitas, e às vezes quentes, onde se machucam, se queimam e quase sufocam; e, quando chegam à puberdade, tornam-se peculiarmente sensíveis a uma doença muito incômoda, dolorosa e fatal.”

E Nuland completa (1995, p. 224):

“A tese de Pott, de que a fuligem era a causa motivadora do câncer, recebeu reconhecimento imediato. Ela levou diretamente a um decreto do Parlamento segundo o qual nenhum limpador de chaminés deveria iniciar seu aprendizado antes dos oito anos de idade e que todos os garotos deveriam tomar um banho pelo menos uma vez por semana. Por volta de 1842, nenhum menor de 21 anos podia mais subir em chaminés. Infelizmente, a lei era violada tantas vezes que ainda havia muitos limpadores de menor idade quando Charles Kingsley estava escrevendo The Water Babies, vinte anos depois.”

Pois é.

CODA.

A superexploração da mão de obra doméstica – ao lado do colonialismo e das pilhagens feitas mundo afora – ajuda a explicar como e por que o Império Britânico se manteve de pé ao longo de quatro séculos [4]. E ajuda a explicar também como e por que tanto a Revolução Industrial como a Revolução Científica nasceram em berço inglês: o mundo dos negócios, que já conhecia de longa data a tecnologia, descobriu e capturou (ou tentou capturar) a ciência.

No fim de toda essa história, sobra um gosto amargo na boca. E uma dúvida atroz na cabeça: é a Inglaterra de fato um país civilizado?

Voltemos agora às florestas.

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NOTAS.

[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados neste Jornal GGN – ver os artigos Livros, lentes & afins; Por que a Terra é esférica?; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Subindo uma rampa em espiral; Quem quer ser um cientista?; Finda a lenha, eis o carvão: Como foi mesmo que entramos nessa enrascada?; Do que é feito o Universo?; A terceira via: Algumas notas sobre o método científico; As origens da política; Um mapa do Brasil. I. Roraima a inchar, Piauí a murchar?; Combatendo notícias falsas. I. Por que não existem fotos da Via Láctea vista de fora?; Um mapa do Brasil. II. Onde estão os brasileiros?; As cores da Terra. I. Biomas de água doce e arquitetura animal; As cores da Terra. II. Biomas marinhos e a produção primária global; Nervos, cérebros e comportamento. I. Ecologia sensorial e a mente humana; Nervos, cérebros e comportamento. II. Podemos aprender com os nossos erros; O pote de ouro, a corrida maluca e a facada pelas costas: Bem-vindo à arena científica; e Ciência, tecnologia, negócios.

Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.

[1] O excerto publicado aqui foi traduzido de Bland et al. (1919).

[2] Reverendo, historiador e escritor inglês, Charles Kingsley (1819-1875) era um intelectual dos mais ativos e entusiastas – ver Desmond & Moore (1995); sobre a obra literária dele, ver Carpeaux (2011). Desconheço a existência de uma edição brasileira do referido romance.

[3] Sobre o trabalho pioneiro de Pott, ver, e.g., Kipling & Waldron (1975).

[4] Não custa lembrar: entre a segunda metade do século 16 e o final do século 20, o Império Britânico explorou e ditou regras em duas dezenas de países não europeus (e.g., África do Sul, Austrália, Canadá, Estados Unidos, Índia, Nova Zelândia, Uganda e Zimbábue).

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REFERÊNCIAS CITADAS.

++ Bland, AE, Brown, PA & Tawney, RH, eds. 1919. English economic history: Select documents. Londres, Macmillan.

++ Carpeaux, OM. 2011. História da literatura ocidental, vol. 3, 4ª ed. Brasília, Senado Federal.

++ Desmond, A & Moore, J. 1995 [1991]. Darwin – A vida de um evolucionista atormentado. SP, Geração Editorial.

++ Kingsley, C. 1863. The water babies. Londres, Macmillan.

++ Kipling, MD & Waldron, HA. 1975. Percivall Pott and cancer scroti. British Journal of Industrial Medicine 32: 244-50.

++ Nuland, SB. 1995 [1993]. Como morremos. RJ, Rocco.

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  1. “A maquinaria produz os mesmos efeitos numa escala muito maior, ao impor a substituição de operários habilitados por operários sem habilitação, de homens por mulheres, de adultos por crianças, pois que a maquinaria, onde é introduzida de novo, lança os operários manuais em massa para a rua, e onde é desenvolvida, aperfeiçoada, substituída por máquinas mais frutuosas, despede operários em grupos mais pequenos. Retratámos atrás, a traços rápidos, a guerra industrial dos capitalistas entre si; esta guerra tem a peculiaridade de nela as batalhas serem ganhas menos pela contratação do que pelo despedimento do exército operário. Os generais, os capitalistas, disputam entre si quem pode mandar embora mais soldados da indústria.

    Os economistas contam-nos, por certo, que os operários tornados supérfluos pelas máquinas encontram novos ramos de ocupação.

    Não se atrevem a afirmar directamente que aqueles mesmos operários que foram despedidos arranjam lugar em novos ramos do trabalho. Os factos contra esta mentira são demasiado gritantes. Eles de facto só afirmam que para outras partes constitutivas da classe operária, por exemplo, para a parte da jovem geração operária que já estava pronta para entrar no ramo da indústria decaído, novos meios de ocupação se abrirão. Esta é, naturalmente, uma grande satisfação para os operários caídos. Não faltarão aos senhores capitalistas carne e sangue frescos para explorarem, e mandar-se-á os mortos enterrar os seus mortos. É mais uma consolação que os burgueses oferecem a si mesmos do que uma que dão aos operários. Se a classe inteira dos operários assalariados fosse aniquilada pela maquinaria, que horror para o capital, o qual sem trabalho assalariado deixa de ser capital!

    Admita-se, porém, que os que foram directamente desalojados pela maquinaria e a parte inteira da nova geração, que já espreitava este serviço, encontram uma nova ocupação. Acreditar-se-á que a mesma será paga tão alto como a que se perdeu? Isto contradiria todas as leis da economia. Vimos como a indústria moderna traz sempre consigo a substituição de uma ocupação complexa, mais elevada, por outra mais simples, mais subordinada.

    Como poderia, pois, uma massa de operários lançada fora dum ramo da indústria pela maquinaria encontrar um refúgio num outro, a não ser que este seja pago mais baixo e pior?

    Aduziu-se como excepção os operários que trabalham na fabricação da própria maquinaria. Logo que se requer e consome mais maquinaria na indústria, as máquinas terão necessariamente de aumentar, e portanto a fabricação de máquinas, e portanto a ocupação de operários na fabricação de máquinas, e os operários empregados neste ramo da indústria seriam operários habilitados, seriam mesmo operários instruídos.

    Desde o ano de 1840 esta afirmação, já antes apenas meio verdadeira, perdeu toda a aparência, porquanto máquinas cada vez mais complexas são aplicadas para a fabricação de máquinas tal como para a fabricação de fio de algodão, e os operários empregados nas fábricas de máquinas só podem desempenhar, face a máquinas altamente engenhosas, a posição de máquinas altamente desengenhosas.

    Mas em lugar do homem despedido pela máquina a fábrica emprega talvez três crianças e uma mulher! E o salário do homem não tinha de chegar para as três crianças e uma mulher? Não tinha o mínimo de salário de chegar para manter e multiplicar a raça? Que prova, portanto, esta apreciada expressão burguesa? Nada mais do que agora são consumidas quatro vezes mais vidas operárias do que anteriormente para ganhar o sustento de uma família operária”. – Karl Marx, Trabalho Assalariado e Capital

  2. Não, não é. Nem na teoria, nem na prática. Adam Smith desconfiava existir algo de errado – moralmente, ele que era um filósofo moralista – com o Capitalismo, mas limitou-se a algumas palavrinhas judiciosas sobre o assunto, e mais nada. David Ricardo não apenas desconfiava, mas tinha certeza desse ‘algo de errado’, mas igualmente fez vistas grossas ao assunto, chegando a justificá-lo de certa forma, sem se alongar muito – tinha que cuidar de seus investimentos. Já Thomas Malthus, reverendo que era, chegou a evocar a vontade divina para passar pano para esse ‘algo de errado’, e louvou o que apontou como efeitos benéficos dessa situação. Pois os ingleses sempre souberam que o ‘Trabalho dignifica o Homem’; e descobriram que a exploração do trabalho degrada o homem, mas disso não fizeram caso, ao contrário da primeira sentença, que está para eles como o pórtico de Auschwitz está para os nazistas. O Trabalho leva ao paraíso, nem que seja pela exploração selvagem do trabalho – o dos outros. E ainda tem gente que admira essa gente. Quanto à prática, peço licença ao Nassif e leitores do GGN para compartilhar com todos um trecho de um livro que escrevi, e que não tenho grandes esperanças de conseguir publicar, uma vez que acidez e pessimismo não vendem livros: “Tomemos o Trabalho, por exemplo. Conforme somos ensinados desde a mais tenra idade, o Trabalho dignifica o homem. ‘Ó quão desgraçados são aqueles que não trabalham!’; alguém já deve ter esbravejado algo semelhante. E aqui temos uma neurose, ou o protótipo de uma neurose (esquizofrenia?), que escapou completamente aos nobres e dedicados precursores dessa não menos nobre cartografia, a cartografia da alma humana – os pares de Charcot, de Freud, Pinel, dentre outros. Porque, se a neurose se caracteriza, dentre outras coisas, pelo choque entre o inaugural Princípio do Prazer, e o adventício Princípio da Realidade, e os consequentes sinais de afastamento ou estranhamento dessa mesma realidade, eis aí um campo que oferecia inumeráveis caminhos para o diligente estudo da mente humana: os ricos e nobres, que não trabalhavam, seguiam cada vez mais ricos e mais nobres, e, principalmente, dignos, apesar da evidente aversão ao Trabalho, das mãos suaves e limpas, que jamais conheceram calosidades; e os pobres, esses sim, com suas mãos calosas e sujas, aspecto pouco higiênico (quando não repugnante), uma vez esgotados e chupados até o bagaço, é que sucumbiam ao pecado mortal da preguiça, arrastando-se pela rua como mendigos, vadios, ou coisa que o valha. Era apenas escassez de oferta de trabalho, mas isso, naqueles tempos como hoje, não vem ao caso, se a tendência é de invectivar desocupados. Algum dentre estes, futuro neurótico, mas ainda dotado de uma fugaz e moribunda capacidade de raciocínio crítico, poderia, tal e qual no perigoso e sangrento confronto dos Princípios, julgar que os ricos, desgraçados por não terem trabalho, não seriam dignos, nem das benesses terrestres, nem das graças de Deus; e que os preguiçosos (na verdade, extenuados e astênicos, como ele próprio, anônimo pensador), é que possuíam em si, não apenas toda a dignidade dos que trabalham (e morrem, em virtude disso), como também o direito aos prazeres celestiais e seus similares terrenos. Se aqueles dignos doutores tivessem se ocupado de um destes futuros neuróticos – por exemplo, os trabalhadores dos princípios da Revolução Industrial, ou os milhares de pobres coitados que foram dar com os costados nas cidades agora industriais, após o Cercamento – quanta ilusão e perversidade teriam sido evitadas: as greves, as revoluções, o bolchevismo – todos fortíssimos candidatos ao título de mal du siècle oficial. Eram todos neuróticos, pura e simplesmente, tomando uma coisa pela outra. A vadiagem pelo trabalho, o trabalho pela vadiagem.”

  3. O que chamam de civilização parece ser uma eterna corrida pelo equilíbrio do quanto o povo aceita ser explorado para manter o conforto de alguns poucos.

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