Como não fazer política urbana

Sugerido por marcelosoaressouza
 
Da CartaCapital
 
Como não fazer política urbana
 
Após anos do Minha Casa Minha Vida, déficit habitacional aumentou em quase 1,5 milhão de moradias
 
por Ana Paula Ribeiro, Guilherme Boulos e Natalia Szermeta — publicado 30/01/2014 06:05
 
Obra erguida por meio do Minha Casa Minha Vida na comunidade da Mangueira, no Rio de Janeiro
Sem alarde, no apagar das luzes de 2013 foi lançado pela Fundação João Pinheiro o novo estudo do déficit habitacional brasileiro, que é o indicador oficial utilizado pelo Ministério das Cidades. Os dados, apesar de serem os mais recentes disponíveis, referem-se a 2010. Mas, mesmo defasados, são reveladores: o déficit habitacional do país aumentou após o Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV)
 
Em 2008, o número de famílias sem moradia no país era de 5.546.000 de acordo com o Ministério das Cidades. Em fevereiro de 2009, foi lançado o Programa MCMV com a promessa de redução drástica destes números. Ao final de 2010, o MCMV havia atingido a meta de 1 milhão de casas construídas ou contratadas. Resultado: o número de famílias sem moradia no final de 2010 era de 6.940.000. Após 1 milhão financiadas pelo governo, a carência de moradias no Brasil aumentou praticamente 1,5 milhão. Como pode?

 
A realidade desafiou a matemática. Mas não a lógica. A lógica da política urbana brasileira transforma qualquer programa habitacional em pano de enxugar gelo. O MCMV, mesmo com sua dimensão significativa, não fugiu à regra.
 
Na última década o setor imobiliário – construtoras, incorporadoras, proprietários de terra urbana – foi da água ao vinho no Brasil. Nunca teve um crescimento tão potente e tantos estímulos do poder público. O investimento em imóveis superou a rentabilidade de todas os outros investimentos financeiros e, de 2008 a 2013, rendeu cinco vezes acima da inflação. Enquanto a Bovespa, no mesmo período, teve desvalorização de 12%, o valor médio dos imóveis em São Paulo subiu 195% (Fipe/Zap).
 
O acesso maior ao crédito, pilar do lulismo, foi importante para isso. Mas ainda mais decisivo foi a injeção de recursos públicos por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do BNDES nas grandes construtoras. O BNDES financiou a expansão e internacionalização das Cinco Irmãs (Odebrecht, Camargo Correia, OAS, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão). Elas abriram capital na bolsa, adquiriram um imenso banco de terras e expandiram seus horizontes para outros ramos como a telefonia, a geração de energia elétrica e a petroquímica.
 
Mas, diz a máxima: bonança de uns, penúria de outros. O fortalecimento rápido e intenso do capital imobiliário trouxe um alto preço a pagar aos trabalhadores urbanos. Enquanto as corporações imobiliárias faturavam bilhões, ampliando sua teia de investimentos nas grandes cidades do país, os moradores destas regiões foram arrastados por um turbilhão.
 
Na medida em que os construtores, ao investirem em terras o dinheiro das ações vendidas com a abertura de capital, tornaram-se também os maiores proprietários de imóveis urbanos e passaram a ter em suas mãos a faca e o queijo da política urbana. Se têm as terras, podem definir o que farão em cada uma delas. Aqui, um condomínio de elite, ali um novo shopping, acolá habitação popular. Ou seja, o direcionamento da expansão e remodelação urbana tornou-se ainda mais refém dos interesses privados e de mercado.
 
Com isso, regiões inteiras foram reconfiguradas sem aviso prévio aos que sempre estiveram por lá. Bairros antes periféricos viram, atônitos, torres serem erguidas ao seu lado. Novos moradores, novo perfil, novos preços. Com os investimentos de mercado veio a inflação descontrolada do valor dos aluguéis. Alguns bairros da periferia paulistana viram nos últimos cinco anos o valor médio do aluguel dobrar ou triplicar.  O mesmo se deu no Rio de Janeiro e em outras capitais.
 
Assim cresceu o déficit habitacional, configurado por uma explosão no valor dos aluguéis inclusive nas periferias urbanas. O morador do Campo Limpo (zona sul) ou Itaquera (zona leste) que pagava 400 reais de aluguel viu o boleto aumentar para 700 reais, mas o salário não. Das três situações seguintes, foi forçado a uma: ou comprometeu mais da metade dos ganhos familiares para arcar com este aumento; ou teve de ir viver em condições muito precárias, ainda mais longe; ou recorreu ao cômodo do fundo da casa de um parente, ao barraco em uma ocupação.
 
Nos três casos passou a fazer parte da cifra do déficit habitacional. Assim a lógica explica a matemática. Mesmo 1 milhão de novas casas não é capaz de compensar as outras 2,5 milhões de famílias jogadas à própria sorte pela ofensiva do capital imobiliário. Podem construir mais 2 ou 5 milhões e o déficit continuará aumentando se a política urbana não estabelecer limites às forças do mercado, ao invés de estimulá-las.
 
Mas é o progresso! Como ir contra ele? Seremos contra a ampliação do metrô, que também gera especulação? Contra urbanização de favelas? Melhorias urbanas em geral? O capital costuma sempre jogar a pecha do atraso em qualquer obstáculo a seu desenvolvimento.
 
É evidente que melhorias de infraestrutura, serviços urbanos e condições de vida são imprescindíveis e devem ser inclusive aceleradas de forma profunda. Mas junto a elas é preciso vir medidas regulatórias do poder público para conter o capital imobiliário e a expulsão dos trabalhadores para regiões ainda mais periféricas.
 
A medida mais urgente para parar com este trabalho de Sísifo é uma política de controle da elevação dos aluguéis urbanos. Medida que, em tempos neoliberais, tem um ar quase comunista. Mas que, aqui mesmo no Brasil, foi tomada em 1921 pelo governo Epitácio Pessoa, que definitivamente não era comunista. Durante os governos Vargas foi retomada por sucessivos decretos. Leis de controle do aluguel vigoraram no país até o período militar, que enterrou-as de vez.
 
Estabelecer o índice inflacionário como teto para reajuste nos contratos de aluguel é algo não apenas possível como urgente e necessário.
 
Assim como o é a aplicação das diretrizes já estabelecidas pelo Estatuto das Cidades, em 2001. Desapropriação compulsória, exercer o direito de preempção, dação em pagamento, IPTU progressivo, enfim uma série de medidas de controle à livre especulação que a legislação atual já permite.
 
As prefeituras e câmaras municipais, responsáveis pela aplicação do Estatuto via Planos Diretores, são, entretanto, frequentemente embaixadas do mercado imobiliário. Maiores financiadoras de campanhas eleitorais do Brasil, as construtoras têm muitos agentes públicos literalmente em seus bolsos. Esperar que as mudanças partam daí é ilusão.
 
Enquanto o capital imobiliário for o grande agente da remodelação urbana, livre de regulamentações mais efetivas, qualquer política está fadada ao fracasso. Aumentam os recursos para urbanização de favelas e saneamento, mas novas favelas surgem em escala ainda maior. Aumentam a meta do MCMV, mas a cada dia surgem novos sem-teto que não podem mais suportar os aluguéis abusivos.
 
No caso do MCMV há ainda seus problemas genéticos. Foi feito sob encomenda para salvar o setor imobiliário diante da crise de 2008 e suas regras são por isso voltadas para o interesse privado. Tem seus méritos, é verdade. Nunca volume tão grande de subsídios foi direcionado à habitação popular na história brasileira. A modalidade Entidades, apesar de com menos recursos e mais burocracias, aponta também alternativas à lógica privatista. Mas de forma geral o programa atende mais à lucratividade dos empresários que a perspectiva de solucionar o déficit habitacional.
 
Vejamos como se dá este processo. O MCMV estabelece um valor fixo por unidade habitacional que destina para os empreendimentos. Em São Paulo, este valor é de 76 mil reais. Ou seja, se uma construtora apresenta um projeto de mil apartamentos, o valor repassado será de 76 milhões. Para repassar este valor, o programa estabelece padrões mínimos: tamanho das unidades, especificações técnicas, etc. Uma vez que o projeto cumpra estes requisitos básicos será aprovado.
 
Se a construtora apresenta um projeto de apartamentos de 39 m², que é o mínimo estabelecido para a Faixa 1 (famílias com renda inferior a 1,6 mil reais), ou se apresenta com 60 m² o valor pago pelo programa será o mesmo, 76 mil reais por unidade. Ou seja, na medida em que os agentes dos empreendimentos são construtoras, que buscam rentabilidade e não qualidade da moradia, é mais do que óbvio que as moradias não terão 1 milímetro a mais que o mínimo. Assim ocorre. O MCMV, portanto, estimula a habitação popular de baixa qualidade.
 
Se a construtora tem um terreno num bairro mais valorizado e com mais acesso a serviços e outro no fundão da periferia, o MCMV irá repassar o mesmo valor por unidade nos dois casos. Obviamente as construtoras estão destinando seus piores terrenos para habitação popular. Estimulam com isso a periferização, o crescimento da especulação imobiliária e a piora da qualidade de vida dos trabalhadores. É isso que ocorre quando o interesse privado se sobrepõe ao interesse social.
 
Pior ainda: mesmo com este maná, os empresários brasileiros fazem manha, querem ainda mais e chantageiam o governo, que não responde à altura. Historicamente, o capital brasileiro acostumou-se ao capitalismo sem riscos, onde o Estado deve mimá-los sempre mais. Por isso, como a lucratividade da Faixa 1 é menor que da Faixa 2 (até 3,1 mil reais), apesar de ser elevadíssima, seguram os projetos para Faixa 1.
 
Dado divulgado este mês pelo Ministério das Cidades revelou que da meta do MCMV2, 75% das unidades foram contratadas na Faixa 2 e apenas 15% daquelas previstas para a Faixa 1. Nunca é demais lembrar que a tal Faixa 1 responde por mais de 70% do déficit habitacional brasileiro.
 
Assim podemos concluir sem rodeios que enquanto não houver um enfrentamento ao setor imobiliário, por meio de uma política urbana ousada e regulatória, as políticas públicas de habitação e urbanização continuarão sendo desafiadas pela matemática. O que o Estado der com uma mão o mercado tira com duas.
 
Guilherme Boulos é integrante da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e militante da Frente de Resistência Urbana;
 
Natalia Szermeta é integrante da Coordenação Estadual do MTST e militante da Frente de Resistência Urbana;
 
Ana Paula Ribeiro é integrante da Coordenação Estadual do MTST e militante da Frente de Resistência Urbana.
Redação

5 Comentários

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  1.   “Assim podemos concluir sem

      “Assim podemos concluir sem rodeios que enquanto não houver um enfrentamento ao setor imobiliário, por meio de uma política urbana ousada e regulatória, as políticas públicas de habitação e urbanização continuarão sendo desafiadas pela matemática. O que o Estado der com uma mão o mercado tira com duas.”

      O artigo é muito interesse e pertinente, mas… o que sugerem fazer, além de tabelar alugueis? Sendo que isso não funciona, tabelamentos mais recentes provaram não ser factíveis – e não adianta lembrar de um exemplo de 1921, nada constando ainda acerca de seu êxito. Sem falar na gritaria que isso levantaria.

      Também não imagino que seja possível uma escalada de IPTU para imóveis vazios há 1, 2, 3 ou mais anos – fazer isso é servir, também aqui, de escada para os Skafs da vida e de vidraça para o estilingue do PIG.

      Por outro lado, se tem MAIS gente sem imóvel e MAIS imóveis, está sendo disputada uma queda de braço que mais hora menos hora vai derrotar os acumuladores de imóveis, considerando que estes não os compram apenas para colecionar residências vazias, e o horizonte de retorno não tende ao infinito. Seria o término da Copa um estopim psicológico para o início de um rush de venda dos especuladores, talvez originando um efeito manada?

      Outra hipótese, que não vi discutida no texto, é a seguinte: com o enfrentamento do déficit habitacional, pessoas que antes nem pensariam em morar em casa própria saíram da “sombra” e passaram a ser computadas no total do déficit. Oras, nosso aumento populacional não foi tão significativo nos últimos 5 ou 6 anos, então tendo a imaginar mudança nos critérios estatísticos como fator causal para o aumento do déficit.

     

      Ignorância minha? Pode ser, mas imagino uma relação simples: com a explosão do crédito (e do mercado imobiliário), com reflexo nos alugueis, muitas famílias entregaram suas casas. Pois bem, por mais elástico que seja o bem “moradia”, se o aluguel estiver muito alto, isto é, se ninguém se dispuser ou puder pagar o aluguel o imóvel ficará vazio, ou seja, não produzirá renda.

      Mesmo que o estoque de moradias de alto padrão esteja alto (alta ociosidade), há um número limitado de famílias deslocadas e deslocáveis para a periferia, digamos – imaginar o contrário seria imaginar uma São Paulo (p. ex.) onde o centro expandido ficaria sem um único morador, todos deslocados para a periferia, situação na qual os atuais moradores periféricos iriam para mais além ou mesmo iriam para favelas. Forçando mais ainda a lógica, TODOS os brasileiros morariam em favelas ou embaixo de pontes, restando apenas casas e apartamentos vazios nas cidades. Não é preciso ser economista saber que tal situação não é viável de diversas formas, ainda mais como investimento.

      Obviamente não sei qual seria o ponto-limite (limitei-me à reductio ad absurdum), mas simplesmente imaginar que o MCMV em última análise o MCMV tenha como seu único efeito REPELIR habitantes de moradias regulares não me parece razoável. Em resumo, acredito em efeito estatístico – “cifra negra” agora revelada ou alteração de critério – e/ou em especulação pura e simples, esta última hipótese com prazo limitado para durar.

  2. ainda acredito que sem um

    ainda acredito que sem um planejamento e ordenamento urbano -favor não limitarmo-nos às metrópoles- vamos eternamente nos dar mal. Ou alguém conhece uma cidade aprazível de se visitar que não está se deteriorando a olhos vistos.

  3. Carta capital cada vez pior

     Assim como a infiltração em movimentos sociais

    tudo em família

    Guilherme Boulos- filho da alto funcionário do governo tucano

    Natalia Szermeta – filha de candidato do PSOL

    lembrando que Plínio apoiou serra, quanto aos números do mundo real já foi notícia aqui

    Estudo aponta redução no déficit habitacional no país em cinco anos

    https://jornalggn.com.br/noticia/estudo-aponta-reducao-no-deficit-habitacional-no-pais-em-cinco-anos

    2007-2012

    Esse movimento MTST tem uma estranha preferência por perseguir governos petistas e uma estranha simpatia pelo geraldo pinheirinho alkmin, olha só o modo típico de agir deles em Hortolândia(prefeito petista)

    Prefeito assina contrato para construção de mais 600 moradias do Minha Casa Minha Vida

    Apartamentos serão construídos no Jardim Novo Ângulo para atender famílias que moram em áreas de risco, cadastradas pela Prefeitura

    Com os novos contratos, a Prefeitura soma 1.100 unidades habitacionais por meio do Programa Minha Casa Minha Vida. Já estão em fase final de construção 500 apartamentos no Jardim Minda, que começam a ser entregues às famílias ainda neste ano.

    Silva explicou que a CEF avalia mais dois contratos para construção de outras 1.100 habitacionais em dois condomínios, um de 500 apartamentos e outro de 600. O município também abriu licitação para construção de 250 casas populares em parceria com a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano). Outras 455 unidades habitacionais serão construídas com recursos federais nos bairros Vila São Pedro, Boa Esperança e Nova Hortolândia, todas para atender famílias que moram em locais de risco.

    http://www.hortolandia.sp.gov.br/wps/portal/!ut/p/c0/04_SB8K8xLLM9MSSzPy8xBz9CP0os_hAEz9vb1N_YwOLwDBXA0_XkEDvEBdvA69AY_2CbEdFANJZDcY!/?WCM_GLOBAL_CONTEXT=/wps/wcm/connect/Hortolandia2011/hortolandia2011/noticias/moradia/prefeito+assina+contrato+para+construcao+de+mais+600+moradias+do+minha+casa+minha+vida

     

    O que acontece dias depois ?

    MTST busca recepção do prefeito de Hortolândia

     

    Desde terça-feira (20) integrantes do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) que, no dia 13 de agosto, invadiram uma área particular em Hortolândia, estão acampados em frente à prefeitura da cidade. Os militantes dizem que só saem do local se o prefeito, Ângelo Perugini, recebê-los.

    O Departamento de Comunicação do município informou que, na quarta-feira (14), os representantes do movimento comprometeram-se com a Secretaria de Habitação que enviariam na segunda (19) a documentação das famílias instaladas na gleba. Uma das coordenadoras dos acampados, Ana Paula Ribeiro, disse que os sem teto apenas entregarão os cadastros se o prefeito reunir-se com eles e garantir a construção de casas e bolsa aluguel aos que estiverem na fila de espera por uma unidade habitacional.

    O Secretário de Habitação, Francisco Raimundo da Silva, disse que o governo municipal não reconhece no movimento “a cara de Hortolândia”. Segundo ele, os coordenadores do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) são de fora da cidade e o poder público precisa da documentação dos invasores para saber se eles são de Hortolândia e se estão dentro dos critérios necessários para serem inseridos nos programas habitacionais do município. Serão priorizadas as famílias que se encontram em área de risco e que ganham até três salários mínimos.

     

     

        

     

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