Nos bastidores dos Acordos de Minsk: conversa com o ministro das Relações Exteriores da República Popular de Lugansk

Uma conversa focada na questão histórica e em como a crise no Donbass escalou de um conflito local para a atual tensão global

Foto: Reprodução/Lugansk Media Center
Foto: Reprodução/Lugansk Media Center

Por Lucas Leiroz

O atual conflito na Ucrânia divide opiniões ao redor do mundo sobre sua real data de origem. Em geral, há aqueles que estabelecem o marco inicial da guerra como o dia 24 de fevereiro de 2022, quando as tropas russas entraram na Ucrânia pela primeira vez. Outros, contudo, relembram o ano de 2014, quando as hostilidades na região do Donbass começaram, opondo forças leais ao governo e separatistas falantes de russo. Contudo, na opinião de alguns líderes locais do Donbass, o problema parece ainda mais antigo e complexo.


Recentemente, tive a oportunidade de visitar a República Popular de Lugansk, no no centro do Donbass, região extremamente afetada pelos enfrentamentos desde 2014. Além da mera observação de campo, minha experiência no terreno do conflito também foi preenchida com entrevistas a políticos e oficiais de Estado locais – dentre os quais, Vladislav Deinego, Ministro das Relações Exteriores de Lugansk.


Tivemos uma longa e proveitosa conversa focada na questão histórica e no entendimento de como a crise no Donbass escalou de um conflito local para a atual tensão global. Representando a República de Lugansk – que à época reivindicava soberania e reconhecimento enquanto Estado Nacional -, Deinego participou de todo o processo dos chamados “Acordos de Minsk” – protocolos diplomáticos assinados entre os ucranianos e os separatistas, mediados por russos e europeus.


Não apenas como jornalista, mas como um curioso pesquisador da geopolítica, me apressei em perguntar ao Ministro sobre os detalhes do processo diplomático de Minsk, acreditando que algumas informações dos “bastidores” das negociações seriam suficientes para compreender as razões para o fracasso dos Acordos. Contudo, com uma paciência verdadeiramente pedagógica, Deinego resolveu abordar o tema de forma mais aprofundada, indo para muito além das conversações de 2014.


Antes de qualquer coisa, o Ministro enfatizou o fenômeno do nazismo ucraniano. Deinego conta que as tendências nazistas surgiram na Ucrânia em meio à Segunda Guerra Mundial, fomentadas pela Alemanha como uma forma de debilitar a unidade nacional russo-soviética. Durante o stalinismo, conta ele, estes grupos foram em grande parte esmagados e quase desapareceram da Ucrânia, mas a verdade é que eles nunca foram totalmente dizimados – ainda que tenham sido reduzidos por décadas à nulidade política. Pouco a pouco, os remanescentes do nazismo ucraniano foram se elevando no cenário interno após a queda da URSS, afirmou o Ministro, acrescentando que a primeira grande investida do Ocidente para mobilizar estes grupos contra a Rússia fora em 2004, ainda dez anos antes do Maidan.


Segundo Deniego, o motivo de o antigo nazismo ucraniano ter sido resgatado, fomentado e apoiado por agentes ocidentais é muito simples: dessa forma, seria possível colocar uma nação eslava contra a outra. Ele menciona ainda que o plano americano estava de acordo com o pensamento estratégico de Zbigniew Brzezinski, segundo o qual, a única forma de se vencer a Rússia seria através da fragmentação da unidade dos povos eslavos. Vladislav então acredita que os primeiros planos nesse sentido foram postos em prática em 2004, no contexto da chamada “Revolução Laranja”.


À época, em meio às corriqueiras alegações de corrupção e fraude eleitoral contra candidatos eurocéticos na Ucrânia, houve uma enorme agitação nas ruas de Kiev pressionando contra a eleição de Viktor Yanukovich – candidato visto como “pró-Rússia” por representar “as regiões” e defender boas relações com Moscou. Contudo, explica Deinego, a rápida vitória dos manifestantes acabou minando, de certa forma, os planos do próprio Ocidente. As instituições ucranianas atenderam rapidamente às demandas dos manifestantes e Viktor Yushchenko ascendeu como líder do país no começo de 2005, cumprindo o desejo dos apoiadores de uma integração da Ucrânia à Europa ocidental. Desta forma, a radicalização do ultranacionalismo ucraniano, embora avançada, foi aliviada pelo rápido sucesso da investida ocidental, na visão do Ministro.


Isso não significa, contudo, que o impacto dos eventos de 2004 tenha sido menos significativo no país. A partir da Revolução Laranja, foi possível observar os primeiros efeitos das investidas ocidentais na Ucrânia. Os chamados “banderistas”, seguidores e colaboradores do líder nazista ucraniano Stepan Bandera, começaram a ser exaltados como heróis nacionais. ONGs financiadas pelo Ocidente começaram a fomentar na juventude ucraniana uma espécie de “euro-sonho”, fazendo da integração à União Europeia um ideal nacional, em contraponto com a mentalidade pró-Rússia que naturalmente se preservava nas “regiões”. Basicamente, o cenário de polarização nacional foi piorado e o país engajou definitivamente em uma jornada de ocidentalização.


Aqui são feitas ressalvas para se dizer que desde a queda do regime soviético já havia algum tipo de divisão doméstica na Ucrânia. As regiões falantes de russo já vinham sendo de facto marginalizadas e segregadas desde 1991, através principalmente da ausência de investimentos em infraestrutura. Até hoje, o Donbass é uma região marcada pela presença de construções, estradas e maquinários antigos, datados da época soviética. A contraponto disso estão as reformas recentemente realizadas pela Federação Russa após a vitória militar na região. No que concerne às décadas de domínio ucraniano, aparentemente, pouca coisa foi feita por ali.


Uma tentativa de equilibrar este cenário surgiu com a chegada de Yanukovich, em 2010. O presidente pretendia fazer da Ucrânia uma espécie de “ponte entre dois mundos”, mantendo simultaneamente boas relações com Moscou e o bloco europeu – sem, contudo, se apressar em garantir uma membresia para Kiev na União. Sua política foi suficientemente forte para preservar importantes laços estratégicos, mas fraca para neutralizar os efeitos negativos do forte fomento estrangeiro ao “banderismo” e ao “euro-sonho” na opinião pública nacional, o que explica as razões para o sucesso de uma nova investida do Ocidente em Kiev – a de 2014.


Com o golpe de Estado, apelidado de “Euromaidan” (ou simplesmente “Maidan”), a guinada pró-Ocidente da Ucrânia se tornou absoluta, sem qualquer tipo de limite ou mediação. A integração com a União Europeia e a OTAN se tornou cláusula constitucional e a política de “desrussificação” foi uma das primeiras diretrizes adotadas pelo novo regime – ainda em sua fase de governo transitório, quando fora banida a lei de línguas cooficiais, que garantia o uso do russo em documentos e cerimônias públicas nas regiões falantes deste idioma. E, como era de se esperar, não apenas os nazistas do passado continuaram a ser glorificados, como também os heróis soviéticos foram definitivamente apagados da história ucraniana – inclusive, através da remoção de monumentos.


A rebelião popular nas regiões se tornou uma inevitabilidade diante da soma de problemas sociais acumulados por anos de marginalização junto às novas políticas de apagamento cultural – além do crescimento das hostilidades sociais oriundas da polarização. O que começou com simples protestos e desobediência civil por parte dos russos étnicos escalou para um estágio de conflito à medida que se consolidava a determinação política de Kiev em “desrussificar” a Ucrânia de forma total e absoluta.
Contudo, o caso era esperado de ser resolvido em algum momento através do diálogo e da diplomacia, ainda que as tensões e os ânimos estivessem exaltados. Mas, no verão de 2014, as Forças Armadas da Ucrânia lançaram uma série de bombardeios contra a população civil do Donbass, culminando no início de uma sangrenta guerra civil. Os locais se organizaram em milícias populares, estruturados sob o comando de poucos profissionais de segurança ou veteranos militares com alguma experiência de combate, surgindo assim o conflito armado que se arrastaria por quase uma década.


O separatismo no leste da Ucrânia nada mais foi do que um impulso reativo às investidas de Kiev. O povo do Donbass não aceitou mudar sua língua e seus costumes de forma passiva no processo de “desrussificação” e não se intimidou diante dos bombardeios e bloqueios humanitários. Pelo contrário, se organizou militarmente em milícias e politicamente em uma estrutura de “república popular”, mesclando elementos do passado soviético com um forte sindicalismo regional. Obviamente, a Ucrânia não cogitou em qualquer momento reconhecer a independência dos oblasts do Donbass e se limitou a tentar “resolver” a crise através da escalada militar.


O temor acerca do surgimento de uma nova guerra de grandes proporções em solo europeu culminou nas conversações entre as partes, mediadas pelos principais parceiros diretos de cada lado – a Rússia pelas Repúblicas separatistas e a Europa por Kiev. Até que as negociações em Minsk se estabelecessem de forma efetiva e resultassem na publicação de um protocolo geral, muitos precedentes prepararam o tenso terreno das discussões, formando um caminho de sucessivos fracassos.


Sendo um insider dessas discussões, Deinego conta que logo no início das hostilidades os separatistas propuseram a Kiev um acordo básico de banimento de algumas armas para viabilizar um combate “limpo”. Os objetivos eram simples: diante da inevitabilidade do conflito civil, esperava-se pelo menos impedir o uso de equipamentos com alto poder de letalidade e que pudessem gerar danos irreversíveis aos civis. Nesse sentido, foi apresentado pelas Repúblicas um projeto de comprometimento pelo não-uso de artilharia e aviação, limitando os combates ao enfrentamento de infantaria. Mas, conta Vladislav, Kiev sequer apreciou a proposta, não havendo nenhuma disposição por parte do governo ucraniano em negociar o estabelecimento de um “combate humanitário”.


Em segunda tentativa de diálogo, as Repúblicas levaram a seus interlocutores ucranianos um plano de limitação de poder de fogo baseado na distância das linhas de contato. Em outras palavras, as armas deveriam ser menos letais quanto mais próximas da “linha zero”, o que ajudaria a evitar que os efeitos colaterais atingissem civis. Nesse modelo, o uso de artilharia estaria limitado às linhas de contato mais distantes em uma escala regressiva na qual a zona de enfrentamento direto estaria reservada ao combate físico de infantaria. No meio-termo, as armas usadas deveriam se adequar proporcionalmente à distância dos alvos civis. Quanto mais perto da “linha zero”, menor deveria ser a letalidade das armas; quanto mais longe, maior era a margem de uso da força. E, como era de se esperar, o regime ucraniano continuou insistindo em não apreciar nenhum termo limitador da força militar, reivindicando total liberdade de ação contra os separatistas.


O resultado foi o crescimento do medo de uma guerra regional. Afinal, à medida que os ucranianos pudessem realizar incursões de alta profundidade no Donbass, maior seria a vulnerabilidade das fronteiras com a Federação Russa – que já estava impaciente com os novos rumos da Ucrânia, tendo agido militar e politicamente na Crimeia meses antes do estopim da crise no Donbass. A União Europeia se viu como o ponto mais vulnerável diante de uma possibilidade de guerra total entre um aliado próximo e um rival geopolítico que à época ainda figurava também como importante parceiro estratégico (já que as imorais medidas coercitivas apelidadas de “sanções” ainda não haviam banido a cooperação energética russo-europeia). Então, era aquela definitivamente a hora de se negociar e encontrar termos minimamente favoráveis.


Vladislav participou do processo em Minsk e conta que era genuíno o interesse europeu em cooperar pelo alcance da paz. A Alemanha, que liderou as mediações pró-Ucrânia em Minsk, apresentava, segundo ele, um honesto empenho em impedir a escalada e a deterioração da segurança. É plausível de se imaginar tal preocupação por parte de Berlim, considerando o alto teor estratégico dos laços entre alemães e russos àquela altura. E foi a partir do interesse genuíno dos mediadores que a publicação de um protocolo final foi viabilizada, estabelecendo pontos mínimos para o congelamento das hostilidades, dentre os quais o cessar-fogo imediato, a libertação dos prisioneiros e o respeito a medidas especiais de governança regional no Donbass por Kiev.


Desnecessário dizer que os Acordos fracassaram em sua implementação material. Na prática, a guerra continuou ativa nos anos seguintes, ainda que obviamente tenha diminuído em termos de intensidade quando comparada a 2014. Bombardeios, bloqueios, sabotagens e sequestros continuaram fazendo parte das relações entre ucranianos e russos étnicos no Donbass, não tendo jamais havido qualquer cumprimento real dos termos acordados em Minsk.


Aliás, parece impossível comentar sobre este tema hoje em dia sem lembrar da infame declaração da ex-chanceler alemã, Angela Merkel, alegando que os Acordos de Minsk nada mais foram do que uma forma de “dar tempo à Ucrânia” para se preparar para um confronto direto com a Rússia. E por mais que esta ideia caia como uma luva para explicar o motivo dos Acordos terem fracassado, Vladislav discorda veementemente desta hipótese e afirma de maneira categórica: “Merkel está mentindo!”.


Para o Ministro, nunca houve por parte de Alemanha e da Europa qualquer participação em tal “plano de preparação” da Ucrânia. Ele enxerga, como alguém que participou ativamente do processo, que os europeus estavam realmente preocupados com a crise e queriam cooperar para o alcance da paz – ou congelamento militar. Se, de um lado, é inegável que o Protocolo serviu para Kiev ganhar tempo e se equipar militarmente, de outro, Deinego exclui que a União Europeia tenha sido de qualquer forma uma coordenadora deste plano de ação.


Ao que parece, Washington, que é a verdadeira capital da OTAN, coordenou a preparação de Kiev de forma direta, ignorando os interesses europeus. Merkel admite hoje uma espécie de “consciência” sobre tudo que estava sendo planejado à época, mas não parece convencer seus parceiros de negociações do lado russo. Para eles, as declarações da ex-chanceler alemã soam como uma forma de esconder que os próprios europeus foram enganados por aqueles que, em tese, seriam seus “parceiros” (os patrões americanos e os proxies ucranianos).


Não é surpreendente que tais manobras tenham ocorrido sem levar minimamente em conta os interesses europeus. Há muito tempo já parece evidente que os EUA não consideram a Europa um parceiro legítimo, mas um mero vassalo nas relações hierarquizadas dentro do bloco ocidental. A União Europeia, na prática, cumpre um papel não muito diferente daquele desempenhado pela própria Ucrânia, guardadas as devidas proporções. Tal como Kiev é manipulada como um proxy num enfrentamento militar com a Rússia, a Europa é induzida a travar uma guerra comercial com Moscou através de sanções e boicotes que já se provaram inúteis em atingir a Rússia – e muito eficientes em afetar os europeus.


Mas a conversa com Vladislav não se limitou a tais reflexões. Ele também contou que o início da operação russa na Ucrânia foi a consequência da iminência de uma consumação dos planos de guerra da OTAN no Donbass. Segundo ele, a inteligência russa, em parceria com as forças locais das Repúblicas de Lugansk e Donetsk, detectaram no fim de 2021 provas concretas de que Kiev lançaria uma ofensiva massiva contra o Donbass no mês de março do ano seguinte. Ao fim desta ofensiva, uma “solução final” seria alcançada através do desmantelamento político e militar das Repúblicas, viabilizando um trabalho de assimilação forçada e consumando a “desrussificação” projetada para a região desde o Maidan.


Foram estes os motivos que, segundo Vladislav, levaram a Federação Russa a tomar a decisão histórica de reconhecer a independência de Donetsk e Lugansk em 21 de fevereiro de 2022 e, três dias depois, iniciar as incursões militares que deram início ao estágio atual do conflito – aquele que os espectadores mais apressados chamam de “Guerra da Ucrânia”, sem levar em conta todo o histórico de tensões e hostilidades no Donbass. Mais uma vez diante da insistência de Kiev em rejeitar negociações de termos mutuamente benéficos, o lado russo “dobrou suas apostas” e deu ao povo do Donbass o direito de decidir sobre uma união formal com a Federação através dos referendos de setembro de 2022, quando Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporozhye passaram oficialmente a ser reconhecidas como as “Novas Regiões” da Rússia.


Deinego acredita que a união com Moscou atende aos interesses populares e garante estabilidade e segurança ao povo do Donbass – pontos que Kiev falhou em garantir durante três décadas. Tal como outros líderes locais que entrevistei durante minha breve jornada como correspondente na zona de conflito, Vladislav expressa confiança de que os russos reverterão os anos de marginalização, exclusão social e boicote econômico, investindo na infraestrutura do Donbass, retomando a industrialização e viabilizando as atividades-chaves da econômica local – a mineração e a agricultura.


Ainda que a mídia ocidental retrate a união do Donbass à Rússia como uma mera “anexação” ou “captura”, para o povo local, esta parece ser uma esperança após tantos anos de vulnerabilidade social. Os russos étnicos parecem nunca ter tido o direito de fazer parte da Ucrânia, não devido ao separatismo – que surgiu de forma meramente reativa em 2014 -, mas em razão do próprio crescimento de tendências ultranacionalistas na política ucraniana ao longo de todo o período pós-soviético.


Em verdade, a experiência de campo e o diálogo direto com autoridades locais me permitiram enxergar os problemas do Donbass desde uma ótica muito mais profunda do que aquela comumente disponível ao “observador distante”. A crise não parece ter começado exatamente em 2014, mas muito antes. E os Acordos de Minsk não parecem ter sido apenas uma “forma de preparar a Ucrânia”, mas um marco negativo na história da diplomacia europeia – revelador da impotência da Europa em lidar com seus próprios problemas e impedir o intervencionismo americano no continente.


De tudo isso, só podemos concluir que a crise é ainda mais profunda do que parece à simples observação analítica. Mas, pelo menos na vida material do povo do Donbass, é inegável que a situação está melhor agora do que antes de fevereiro de 2022.

Redação

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