A invalidade do decreto de indulto individual por vício motivacional
por Paulo Calmon Nogueira da Gama
O STF não deve deixar o país, irrefletidamente, refém de um precedente sem qualquer lastro no melhor direito, sem a menor maturação jurídica, sem o mínimo suporte normativo e motivacional.
Ineditamente vimos o Presidente da República agraciar um deputado federal condenado criminalmente com um decreto extintivo de pena. O indulto individual, previsto na Carta de República, revela-se um instituto carente de contornos e definições pela normatização infraconstitucional. Da forma em que positivado, não é possível ao titular do poder escolher seu conceito e alcance da forma que melhor lhe aprouver, sob pena de assunção de poder arbitrário, ditatorial, incompatível com os princípios e valores da Constituição.
À falta de contornos e requisitos positivados na legislação infraconstitucional, serão esses mesmos princípios e valores constitucionais que, somados ao do plexo normativo, deverão formatar o conceito, os limites, o alcance do instituto, assim como os requisitos para sua obtenção. O direito é descoberto, nesses casos, por essa trilha da autointegração sistêmica e, também, pelas fontes doutrinárias, históricas, comparadas…
Supremo Tribunal Federal, como última e definitiva instância jurisdicional e guardião maior da Constituição da República, deverá definir o uso, contornos e limites do instituto extintivo penal pelo Presidente da República, até que o parlamento minudencie o instituto, tornando-o de fato passível de legítima utilização.
Por outra: o STF não pode deixar o país, irrefletidamente, refém de um precedente baixado sem qualquer lastro no melhor direito, sem a menor maturação jurídica, sem o mínimo suporte normativo e motivacional.
Ora, o decreto presidencial de efeito individual é um ato “administrativoraiz”. A maior parte daqueles que criticam esse casuístico decreto está se apegando (corretamente, diga-se) no seu defeito mais óbvio, embora mais subjetivo, ao reputarem-no viciado pelo (evidente) desvio da finalidade quanto ao interesse público. Embora tenha objeto individual, essa benesse, partindo de autoridade administrativa, que supostamente administra para todos, deve visar o interesse público, e não apenas o interesse de um aliado ou um naco político a ser beneficiado. Não por acaso, isso, até por evidente irrazoabilidade democrática, sequer foi (o)usado em tempos passados, em que chefes de governo assistiram obedientes, ainda que juridicamente discordassem, importantes aliados serem processados e condenados criminalmente.
Mas há outro buraco real nesse decreto presidencial, de onde ressai sua majestosa inconstitucionalidade. E este buraco é mais embaixo: a inconsistência da motivação (que se extrai dos “consideranda” do decreto). A motivação concreta exposta é claramente suicida e é a chave de sua invalidação: avalia o mérito da decisão judicial de origem e se coloca como instância “ad quem”, superior ao STF, em subversão clara ao sistema constitucional. A motivação do ato administrativo, como se sabe, vincula a autoridade emitente, mesmo em se tratando de ato (preponderantemente) discricionário. É o que diz a teoria dos motivos determinantes. Atos preponderantemente discricionários podem também, é claro e pacífico, sofrer controle jurisdicional. E não só em casos de desvio de finalidade, incompetência da autoridade emissora ou inobservância da forma legal (elementos vinculados do ato dito discricionário). Mas também quando o objeto é ilícito ou a automotivação vinculativa é inobservada, o que claramente é a hipótese vertente.
Enfim, o STF, como última e definitiva instância decisória judicial, além de guardião e intérprete máximo da Constituição, assim definido pela própria CR, não pode se submeter e convalidar ato baixado sob motivação espúria, e, pior: usurpador de sua própria missão jurisdicional.
Para encerrar: é óbvio que o “motivo”, ainda que de base discricionária, de um decreto de indulto individual, deve se centrar na pessoa do agraciado, em características subjetivas que eventualmente levem à incompatibilidade do cumprimento da pena (doença terminal, sofrimento excessivo pela pena, etc); jamais numa reavaliação meritória, num juízo de valor quanto à própria lide penal. Tem-se claramente uma revisão por quem incompetente, em relação àquilo que decidido pela Corte constitucional.
Se o STF deixar a porteira aberta… o último a sair, que apague a luz da democracia e do equilíbrio entre os poderes! Não só o atual Presidente da República, mas os próximos, na área penal, poderão fazer uma verdadeira farra de casuísmos e a jurisdição criminal será transformada num faz-decontas, sempre submetida, em caso de condenação, para ter efetividade, ao aval final do ditador.
Paulo Calmon Nogueira da Gama – Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio
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