O mito da neutralidade do juiz, por Marcelo Semer

Enviado por Assis Ribeiro

Do Terra Magazine

“Esquerda caviar” e o mito da neutralidade do juiz

Marcelo Semer

O tema costuma ser pautado com mais veemência pelos críticos do positivismo, que rebatem o mantra da objetividade da lei e da neutralidade do juiz.

Normalmente é o conservador o porta-voz do vetusto discurso do juiz escravo da lei e da expulsão de dados políticos ou sociológicos do mundo do direito.

Não deixa de ser uma ironia, portanto, que tenha partido da incontinência verbal de uma decisão critica à esquerda, a admissão mais incontida do substrato ideológico da jurisdição.

Black blocs, disse o juiz em sua decisão “são contra o capitalismo, mas usam tênis da Nike, telefone celular….  postam fotos no Facebook e até utilizam de uma denominação grafada em língua Inglesa, bem ao gosto da denominada ‘esquerda caviar’”
A censura ideológica, a citação a um termo inconsistente, mas reproduzido ad nauseam no círculo dos chamados neocons, a reprovação não de uma conduta típica em julgamento, mas de uma postura de ação política.

Várias foram as críticas, mas o certo é que a fundamentação do magistrado, ainda que embutida em uma breve e discutível caricatura, acabou por descortinar algo que setores tradicionalistas do direito teimam em guardar dentro do armário: o conteúdo político e ideológico da decisão judicial.

Distintas visões de mundo se chocam cotidianamente nas lides judiciais; a jurisprudência errática, as escaramuças entre as escolas de pensamento, votos vencidos e tantas outras divergências que ilustram agudos conflitos ideológicos.

A ideia de um direito objetivo e de um juiz boca-da-lei só serve para jogar o conflito debaixo do tapete, assentar versões como se fossem verdades e sufocar posicionamentos diferentes, menos por seus vícios, do que por suas virtudes.

A noção de um direito como pura técnica, uma engrenagem que se despe de valores, já nos legou barbáries; ditaduras e segregações foram construídas com base na objetividade do direito, com a conivência de juízes que se demitiam da competência de pensar.

O pior que se pode fazer ao direito -e ao Judiciário como seu mais importante intérprete- é esconder suas lutas internas, encobrir suas diferenças, mascarar os antagonismos.

Isso não perturba apenas a construção das doutrinas, como permite que o juiz se esconda da responsabilidade de suas próprias decisões, diante das alternativas e dos princípios chamados à sua intervenção.

E nada, nada é mais grave do que um juiz que se exima de seu poder, e assim permite que violências inenarráveis sejam proferidas em seu nome. Os principais desastres políticos da humanidade conviveram com esta perversão.

Os limites da função social da propriedade, o alcance da presunção da inocência, a magnitude da dignidade humana, os sentidos e as consequências da igualdade.

Há muitos e importantes princípios em construção, em um texto constitucional que o próprio Supremo Tribunal Federal tem começado a reler com outros olhos, depois de duas décadas de vigência.

Supor que todos os juízes decidam de forma equânime sobre esses temas é maltratar a jurisdição. Ignorar que as divergências sejam fruto de premissas ideológicas é desconhecer o direito.

É só assumindo o caráter político -mas não partidário da jurisdição (porque a neutralidade pode não existir, mas a imparcialidade é sua premissa), que compreenderemos o inestimável valor da independência judicial.

E assim se pode entender a exata dimensão do poder que cada um dos juízes detêm ao exercer a magistratura, e as consequências que provocam com suas opções.

Entre estas, por exemplo, a própria superlotação carcerária, fundada na proliferação das prisões provisórias, decisões exclusivas do juízo.

Afinal, quando a presunção de culpa assume o encargo de tutelar a ordem pública, na formatação de um estado policial –em que regras e princípios são abandonados em razão de circunstâncias excepcionais– há nítidas digitais gravadas da justiça.

Se a crítica à esquerda caviar serviu para algo foi justamente para advertir a sociedade de que a magistratura é múltipla e, por consequência, seus valores também.

Quem sabe algum dia, um desses filósofos de revista semanal também consiga encontrar motivos para distinguir, no cipoal destas tantas diferenças, entre aqueles que se arrostam pela propriedade como um santo graal, quem possa sem ironia ser chamado de juiz-caviar.

Redação

10 Comentários

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  1. Política.

    A lei é a forma da sociedade se manifestar, e esta é, necessariamente, política e deve representar o pensamento “online”.

    A política deve ser enaltecida como a forma de harmonizar diferentes verdades.

    O folósofo é capaz de direcionar estas verdades; hoje a mais aceita é a verdade evangélica de “fazer ao próximo o que farias a ti mesmo ” ou  “sê político para que todos, alguns em graus diferentes,  em coletividade, sejam beneficiados e promovam a evolução da sociedade” . A ciência, como colocada no post, é fator preponderante dessas características políticas ao associar tecnologias ao modo de vida dos jovens e que exige uma mudança nos regulamentos precedentes as novas tecnologias e que permite um juiz, desde que utilize-se de um direcionamento, ser político e equânime em sua sentença de unir responsabilidades e apenação.

  2. Essa direita Mc Donald…

    Esse odio que a direita sente da “esquerda caviar” é tão profundo, é uma inveja antiga, odio mesmo. Discordo de que Black Blocs façam parte do que comumente se diz esquerda caviar. Black Block é parte de uma ala da classe média, não são burgueses, e dai a escolha americanizada do nome, o que para um verdadeiro burgês de esquerda, seria impensavel. 

  3. filosofia do direito
    Colocou a justica e o direito num patamar que muito precisamos alcancar, seja na polica humana, social e economica. Precisamos despir dos valores.
    Muito bom o texto e uma grande reflexao entre o juiz e o homem.
    A humanidade caminha em passos largos com uma filosofia mais intrinsicamente para o suporte do Direito como forma da “minoria” alcancar estas lutas para avancar nas alternativas das regras e tratados existente e modificar, aprimorar os tratados existentes e conhecido dos sistemas humano, politicos e sociais desta relacao entre sua curta existencia como ser, pensamento e a vida futura com o seu mundo no universo.

  4. Grave problema da justiça é a

    Grave problema da justiça é a luta entre defesa e acusação. Se A JUSTIÇA significa ser neutra. Há casos em que o promotor quer condenar o réu de todo modo, a fim de manter sua postura de acusador; por outro lado, o advogado de defesa, muitas das vezes, mesmo sabendo que o réu cometeu o crime, tenta inocentá-lo, como se o réu tivesse comprado sua inocência.

    Um dia desses conheci uma advogada recém formada na PUC. Ela, sendo evangélica, se sentia prejudicada em seus valores por ter que defender leis do aborto, casamento gay, e outras leis que não são permitidas pela justiça de Deus. Eu acho que ela está certa e não omissa.

    Outro problema da justiça e perdoar o réu, porque a acusação perdeu prazo na tramitação do processo ou houve falha na formulação da petição. 

    A questão da justiça se meter a ter esquerda e direita. O Estado é o Estado de direito, de ser o centro, e de mandar fazer justiça. Se alguém cometer ilícito não é o Estado o réu, mas o seu representante que agiu de forma à direita ou à esquerda. 

    O juiz tem que defender A JUSTIÇA PELA JUSTIÇA

  5. Excelente! De clareza

    Excelente! De clareza meridiana!

    E acrescento um “grão de sal”: são esses julgadores que prolatam essas vulgaridades ideológicas que têm mais chances de promoção. É esse o mecanismo de reprodução do conservadorismo.

    Seria interessante se os operadores do direito que frequentam o blog pudessem trazer mais exemplos como esse. Não tenho de cabeça nem anotado, mas sei que existem aos montes.

    Por que digo isso? Porque, a meu ver, a confusão está no fato de nunca ter existido uma teoria do judiciário. Teorias do direito até existem, mas do judiciário, não. Então, o que resta é a teoria política, mesmo, e a teria do estado E eles precisam, precisam ficar ocultadas – mais frequentemente ignorados – em nome do excelso, doutíssimo, supino Direito. No fundo é a tradição escolástica que, por inércia e atavismo, ainda prevalece.

     

  6. O pior é que, no Brasil, o

    O pior é que, no Brasil, o conservadorismo reacionário do Judiciário reflete o antagonismo de classes do país, já que aqui juíz é rico!

    Além da condição financeira, os juízes são os maiores exploradores do prestígio de sua posição, abusando dela desavergonhadamente para conseguir vantagens pessoais, vide os casos vergonhosos das filhas de Fux e Mello. Isso explica porque o Judiciário brasileiro, ao invés de uma institutição profissional, é, na verdade, um feudo no qual se perpetuam verdadeiras dinastias jurídicas.

  7. É notório o despreparo e

    É notório o despreparo e baixo nível intelectual dos magistrados brasileiros, muitos dos quais gostam de pregar o evangelho e difundir suas ideologias de vida em suas decisões. Em sua maior parte, o juíz brasileiro é autoritário e comporta-se como um coronel dos grotões. é raro o juíz responsável, com senso de suas obrigações. estes, quando surgem, são prontamente repreendidos por seus pares, pois os piores elementos do Judiciário brasileiro costumam ocupar as posições mais elevadas em sua hierarquia.

  8. Sem falar na forma de

    Sem falar na forma de ingresso na magistratura e várias outras carreiras de ponta do serviço público. Só consegue passar praticamente pessoas que se dedicam em tempo integral aos estudos e com grana para bancar os melhores cursos. Pegar essas pessoas, sem nenhuma experiência profissional e de vida, e colocá-las para julgar direitos e liberdades de outros seria, pra dizer o mínimo, temerário.

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