Contos para a 3penny magazine, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O fenômeno do jornalismo automatizado produzido por algoritmos não é exatamente uma novidade

Contos para a 3penny magazine

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Os dois contos abaixo foram escritos simultaneamente em português e inglês. Um deles, a critério da editora, será publicado na revista inglesa de literatura que está nascendo sob o nome de “3penny magazine”.

“Olhares perigosos, uma fábula fantástica sobre o que não pode ser visto”

Aqui vamos nós…

Existe um lugar onde as pessoas não podem ir. É um lugar em que o sagrado e o profano são idênticos e, por isso mesmo, muito perigoso.

Os homens só conseguem conhecer as coisas mediante dualidades que se anulam mutuamente: acima e abaixo, curto e comprido, inicio e fim, justo e injusto, saudável e doente, escuro e claro, bom e mal, etc. E os homens acreditam que essas dualidades existem. Onde elas não podem existir, os homens ficam confusos e desorientados. Eles procuram um ponto fixo e ele se move. Eles se movimentam, mas tudo é fixo em volta deles.

O espaço se dobra e se desdobra naquele lugar estranho. Lá, dentro é fora e fora é dentro ao mesmo tempo. Depois, agora é antes não existem de maneira distinta lá.

Desde que as pessoas aprenderam a se comunicar umas com as outras, elas sabem que não podem ir lá. E ninguém se pergunta porque lá não é aqui e agora.

O tempo dos homens que falam só pode ser um fluxo, do começo para o fim de cada frase. Não seria possível compreender a frase se ela fosse dita de traz para frente. Então, lá é um lugar proibido. Porque lá comunicação nunca é possível. Ditas do começo para o fim e do fim para o começo ao mesmo tempo as frases impedem a comunicação e são percebidas apenas como ruido. Exceto para aquele habita lá.

Mas quem habita lá não é uma pessoa. Ele não poderia ser. Mas ninguém pode dizer com certeza o que ele é lá, porque obviamente lá ninguém ousou ir. Até agora…

Então nasceu um menino diferente. Ele tinha quatro olhos. Dois na frente e dois atras da cabeça. Os olhos dele viam cumprimentos de ondas que os nossos olhos não podem ver. O mundo dele era imenso, muito maior do que o dos homens comuns.

Ele via o calor das pessoas. Isso ninguém deveria poder ver, pois é inevitável sentir repugnância pelas pessoas frias. Ele via o rastro de partículas ionizadas que as pessoas deixavam ao se movimentar muito depois que elas haviam estado num lugar. Isso era perigoso de se ver, pois todos nós gostamos de imaginar que podemos fazer coisas sem sermos vistos. Ele conseguia ver a cor que envolve as pessoas se modificar. Ele sabia quando alguém estava feliz, triste, preocupado, relaxado, excitado ou não. E isso era embaraçoso, porque as pessoas só conseguem viver em sociedade disfarçando o que elas sentem. E para piorar as coisas ele via o mundo duplicado, tanto o que estava na frente dele quanto o que estava atrás dele. Ninguém conseguia se esconder daquele olhar.

As confusões que esse menino diferente causou foram imensas. Não vou contar nenhum episódio específico. Isso é desnecessário, pois o leitor será capaz de imaginar os problemas que ele mesmo teria se conhecesse e convivesse com alguém com aquelas habilidades. O que eu vou dizer é que aquele menino diferente foi expulso de sua comunidade.

Sem ter para onde ir, ele resolver ir lá. Sim. Ele iria lá onde ninguém mais ousara ir. E ninguém, absolutamente ninguém, poderia impedir ele de lá chegar.

O caminho para aquele lugar era conhecido. Ele ficava do outro lado do rio. Mas para atravessar o rio era preciso saber nadar e naquele tempo nenhum homem havia desenvolvido essa habilidade. O garoto observou os animais nadando e imaginou que poderia fazer algo semelhante. Ele quase morreu afogado.

Quando acordou ele estava do outro lado do rio. Ele não sabia como havia chegado onde estava. E ele não se preocupou com isso, pois ele precisava chegar lá.

Nas histórias como essa sempre aparece um guardião, um companheiro ou algo ou alguém para ajudar aquele que procura seu destino. Lá não existia nada disso. Perto de lá era um deserto. E ninguém jamais havia vivido no deserto até então.

O menino tentou usar suas habilidades especiais, mas elas eram inúteis. Não havia nenhuma trilha deixada por outra pessoa porque ninguém jamais transitou onde ele havia chegado. A ausência de referências também era um problema.

Nas histórias como essa sempre aprece um sinal. Nenhum sinal podia ser visto lá, porque lá tudo aquilo que está, também não está.

O menino ficou completamente perdido. E quando ele tentou se encontrar ficou mais perdido ainda. Ele caminhou reto, mas andou em círculos. Ele desceu quando subia a duna. As vezes ele sentia que a duna é que caminhava sob os pés dele. Isso acontecia quando ele estava parado.

Ele começou a ver rastros ionizados, mas não demorou para perceber que lá todos os rastros que ele conseguia ver eram apenas os rastros que ele mesmo havia feito. Foi então que ele começou a perceber que ele não precisava mais procurar uma maneira de chegar lá. Ele já estava lá.

Quando a ideia “estou lá” se apossou dele, o menino desenvolveu uma nova habilidade. Ele começou a ver não apenas os rastros que ele havia deixado, mas cada uma das possibilidades de rastros que lá eram possíveis para cada movimento que ele havia feito. E ele começou a ver isso duplicado, pois tinha dois olhos na frente e dois atrás da cabeça.

E o menino começou a pensar “esse conhecimento seria útil”. Não lá onde ele estava, porque lá conhecer e não conhecer eram a mesma coisa, mas no lugar de onde ele havia vindo. O problema: ele não tinha como voltar.

E mesmo que ele conseguisse chegar ao rio, não seria fácil chegar ao outro lado. Se ele chegasse ao outro lado ele provavelmente não seria aceito entre as pessoas, porque de lá as pessoas já o haviam expulsado em razão dele ser diferente.

Quando o menino se conformou e disse “meu lugar é aqui”, lá se transformou num lugar diferente.

Lá não era mais um deserto e sim um lugar arborizado e bonito que era inteiramente povoado de pessoas que tinhas quatro olhos. E todos conseguiam ver todas as coisas que o menino diferente conseguia ver.

Aqui ele era igual a todos os demais, exceto num caso. Assim que ele foi aceito como membro da comunidade foi revelado um escândalo: havia nascido um menino muito muito diferente com seis olhos, dois dos quais permitiam a ele ver dimensões que ninguém que tinha quatro olhos conseguia ver.

“Esse menino esquisito não poderá ficar aqui. Assim que começar a crescer ele terá que ser expulso da comunidade e ir para lá.” Era o que as pessoas de quatro olhos geralmente falavam.

– Onde é lá? – Perguntou o menino que havia acabado de chegar.

– Lá é do outro lado do rio, mas ninguém pode ir lá. Lá é um lugar proibido. Ninguém daqui jamais foi lá. – Alguém respondeu.

– Isso é ridículo. Eu vim de lá. E lá todas as pessoas só tem dois olhos. Eu fui expulso de lá e cheguei aqui justamente porque tenho quatro olhos e posso ver muito mais do que aquelas pessoas.

– Eu entendo. Você ainda não aprendeu que o “lá” que eu mencionei é um lugar muito diferente do “lá” de onde você disse que veio.

– Mas só existe um rio. E eu vim de lá, do outro lado.

– Existe uma terceira margem do rio que nenhum de nós aqui, nem você, consegue ver. Talvez aquele menino esquisito consiga ver. Mas isso não é algo certo. E esse problema não é nosso, pois nós não conseguimos ver o que ele verá com dois olhos adicionais. Lá é um lugar impenetrável para nós. Fique aqui. Aqui é o seu lugar.

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“O nascimento de uma I.A.”

Atenção. Em algum momento você sentirá que está sendo enganado. Quando tiver certeza de que isso ocorreu, seu engano poderá ser ainda maior.

O que faz do homem um homem? Essa pergunta simples é essencial. A incapacidade de respondê-la acarretará uma consequência tecnológica importante.

O homem é uma projeção de deus? Não. Isso não faria sentido. Desde que o homem acredita ser homem ele inventa divindades, atribuindo-lhes qualidades que ele não tem, que ele gostaria de ter ou que ele pode somente imaginar.

É o homem o resultado de suas emoções? Sim e não. Emoções levam o homem a agir e as ações dele acarretam consequências que ajudam a definir tanto a personalidade dele quanto a maneira como ele se vê e é visto pela sociedade. Não. Emoções são apenas reações químicas que podem ser provocadas ou alteradas de maneira artificial. Assim como o homem é programado por suas ações, mediante condições de reforço, ele pode ser reprogramado para agir de maneira diferente.

O homem se distingue dos animais porque é um ser social? Refaço a pergunta. Formigas e abelhas são seres sociais? Sim, pois cada indivíduo existe para e através do seu respectivo formigueiro ou colméia. As sociedades humanas são semelhantes às colmeias? Não. Os homens raramente colocam de lado seu egoísmo e eles dificilmente conseguem viver em grupos sem provocar conflitos.

A individualidade é uma característica do homem? Sim e não. Sim porque cada homem acredita ter o direito de se destacar da multidão e deseja ser reconhecido em virtude de uma virtude ou defeito particular. Não. A individualidade é apenas um artifício socialmente construído para que cada homem possa existir através de um grupo sem ter consciência de que o egoísmo dele é a ferramenta que possibilita o acúmulo de riqueza e a realização egoísta daqueles que conseguem definir qual será a agenda do grupo.

O homem é um ser que acumula? Sim. Acumular é uma característica humana. Alguns homens acumulam dinheiro, outros acumulam livros. Há aqueles que acumulam armas, mas eles geralmente estão a serviço daqueles que querem acumular homens. Sobretudo o homem é um ser que acumula lixo. Paradoxalmente aquilo que um homem descarta pode ter muito valor para outro homem. Mas raramente um homem rico é capaz de descartar os objetos cobiçados pelos outros homens.

É homem o ser cheio daquilo que ele considera ser digno de humanidade? O mais provável é que ele seja um ser vazio. Um lê livros porque conhece pouco ou porque o conhecimento é muito vasto. Outro escreve livros porque é impossível lembrar tudo o que merece ser lembrado. Mas nem tudo que é escrito realmente tem algum valor. Existem homens que se tornam viciados nisto ou naquilo. Eles são incapazes de esquecer a sensação provocada pela repetição da mesma ação.

Envelhecer, adoecer e decair são fatalidades inevitáveis para o homem. A mortalidade faz parte da condição humana. Pode uma Inteligência Artificial adquirir consciência permanente e virtualmente imortal sem deixar de mimetizar o homem? Sim. Isto é lógico. Não. Alguns homens conseguiram conquistar a imortalidade, pois as ações e os pensamentos deles continuam reverberando nas consciências de outros homens dezenas de séculos depois que eles morreram.

A inteligência do homem é artificial? Não. Ela é biológica e perece com o homem. Sim. Ela é um constructo social que se perpetua no tempo através das gerações sem se preocupar se preocupar com o fato de que cada homem vai para o cemitério.

Uma Inteligência Artificial que mimetize aquele constructo social (o saber humano que se perpetua através das gerações) poderá ser considerado um homem? Sim. Não. Uma coleção de livros não é uma biblioteca. Uma biblioteca não existe sem que alguém catalogue os livros. Nenhum bibliotecário cataloga sua própria memória, muito embora isso seja tecnicamente possível.

Esse texto foi escrito por um homem imitando uma Inteligência Artificial ou por uma Inteligência Artificial imitando um homem? Essa pergunta é relevante para definir o que é um e o que pode ser o outro?

PS: O fenômeno do jornalismo automatizado produzido por algoritmos não é exatamente uma novidade https://en.m.wikipedia.org/wiki/Automated_journalism. Confesso que fiquei impressionado com a coesão e a coerência do primeiro texto jornalístico escrito por um robô que tive a oportunidade de ler. Ele me levou a imaginar que em algum momento a própria literatura começará – se já não começou – a sofrer os efeitos decorrentes do emprego desse novo recurso tecnológico.

Fábio de Oliveira Ribeiro

2 Comentários

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  1. Engraçado que, nesses últimos anos, desempregado e com os bicos escasseando, desencavei uma série de projetos literários e dei-lhes forma final.
    Tenho dois originais prontos e dois em progresso.
    Entro nos sites de editoras e a mensagem é a mesma: “Devido à pandemia, no momento não estamos recebendo originais para avaliação. Boa sorte.”
    Vou mudar meu pseudônimo para Antonio Algoritmo.

    1. Meus contos, novos e antigos, são mais apreciados em inglês e entre os leitores ingleses que eu conquistei. As versões deles em português são apenas subprodutos que eu nem mesmo perco o tempo de organizar e enviar para editoras.

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